Com duas décadas de produção, Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, enfrenta nova disputa judicial e moradores denunciam tentativa de criminalização
O pernambucano João Silva está se sentindo ultrajado desde o dia 30 de julho, quando policiais invadiram sua casa no Quilombo Campo Grande, do Movimento dos Sem Terra. “Tive minha casa invadida, fuviaram a casa toda”, declara.
“E vou pedir para o governo do estado ou federal na hora que tiver que mandar polícia lá em casa mande uma pessoa sozinha. Não mande mais feixe de polícia lá em casa porque a gente não deve nada a polícia”, desafia.
João e Celso Augusto, outro morador do assentamento, foram alvos de ação da polícia naquela quinta-feira, por volta das 6h. A alegação da Polícia Civil é que houve o cumprimento de mandado de busca e apreensão, porque uma investigação iniciada em junho mostrava que suspeitos de uma tentativa de assassinato viveriam ali. “Um facão e fogos de artifícios foram apreendidos no local, e um indivíduo preso por resistência”, diz a nota da Polícia Civil.
A advogada Letícia Souza rebate: “Facão é um objeto de trabalhador rural”. Para ela, há clara tentativa de criminalização. “A operação de busca e apreensão feita pela polícia na casa destes trabalhadores partiu da denúncia infundada de um ruralista, que se compromete com a perpetuação do latifúndio aqui em Minas Gerais. Ou seja, foi uma ação direcionada para atingir os integrantes do Movimento na tentativa de ameaçar, intimidar e desmobiliza-los”. Celsão foi solto ainda na quinta-feira, algumas horas depois da detenção.
Tuira Tule, da coordenação do MST, ressalta que a polícia não apresentou qualquer mandado para entrar no assentamento e mesmo na casa dos dois moradores vítimas da ação.
Mas, se fôssemos contar essa história cronologicamente, teríamos que retroceder mais de 30 anos e contar que existia em Campo do Meio, sul de Minas Gerais, a Usina Ariadnápolis, que passou anos a fio figurando no cenário da indústria canavieira. Acabou também como muitas do seu ramo, declinando com a crise do proalcool na segunda metade dos anos 1990, vindo a decretar falência e deixando trabalhadores e trabalhadoras sem qualquer garantia, além de uma área de mais de 3.200 hectares, chamada de “massa falida”. A partir daquele momento, falida e improdutiva.
Não por muito tempo.
Trabalhadores, alguns deles ex-funcionários da fazenda falida, e outros tantos que viram uma oportunidade de produzir, ocuparam o local e, com a coordenação do Movimento dos Sem Terra, estruturaram o assentamento batizado de Quilombo Campo Grande, onde hoje vivem cerca de 450 famílias, que produzem alimentos dos mais diversos tipos a partir das bases da agroecologia, para subsistência e venda na cidade de Campo do Meio. Além disso, produzem o café orgânico chamado Guaíi. “São 2 milhões de pés de café”, declara, orgulhosa, Tuira Tule, da coordenação do MST, em entrevista à SOLOS.
Além disso, Tuira conta que o plano para essa área que voltou a ser objeto de disputa era construir um polo de conhecimento e tecnologia, inclusive com uma universidade popular que tivesse como um dos pilares centrais a agroecologia.
Vizinhos da fazenda de um dos maiores produtores de café do mundo, João Faria, os assentados do Campo Grande vivem, desde 1998, em constante disputa com o empresário depois que o local, antes falido, começou a ser produtivo. “Ele é quem financia o conflito. Há grupos econômicos que compram os direitos do falido. Isso existe no Brasil”, aponta Tuira.
Outro personagem que passa a figurar nesse enredo é Jovane de Souza Moreira, sócio proprietário da Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), dona da “massa falida”, que também passou a disputar diretos por essas terras.
Em novembro de 2018, o juiz Walter Zwicker Esbaille Junior chegou a determinar a reintegração de posse do local, mas o desembargador Marcos Henrique Caldeira Brant, suspendeu a decisão, dando trégua aos trabalhadores que seguiram produzindo no local.
Hoje em dia, de acordo com o MST, há duas pedras no sapato. Um processo que envolve a área da sede da fazenda, onde está localizada a sucata da Usina Ariadnópolis Açúcar e Álcool, e o outro processo que envolve a Capia. O despejo determinado pelo juiz Roberto Apolinário de Castro, que deveria ter acontecido nesta quarta-feira (12) e iria afetar ao menos 16 famílias, diz respeito ao primeiro. O ponto central do debate era o limite entre as áreas do quilombo e a que o proprietário da antiga usina defende ser dele.
“O que eles fizeram, que a gente denuncia, inclusive, é que o fazendeiro e o filho dele vieram para medir eles mesmos a área a ser delimitada. A gente está denunciado essa ilegalidade. Eles estão entrando em uma área que não é deles. Estão invadindo uma área que legalmente não é deles”, explica Tuira Tule.
Ouça trecho da entrevista com Tuira Tule, da coordenação do MST:
Trabalhadores e lideranças do MST se uniram em resistência ao despejo e conseguiram impedir que a ação continuasse. Ao longo do dia, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) chegou a emitir uma nota de repúdio à ação policial no local na madrugada desta quarta-feira. “Centenas de viaturas e policiais de outras cidades chegaram em Campo do Meio para realizar de forma truculenta e criminosa o despejo de 52 hectares”. Na nota, o movimento também destaca que muitas manifestações contrárias ao despejo foram enviadas ao TJ-MG e uma moção on-line reuniu assinaturas de 24 países, 32 entidades internacionais e nacionais, e 98 coletivos e representações acadêmicas.
O quilombo, além de ser produtivo, é repleto de famílias, que fizeram de lá seu lar, onde tiram sustento e dignidade. Para as crianças, há a Escola Popular Eduardo Galeano, segundo o MST, alvo de ataques do governador Romeu Zema, no ano passado.
Houve um acordo em 2016, em que os ocupantes sairiam da casa da fazenda e ocupariam uma área conhecida como “coloninha” e a DMO (estruturas de galpões que estão do lado da Capia), até que se fossem julgados os recursos sobre decreto de desapropriação que o Estado havia feito sobre a área. No ano passado, o decreto foi revogado e os autores retomaram o pedido de reintegração.
“Acontece que, os 26 hectares sobre o qual foi feito o pedido do autor, já fora integralmente desocupado, de forma voluntária [em fevereiro deste ano]. No entanto, no último despacho que o juiz exarou em fevereiro deste ano, este ampliou a área de reintegração para 52 hectares”, explica a advogada Letícia Souza.
A defesa do MST entrou com pedido de suspensão do despejo em razão da pandemia, tanto para a Vara Agrária quanto para o Tribunal, mas ambos foram indeferidos.
A SOLOS procurou o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que nos enviou a decisão do juiz Roberto Apolinário de Castro. Pela lei orgânica da magistratura, juízes não comentam decisões proferidas, já que a visão deles sobre o caso está no teor da sentença.
Também procurou o governo mineiro, de Romeu Zema (Novo), assim como a Polícia Militar e a Polícia Civil, responsável direta pela ação. A Polícia Civil enviou uma nota informando que a ação foi para cumprir mandado de busca e apreensão por causa de uma suspeita de tentativa de assassinato e negou qualquer relação com a reintegração que deve acontecer nesta quarta-feira. “A PCMG esclarece que a equipe policial cumpriu, no assentamento, seu dever legal com responsabilidade e respeito, sem qualquer fato de intimidação aos moradores do assentamento. Esclarece, ainda, que a ação ocorrida em 30 de julho não tem relação com o fato da reintegração de posse prevista para próxima quarta-feira (12/8)”, diz a nota.
A Polícia Civil também informou que “durante as buscas, um dos suspeitos resistiu à ordem dos policiais, disparou fogos de artifício contra a equipe policial e quebrou uma janela com facão, ferindo um policial. Ele foi preso por desacato, resistência e lesão corporal, e, acompanhado pelo advogado, assinou Termo Circunstanciado de Ocorrência (documento de registro semelhante ao boletim de ocorrência para crimes de menor gravidade), sendo liberado”.
No final da tarde desta quarta-feira, o governador Zema compartilhou uma nota oficial sobre a suspensão da reintegração de posse. “As famílias vêm sendo realocadas em locais disponibilizados pela Prefeitura de Campo Belo”, diz trecho da nota enviada no início da tarde pelo governo. Zema chegou a afirmar que, junto a outras entidades, tentou barrar o despejo provisoriamente por causa da pandemia, mas a Justiça não acatou o pedido e a PM esteve no local para cumprimento de ordem judicial.
A reportagem também tentou entrar em contato com representantes legais da Capia, a partir do nome de dois advogados que já defenderam a empresa e seus associados e a advogada Claudia Cristina Pereira Moreira, que consta como defensora na ação mais recente de reintegração. Até o momento, não houve resposta. Além disso, tentamos contatar João Faria, através do comercial da Terra Forte, uma de suas empresas, mas não houve retorno.
Reportagem publicada originalmente em Projeto SOLOS