“Foi o melhor presente de Natal”, afirma Oseias, irmão do líder comunitário Leandro Machado. Ele foi morto em 2003, quando ia pedir apoio de GCMs para uma festa
Em 2003, o nome de Leandro Machado surgiu nos documentos da polícia paulistana e no noticiário policial. Nos boletins de ocorrência, em notícias de jornais espreme-sai-sangue e em telejornais violentos de final de tarde, Leandro Machado tornou-se o nome de um criminoso que teria sido morto pelas autoridades ao invadir uma base da Guarda Civil Metropolitana no Grajaú, zona sul de São Paulo, em meio a uma onda de ataques do PCC.
Em 18 de dezembro deste ano, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo deu um outro significado para o nome de Leandro. Na letra da justiça, Leandro voltou a ser o nome de um líder comunitário, um filho, um irmão e pai de família, que acabou assassinado por guardas “despreparados para o exercício da função”.
“Foi o melhor presente de Natal que eu poderia ter recebido: a Justiça começou a limpar o nome do meu irmão”, afirma Oséias Machado, 47 anos, irmão de Leandro.
“Na periferia quando matam um negrão”
A decisão que ajudou a trazer um pouco de paz para o final de ano da família Machado veio da 6ª Câmara de Direito Público do TJ-SP, na forma de um acórdão em que os desembargadores Reinaldo Miluzzi, Maria Olívia Alves e Evaristo dos Santos reconhecem os danos morais e materiais provocados pelos guardas que mataram Leandro.
O Município foi condenado a pagar R$ 50 mil por danos morais tanto aos pais de Leandro, Maria Aparecida Bernardes Machado e José Carlos Machado, como para a mãe de sua filha, Mabatha Carlos Lucio, e a própria filha do casal, S., hoje com 15 anos. S. também ganhou o direito de receber o equivalente a um salário mínimo por mês durante 22 anos, contando a partir da morte do pai, quando ela tinha dois anos, até quando completar 25, “data presumível em que completará estudos universitários e poderá manter-se com seu trabalho”.
Na decisão, o relator Reinaldo Miluzzi afirma que “os autores dos disparos eram despreparados para o exercício da função, quer porque demonstraram que não assimilaram os treinamentos dos quais teriam participado, quer porque desprovidos de estrutura psicológica para enfrentarem situação de eventual perigo”.
Os homens que mataram Leandro, Orlando Sérgio dos Santos, 58 anos, e José Donizeti de Freitas, 50, continuam a trabalhar até hoje como guardas civis – Orlando, inclusive, acaba de completar 22 anos na função. A Secretaria Municipal de Segurança Urbana, pasta responsável pela GCM, afirma que move um processo administrativo contra Orlando e Donizeti, mas aguarda o resultado do processo criminal antes de se decidir por uma eventual expulsão.
Na justiça criminal, Orlando e Donizeti respondem pela acusação de homicídio doloso. No mesmo processo, uma outra guarda, Andréa Alves dos Santos, 40 anos, é acusada de falso testemunho, porque teria mentido para acobertar os colegas responsáveis pela morte do líder comunitário.
Os três guardas acusados pelo crime são brancos. Leandro era negro. “Eles pensaram que seria igual ao que sempre acontece na periferia quando matam um negrão, que é enterrou e acabou. Mas dessa vez é diferente”, afirma Oseias.
Noites de medo
Em 3 de novembro de 2003, Leandro saiu pela última vez da casa onde morava com os pais, uma irmã e a filha. Na época, São Paulo vivia o início de uma das primeiras ondas de atentados do PCC (Primeiro Comando da Capital) fora dos presídios, que terminaria com 44 ataques realizados contra delegacias e bases da polícia. Eram dias e noites de medo para policiais, guardas e agentes penitenciários.
Por volta das 19h, Leandro passou na base da GCM, localizada na rua São Caetano do Sul, e pediu para entregar um ofício. O texto pedia o apoio dos guardas para um evento que pretendia realizar dali a duas semanas, em 16 de novembro. Seria numa quadra esportiva próxima à base, onde ele costumava reunir a molecada do bairro para ensinar basquete. Teria hip hop, bandas gospel e esportes, mas sem bebida alcoólica. Era um encontro comportado, e Leandro queria o apoio dos guardas para manter a ordem. Pretendia, ainda, aproveitar a festa para comemorar o aniversário da filha, prestes a completar três anos.
O evento tinha bem a cara das ações que Leandro costumava fazer no Grajaú, misturando música e esportes. Atuava como voluntário em entidades como o Grêmio Regional Império do Grajaú ou a Sociedade de Apoio aos Moradores da Capela do Socorro, e isso o tornou Leandro Machado um nome querido no bairro, associado a trabalho para a comunidade.
Com 22 anos, Leandro o era o caçula de sete irmãos e trabalhava como vendedor de cocos em Santo Amaro. Tinha dificuldade em conseguir empregos formais por conta da miopia avançada, que não o deixava ler.
Leandro saiu sem óculos em sua última noite – estavam no conserto, em uma ótica. Quando falou com os guardas na base da GCM, naquele começo de noite, disseram a ele que o expediente havia acabado e que deveria entregar o ofício no dia seguinte. O líder comunitário saiu de lá e foi visitar um amigo. Mais tarde, voltando para casa, passou de novo em frente à base dos GCMs, por volta das 22h30.
Ninguém sabe o que aconteceu ali naquela hora, a não ser pela versão dos guardas.
Aos olhos deles, Leandro parecia suspeito. “O referido elemento era de cor negra e estava com uma touca que chegava até a altura das sobrancelhas, mostrando-se suspeito, vez que ficava olhando o tempo todo para os lados”, disse o guarda Orlando em seu depoimento.
Segundo o depoimento dos GCMs, o elemento negro, suspeito e de touca teria dito que precisava entregar um ofício e comentado “a noite está sinistra”. Em seguida, Leandro teria pulado o portão da base, com dois metros de altura, ao mesmo tempo em que dois desconhecidos na rua passavam atirando em direção aos guardas, sem atingir ninguém.
Após pular o portão, Leandro teria colocado a mão na cintura, como se fosse sacar uma arma. Orlando e Donizete, armados com revólveres 38, atiraram juntos, “num gesto natural de defesa”, alvejando a vítima “em locais diversos”. Socorrido, o líder comunitário morreu no PS Maria Antonieta.
Uma chuva caiu pouco depois, lavando o sangue derramado por Leandro na base onde ele havia ido pedir ajuda para uma festa.
Corpo elástico
No 101º DP (Jardim das Imbuias), os guardas contaram ao delegado a história do jovem míope que havia pulado um portão de dois metros para invadir, sozinho, uma base com cinco GCMs armados. Apresentaram a arma que teriam apreendido com Leandro: uma garrucha, arma de cano curto que costuma ser vendida como antiguidade. O caso foi registrado como “resistência seguida de morte”.
A perícia chegou ao local às 5h15. Contou quatro marcas de tiro no portão e anotou que a chuva havia lavado o sangue de Leandro. Mais nada. Nem a arma que Leandro teria utilizado estava no local, já que foi apresentada pelos guardas na delegacia.
O laudo necroscópico não confirmou a versão de que os guardas haviam disparado vários tiros, atingindo Leandro “em locais diversos”. Ao contrário: foram poucos e precisos. Leandro recebeu dois tiros, ambos disparados de cima. Uma bala o atingiu no lado esquerdo do peito, e a outra o acertou na parte de trás da cabeça.
Em 20 de julho de 2006, a mesma base que até hoje guarda as marcas da morte de Leandro serviu de palco para uma reconstituição do crime, conduzida pelo Instituo de Criminalística (IC). O laudo da reconstituição, assinada pelo perito Lucivaldo Napoli, concluiu que “as versões apresentadas pelos guardas correspondem à verdade dos fatos”.
Sim, para o perito era possível que, mesmo estando de frente para os policiais, Leandro houvesse recebido um tiro no peito e outro na parte de trás da cabeça, ambos de cima para baixo, “em se considerando a flexibilidade e mobilidade do corpo humano, especialmente em movimento que proporcionam uma gama enorme de posições e situações, em que um indivíduo pode ser atingido por projétil de arma de fogo”.
O Ministério Público não teve uma visão tão flexível. Em 30 de março de 2008, o promotor de Justiça Virgílio Antônio Ferraz do Amaral denunciou os guardas Orlando e Donizeti por homicídio doloso. “Confundindo-a como bandido, os indiciados atiraram contra a mesma, certeiramente, de trás para frente, na região parietal, não dando ao ofendido, desprevenido e inerme, qualquer chance de defesa”, afirmou. O promotor também acusou a dupla de inserir a garrucha na cena do crime, “com o fim de induzir em erro o juiz”. Já Andréa foi denunciada por falso testemunho (“fez afirmação falsa e calou a verdade como testemunha com o fim de obter prova, destinada a produzir efeito em processo penal”). Em 8 de junho de 2009, a juíza Liza Livingston aceitou a denúncia e pronunciou os réus. Os três aguardam um julgamento no tribunal de júri, ainda sem data.
É esse julgamento que a Prefeitura de São Paulo espera ser concluído para, então, tomar uma atitude. Em nota, a Secretaria Municipal de Segurança Urbana informou “que está em andamento um Processo Administrativo para apuração dos fatos e que o referido inquérito administrativo ainda não foi concluído, pois está aguardando o desfecho do processo criminal citado, segundo decisão do secretário municipal de segurança urbana, publicada no Diário Oficial da Cidade, em 23/10/2007”. Aproveitaram para ressaltar que tanto a pasta como GCM “não compactuam com qualquer desvio de conduta que possa resultar na prática de atos atentatórios contra a vida e a integridade física de qualquer pessoa”.
Na área cível, a ação por danos movida pela família de Leandro começou mal. A primeira decisão judicial, em 10 de julho do ano passado, julgou a ação improcedente. Para o juiz Thiago Massao Cortizo Teraoka, da 14ª Vara de Fazenda Pública, a fala dos guardas era mais convincente do que os indícios de execução apresentados pelo laudo necroscópico. “É a palavra de 5 GCMs contra uma conclusão da perícia”, apontou.
Na sentença, o juiz concluiu que o clima de medo vivido pelos guardas naqueles dias era justificativa suficiente para atirar no líder comunitário: “No contexto dos ataques do PCC ocorridos em 2003, quando pairava verdadeiro pânico sobre toda a população e policiais eram mortos em emboscadas e atacados em suas bases, simplesmente não havia como exigir dos guardas civis que se mantivessem inertes, quando da invasão (para mim verossímil) de Leandro à base da GCM”.
Já o acórdão de 18 de dezembro, que a família recebeu como um presente de Natal, foi por outro caminho, sem a mesma fé inabalável na fala das autoridades. “Os depoimentos dos agentes públicos prestados nestes autos e nos da ação penal são em alguns momentos contraditórios, não guardam similitude entre si e estão divorciados das provas amealhadas em ambas as ações”, afirma a decisão.
Nas suas alegações, a Prefeitura de São Paulo chegou a alegar que a filha de Leandro não merecia receber indenização por dano moral, porque, com três anos, ainda não teria maturidade para entender que seu pai havia sido assassinado. No acórdão em que resgatou a dignidade para o nome de Leandro Machado, o relator Reinaldo Miluzzi rebateu dizendo: “a dor da menor decorre justamente do fato de ter sido privada do convívio com o pai”.
Em nome da honra
Faz onze anos. Foi ontem? Foi hoje? A dor pela morte de Leandro, a vergonha pelo crime que o Estado juntou ao nome dele e o medo não são coisas que parecem diminuir conforme os anos passam. Tudo parece ainda muito presente, nas consequências vividas a cada dia por cada membro da família.
Para Maria Aparecida, uma doméstica aposentada de 68 anos, falar ou ouvir sobre a morte do filho é algo que a faz passar mal. Quando ouve os filhos me contando sobre a última noite de Leandro, pede em vários momentos que tomem cuidado com as palavras.
“Não tem problema, mãe. Está tudo nos autos”, responde Oseias.
“Eu sei, mas é que eu não gosto que falem disso”, Maria responde.
Ela conta que a morte do caçula a fez enfrentar crises de depressão que a deixaram prostrada em casa, sem sair da cama, por vários dias. Dali a pouco, ela sai de casa e se recosta a um muro, fechando os olhos e respirando com dificuldade, enquanto recebe um copo d’água das mãos da filha Débora. Sua pressão acaba de desabar.
“Quando mataram meu irmão, jogaram uma mancha no nome da família. Tem pessoas do bairro que passou a tratar a gente de outro jeito”, afirma Oseias. Ele próprio perdeu um trabalho de anos (“o melhor emprego que já tive”) depois que os noticiários disseram que Leandro havia sido morto ao realizar um atentado em nome do PCC. “Eu trabalhava numa empresa com transporte de materiais nobres. Pegava o caminhão e saía pelo estado inteiro levando cobre, berílio, latão, cobre, coisa de milhões de reais. Meu patrão dizia: ‘você é um negrão que eu adoro’. Depois que isso aconteceu e saiu no jornal, fui mandado embora”, narra.
A base da GCM onde Leandro foi morto é hoje um prédio abandonado, coberto de mato e pichações, mas a marca dos tiros continua no portão escuro. Oseias me leva até lá, junto com seu pai, José, um vigilante de 70 anos, também aposentado. Ele sofreu três acidentes cardiovasculares desde a morte do caçula, e por isso sua fala passou a misturar memórias de agora com antigamente, e em vários momentos o que ele diz parece não ter relação com o que é falado à sua volta. Mas, ao contemplar as marcas de tiro no portão, José fala com toda a clareza:
“Quem errou tem que pagar. E não é pelo dinheiro. É pela honra.”