Conhecida desde os 8 anos nas ruas de Santa Cecília, Mishelly foi acusada de tentativa de latrocínio contra publicitário em 2017; moradores se uniram para provar sua inocência após TV Record chamá-la de ‘serial killer’
Quando pisou na Alameda Barros, Mishelly não conseguiu conter as lágrimas. “Quando eu voltei, eu senti muita tranquilidade”, desabafa. A rua, que se conecta com a das Palmeiras, a Martim Francisco, e forma o bairro de Santa Cecília, no centro da capital paulista, e como costuma dizer, “seu quintal”, ficou meses sem vê-la.
Entre outubro e novembro de 2018, os moradores da região começaram a estranhar a ausência da jovem de 22 anos, que há cerca de 14 vivia nas ruas do bairro. “Uma moradora de rua chegou a falar para mim que ela estava internada. Eu falei ‘que bom’, porque vira e mexe ela ia até o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), ficava um mês, voltava. Mas eu senti que tinha alguma coisa errada”, conta Bruna Franzoi, terapeuta, moradora e conselheira participativa de Santa Cecília.
Há pelo menos seis anos, as duas começaram a estabelecer uma relação de companheirismo e amizade. “Era na época daquela novela ‘Amor à Vida’ (2013), tinha o personagem da Paolla Oliveira, eu usava uns vestidos compridos, ela me parou uma vez ‘Ê Paolla Oliveira, que elegante’!”, lembra Bruna. “Ela falou que precisava de um shampoo de argã porque o cabelo estava quebrado, foi aí que a gente começou a virar amiga”, diverte-se.
“Ela fazia uns trabalhinhos, tipo varrer rua, e teve um dia que ela juntou R$ 20. Ela pediu o celular da moça de uma loja aqui perto, me ligou e me convidou para tomar uma café na padaria”, lembra. “Eu tinha levado só R$ 2 para tomar um suco e ela disse ‘pede o que você quiser porque hoje é por minha conta’. Foi um gesto que me sensibilizou muito e se hoje eu atuo como conselheira é por causa dela”.
A poucos metros de onde Bruna mantém um espaço terapêutico, na Rua Martim Francisco, fica um salão de beleza que Mishelly também costumava frequentar. “Vira e mexe ela vinha aqui lavar o cabelo, a gente conversava com ela. Às vezes pegava o telefone para mandar um recado para mãe”, conta Doraci de Fátima Leite, que há cinco anos é cabeleireira no local. “É uma pessoa que a gente tem um carinho grande. Algumas clientes achavam estranho ter uma relação assim, mas todo mundo aqui não tinha o que reclamar dela”.
Foi no final de semana de 18 de novembro que Bruna soube por uma vizinha do prédio onde mora que Mishelly tinha sido presa. “Eu estava com os documentos dela, fui até a base da polícia para tentar localizá-la e fiquei muito preocupada porque ela nunca fez mal a ninguém. Se fosse para fazer alguma coisa, ela teria feito comigo porque eu já levei ela para minha casa”.
A prisão
No dia 11 de outubro de 2018, Mishelly estava na região do Largo Coração de Jesus próximo à Cracolândia, no bairro da Luz, também no centro. No começo daquele mês, ela tinha avisado Bruna que iria até o local para cuidar da mãe, que é dependente química. “Eu estava ajudando ela, levando roupa, catando latinha, montando barraco. A gente tava indo pro projeto Recomeço [programa do governo do Estado que atende usuários de drogas]”, explica Mishelly.
Mishelly sempre tentava manter contato com a mãe desde que deixou a casa da família, na região. “Eu surtei com meus pais porque eu queria me assumir, eles não me aceitaram, eu fugi com 7 anos”. Com a pouca idade, conta que chegou a ir para Santos, no litoral paulista, com outras travestis, passou dois meses e voltou para a capital. “Eu me virava, catava latinha, morei num abrigo da Mooca [na zona leste], estudei no João Kopke [escola pública estadual]. Aos 9 anos eu já me montava, não dava confiança para ninguém”, lembra.
Aos 8 anos, ela teve contato com cigarro, depois maconha, já baforei cola, usava pedra. “Se eu tenho os meus problemas, eu não vou querer descontar em você e eu mesma procurava o CAPS”. Naquele dia, sem saber que havia um mandado de prisão expedido em agosto contra ela, Mishelly foi presa e ficou por uma semana numa delegacia antes de ser levada para o CDP (Centro de Detenção provisória) de Pinheiros II. Com capacidade para 793 presos do sexo masculino, o CDP abriga 1612 pessoas, de acordo com dados da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária).
O reconhecimento
A pedido do MP (Ministério Público), o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) decretou a prisão preventiva de Mishelly com base numa reportagem veiculada pela TV Record em 19 de setembro de 2017 e em um reconhecimento questionável.
No dia 14 de setembro de 2017, por volta das 0h45, um publicitário de 25 anos contou a policiais militares que caminhava pela Avenida Angélica quando “se viu seguido por uma travesti”, tentou acelerar o passo e foi alcançado por ela, que teria dito a ele que “não queria roubar, mas queria que a vítima desse alguma coisa”. O rapaz disse “que não tinha nada e acelerou”, momento em que sentiu um golpe na nuca, que achou ser um soco. Ao colocar a mão no local sentiu que estava ensanguentado e “levou mais um golpe de faca da travesti”. A agressora teria saído do local com a mochila dele e o rapaz, corrido dois quarteirões onde foi “amparado por populares” até a chegada da polícia, que o levou ao pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia.
No B.O. (boletim de ocorrência), a agressora é descrita como “moreno claro, cabelo comprido e ralo, de cor clara, quase loiro, tendo entre 1,65m e 1,70m de altura e trajava blusa azul e bermuda”. No texto, ainda é informada presença de câmeras de segurança na altura do número 500 da Avenida Angélica. O documento foi elaborado por volta das 3h28 do mesmo dia da ocorrência, no 2º DP (Bom Retiro), pelos pais do rapaz, que receberam as informações do filho para registrá-lo.
Dois dias depois, os PMs Ikaro Almeida Santos e Nerivaldo Aparecido Pinto, da 2ª Cia do 13º BPM, que não atenderam essa ocorrência, informaram que receberam em um grupo de moradores do bairro no Whatsapp características de uma travesti que teria cometido o roubo, sem especificar se era uma descrição do B.O. ou do que foi informado no grupo. Os policiais afirmam que em patrulhamento identificaram Mishelly como uma travesti de “características semelhantes” e a abordaram.
Nesse segundo boletim, os PMs afirmaram que solicitaram o documento dela e questionaram sobre o envolvimento no crime, que foi negado. Não encontraram nada de ilícito com ela, liberando-a.
Três horas depois, eles informaram que entraram em contato com o publicitário e enviaram uma foto de Mishelly, que a teria reconhecido “no mesmo instante”. Com isso, foram atrás novamente dela para levá-la ao DP, onde foi apontada como a autora do crime pela vítima.
No entanto, no depoimento do publicitário no dia 16 de setembro de 2017, ele afirma que no dia anterior recebeu a foto de uma travesti por um dos policiais, mas que não a reconheceu. No dia seguinte, recebeu a foto de Mishelly, que “reconheceu com um pouco de dúvida”. Ao se deslocar ao 2º DP para reconhecer a suposta agressora, “a reconheceu sem qualquer dúvida”. Naquele dia, o rapaz esmiuçou o que havia acontecido, afirmando que uma travesti “noiada” o abordou e que ela ” queria qualquer coisa para comprar uma pedra, que poderia ser seu celular ou dinheiro” e, como ele não se importou, foi atravessar a rua e sentiu o golpe na nuca. No segundo golpe, colocou a mão na frente, que foi atingida. Ele afirmou, ainda, que ficou 12h na Santa Casa sendo atendido.
O auto de reconhecimento foi feito no mesmo dia, em que é apontado no documento que o publicitário descreveu as características da suposta agressora e reconheceu Mishelly. Ela conta que foi abordada pelos policiais e “eles disseram para ir ao DP com eles. Não me algemaram nem nada”. “Lá eu fui reconhecida pela vítima e fiquei muito nervosa porque não fui eu”. Mishelly ficou cerca de sete horas na delegacia e foi liberada depois.
O artigo 226 do Código de Processo Penal prevê algumas medidas para o reconhecimento, em que a vítima ou a testemunha deve ser convidada a fazer primeiramente a descrição da pessoa a ser reconhecida para depois serem apresentados um conjunto de fotos e suspeitos. De acordo com pesquisador Gustavo Noronha de Ávila, doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e um dos principais especialistas brasileiros em psicologia do testemunho, em entrevista à Ponte no ano passado, realizar um reconhecimento prévio por Whatsapp não é correto porque acaba se tornando uma forma de sugerir um culpado à vítima e gerar falsas memórias.
Para a defesa de Mishelly, um dos principais “absurdos” do caso é que o boletim de ocorrência foi feito pelos pais do rapaz e não pela própria vítima, além das características citadas no documento não baterem com a foto dela tirada na delegacia. Na época, ela usava cabelos curtos claros e tem 1,54m de altura.
No dia do reconhecimento, o delegado titular Francisco José Ferreira de Castilho, do 77º DP (Santa Cecília), instaurou inquérito para o crime de roubo (artigo 157).
‘Quem comete crime e dorme do lado da polícia?’
Três dias depois, em 19 de setembro de 2017, o programa “Balanço Geral”, da TV Record, veiculou a foto de Mishelly, citando seu nome de registro, com a seguinte manchete “Travesti é procurada após atacar com uma navalha moradores de Higienópolis (SP)”.
O apresentador Reinaldo Gottino, antes de soltar a matéria, afirma que uma travesti que “costuma atacar moradores de Higienópolis com uma navalha” está “foragida” porque não foi presa em flagrante. Na matéria, o repórter afirma que conversou com a mãe do publicitário, que lhe disse que ele tomou mais de 100 pontos e passou por cirurgia, após ser golpeado quando saía do cinema do Shopping Higienópolis. No vídeo de 3 minutos e 44 segundos, o jornalista aponta que cinco pessoas teriam dito ter sido vítimas de Mishelly. Dois transeuntes foram entrevistados: um deles, que disse já ter dado dinheiro à Mishelly, disse que não sabia que ela era agressiva. Outro senhor alegou que quando se negava dinheiro assim que ela pedia, ela saía “brava e xingando”.
Na mesma reportagem é citada uma postagem de “repassando” denunciando uma serial killer (assassino em série, em inglês) que estaria atacando na região. Abaixo da postagem, as fotos dos ferimentos do publicitário.
No entanto, Mishelly não estava foragida porque não havia mandado de prisão contra ela. Também não havia nenhuma queixa de outras supostas vítimas. Ela não tinha passagem pela polícia.
No dia seguinte à transmissão da matéria, o delegado Francisco José Ferreira de Castilho, do 77º DP, entrou com uma representação de prisão preventiva contra Mishelly ao TJ, alegando que ela “está colocando a população em pânico”, “bem como o mesmo não tem residência fixa” para sustentar o pedido.
A decisão da Justiça nem tinha saído, quando o delegado Ailton de Camargo Braga, do 74º DP (Parada Taipas), fez um relatório final do inquérito no dia 25 de setembro de 2017 para apreciação do Ministério Público, apontando que Mishelly foi formalmente reconhecida pelo publicitário e ela foi indiciada pelo crime de roubo.
Em meio a essa tramitação, a reportagem já havia sido compartilhada em diversos grupos. Dias depois, Mishelly conta que estava dormindo na Rua Jesuíno Pascoal quando foi agredida por duas pessoas. “Eu acordei com um tapão que quebrou um dente no fundo na boca e levei um chute na perna. Não vi direito quem eram, mas saí correndo”, lembra.
Desde então, ela, que às vezes dormia próximo à base da PM no Largo Santa Cecília, em frente à estação de metrô de mesmo nome, passou a ficar no local com mais frequência. Naquela semana, a autônoma Cleuma de Souza, que há 15 anos mora no bairro e costuma frequentar o salão de cabeleireiro, gravou um vídeo de Mishelly perto da base da polícia em que ela explica que não havia cometido crime algum. “Gente, foi uma sacanagem que aconteceu com esse rapaz. Conheci a vítima, não fui eu. Estou há 14 anos na rua e nunca precisei fazer isso. Eu tô dormindo perto da polícia porque eu também tenho medo de ser atacada à noite”, dizia na gravação.
“A Mishelly serial killer? Quando a gente viu isso, a gente não acreditou. A gente sabe que ela nunca roubou ninguém, ela não é agressiva, as lojas deixam ela entrar, no salão lavavam o cabelo dela. Quando ela usava droga, ela ficava mais reclusa, não falava com ninguém, não ia para cima das pessoas”, enfatiza Cleuma. “O que a gente sabe é que tinha uma travesti que correspondia a esse perfil e era mais agressiva, ficava mais pelo lado de Higienópolis, mas ela acabou sumindo”, afirma.
Em dezembro de 2018, quando a Ponte teve conhecimento da história, perguntamos a policiais da base e que fazem patrulhamento na região sobre o relacionamento com Mishelly. “Ela é uma menina do bem, não tem maldade nenhuma. Às vezes dormia aqui mesmo do lado da base, nunca deu problema para a gente, pelo contrário, ela conversava com a gente”, disse um dos PMs.
Os moradores que a conheciam há um tempo ficaram com medo de um possível linchamento devido à repercussão. “Eu tive que colocar um lenço para cobrir o rosto dela e levar para um hotelzinho na Rua Apa. Foi horrível, a Mishelly ficou três dias e foi bem difícil por causa da abstinência e porque ela sempre foi muito livre. Quando eu abri a porta do hotel para ela sair, parecia um pássaro saindo da gaiola”, lembra Bruna Franzoi. “O que mais impressiona a gente é que ela sempre ficava na mesma região, não estava sendo procurada e dormia do lado da polícia. Quem comete crime e dorme do lado da polícia?”, questiona.
Com isso, moradores começaram a colar lambe-lambes nos postes do bairro escritos “A travesti Mishelly daqui de Santa Cecília é inocente”.
O jornalista Wagner Machado, que mora há quase 4 anos no bairro, decidiu fazer um abaixo-assinado para que a emissora se retratasse. “Neste caso, baseados em uma denúncia frágil, antes de qualquer acusação formal e sem conceder direito à defesa, o programa expôs a foto e o nome da acusada. É dizer: condenou‐a antecipadamente, desrespeitando tanto o devido processo legal quanto as mais básicas noções éticas do jornalismo”, destacava o texto.
Até o dia 28 de setembro de 2017, quando Wagner enviou a petição online para a produção do programa, tinham sido contabilizadas 1.288 assinaturas. Até a publicação desta reportagem, o número de assinaturas estava em 1.335. À Ponte, Wagner compartilhou as trocas de e-mail com a produção do “Balanço Geral”. A última delas era essa:
“Wagner, existe uma edição e nem tudo que é colhido na rua vai para o ar. Portanto, há sim depoimentos que garantem a agressividade dela, em determinados momentos. Infelizmente passamos aquela manhã na Santa Cecilia e Higienópolis e não encontramos a Mishelly, a fim de que ela desse sua versão. De qq (sic) maneira, vamos mandar um produtor no 77 DP para saber o andamento no inquérito e se a policia descartou a participação dela na agressão. Como te falei, a reportagem foi embasada na percepção da policia de que ela era a agressora, corroborada pelo depoimento da vitima.
Mas vamos nos falando e esclarecendo esse episodio“.
Wagner disse que a resposta final veio por telefone no mesmo dia. “Eles me ligaram dizendo que não iriam se retratar porque o delegado disse que ela seria indiciada e era a principal suspeita”.
De roubo para tentativa de latrocínio
O Ministério Público só recebeu o material do inquérito policial no dia 19 de outubro de 2017. Já no recebimento, a 1ª Promotoria de Justiça Criminal apontou que “por ora, entendo que não seja o caso de decretação de preventiva, até porque o suspeito não manifestou oposição ao reconhecimento pela vítima”. O MP ainda solicitou o laudo do IML e as imagens de câmera de segurança que não foram pedidas durante o inquérito e que acabaram não sendo anexadas no processo.
No dia 31 de outubro de 2017, o promotor Matheus Jacob Fialdini denunciou Mishelly por roubo e solicitou que o publicitário e os PMs Ikaro e Nerivaldo fossem ouvidos.
O TJ pediu vistas para que o MP se manifestasse sobre a tipificação do crime. Em 19 de dezembro de 2017, o mesmo promotor solicitou “com urgência” que o vídeo da reportagem fosse juntado ao processo bem como o laudo pericial e pediu novas vistas para o aditamento da denúncia para o crime de latrocínio (roubo seguido de morte) tentado. “Sem prejuízo, tendo em vista a gravidade do crime de roubo já narrado e o repercussão do caso, com indiscutível abalo a ordem pública, notadamente no bairro em que o delito se verificou, requeiro seja decretada a prisão preventiva do acusado”, escreveu o promotor.
No dia 8 de janeiro de 2018, o juiz Luis Fernando Decoussau Machado concede os primeiros requerimentos e abertura de nova vista pro MP para aditamento da denúncia. No entanto, apreciaria o pedido de prisão preventiva com o devido aditamento da denúncia.
No laudo realizado um dia depois do ocorrido, o IML (Instituto Médico Legal) concluiu que os ferimentos do publicitário eram de natureza “leve” e que não não foi produzido por meio cruel nem resultaria incapacidade.
Em 27 de julho de 2018, a promotora substituta Ana Paula Moreira Mattos providenciou a gravação da reportagem da TV Record e solicitou o prontuário médico do publicitário à Santa Casa, além da decretação da prisão preventiva de Mishelly. Na denúncia, a promotora afirma que “há provas da existência de crime e da autoria” da tentativa de latrocínio, com base nas declarações da vítima e dos policiais, e que “há, ainda, notícias de que o denunciado perpetrou o mesmo delito ora tratado contra outras vítimas, o que evidencia a sua periculosidade” – embora a reportagem da Record tenha sido a única a tratar do caso.
Além disso, mesmo não tendo o prontuário em mãos, o MP reiterou as informações da reportagem, citando que o publicitário levou mais de 100 pontos e passou por cirurgia de emergência. “É certo que a vítima somente não morreu por circunstâncias alheias à vontade do agente, haja vista ter sido prontamente socorrida por populares.” A promotora ainda reiterou o pedido de prisão preventiva.
Três dias depois, a juíza Daniela Martins de Castro Mariani Cavallanti recebeu a denúncia por tentativa de latrocínio e acatou todos os pedidos do MP, decretando a prisão preventiva. “É certo que as circunstâncias do delito, supramencionadas, apontam personalidade dotada de estruturação criminosa. Ressalto que considerações acerca da personalidade do agente não tem, obviamente, o sentido de julgamento, porém, visa-se, apenas, avaliar a necessidade da prisão provisória em função da personalidade do acusado”, argumentou a magistrada. Ela ainda solicitou que Mishelly, o publicitário e os PMs fossem intimados para audiência de instrução em outubro de 2018.
O endereço que o sistema do Tribunal de Justiça localizou referente aos dados de Mishelly foi de um abrigo para adolescentes na região da Mooca, que ela já tinha deixado aos 18 anos. Em 20 de agosto de 2018 foi expedido o mandado de prisão, que não foi cumprido. Ela foi presa no dia 11 de outubro do ano passado e foi levada para o CDP de Pinheiros II.
Dias depois a diretoria técnica da Santa Casa de Misericórdia informou ao TJ que não havia prontuário médico do publicitário no dia 14 de setembro de 2017. De acordo com o documento, ele deu entrada no hospital e “chegou a abrir ficha de atendimento”, mas “evadiu-se do hospital antes de ser chamado para avaliação médica”.
Não soltar a mão de ninguém
Quando Bruna soube que Mishelly estava presa, preocupou-se com a defesa da amiga e chegou a postar em grupos do bairro sobre o caso para ter auxílio jurídico. Decidiu então montar uma vakinha online para contratar um advogado. Na postagem, dois advogados que moram pela região, Naim Achcar e Débora Nachmanowicz, entraram em contato. Depois, acionaram Flavio Grossi. Os três resolveram se empenhar no caso de maneira pro bono. No pedido de liberdade que realizaram em 29 de novembro do ano passado, dentre as questões solicitadas sobre as provas, foi pedida a referência ao nome social. Até aquele momento, Mishelly estava sendo tratada pelo nome de registro e pelo gênero masculino.
Só depois que os três entraram no caso, Bruna teve notícias de Mishelly, que encaminhou uma carta:
Em anexo à petição dos advogados também havia diversas declarações de moradores do bairro descrevendo sua relação com Mishelly, inclusive do músico Thiago Pethit, que deu visibilidade ao caso assim que teve conhecimento que a amiga estava presa. Os moradores também começaram a providenciar itens de higiene, roupas e alimentos para ela.
Os advogados questionaram as provas baseadas na reportagem da TV Record e no reconhecimento considerado irregular e incompatível. Em dezembro de 2018, a juíza Daniela Martins de Castro Mariani Cavallanti acatou o pedido de referência ao nome social, mas negou o pedido de liberdade provisória. A magistrada alegou que a defesa não poderia “fragilizar” o auto de reconhecimento e que o publicitário “pôde visualizar com clareza as características físicas da vítima”. Sobre o reconhecimento irregular, a juíza disse que “não há que se falar em reconhecimento frágil utilizando-se do reconhecimento fotográfico, uma vez que foi realizado reconhecimento pessoal positivo sem qualquer dúvida da vítima”, além de que “não merece crédito a alegação de que as características fornecidas pela vítima não encontram semelhança com as características da ré, haja vista a fotografia de fls. 14 demonstra tratar-se de travesti de pele morena clara, cabelo de cor clara e estatura em consonância com o informado”. E afirma que mesmo Mishelly não ter sido flagrada com os objetos, ela teve “teve tempo hábil para livrar-se dos objetos furtados”.
‘Provas insuficientes para condenação’
No dia da audiência, em 16 de janeiro, o juíz Luis Fernando Decossau Machado absolveu Mishelly das acusações, já que o publicitário não a reconheceu com absoluta certeza como autora das agressões, “o que seria essencial para juízo condenatório”.
Além disso, os policiais revelaram que eles mantinham, assim como as pessoas do bairro, um relacionamento “amistoso” com Mishelly, informando em depoimento que a conheciam na região e que não tinham conhecimento de delitos que ela tenha praticado – e que só a identificaram como autora das agressões porque a vítima a reconheceu.
A notícia repercutiu entre os moradores com muita alegria. No dia seguinte, por volta das 18h, Mishelly deixou o CDP de Pinheiros II. Pelas redes sociais, Bruna fez uma transmissão ao vivo avisando que ela tinha voltado. “Muito obrigada por terem acreditado em mim”, dizia Mishelly sem conseguir conter as lágrimas.
No momento, ela está morando com a sua madrinha. “Ela vai começar a trabalhar aqui no espaço terapêutico e a gente vai arrumar um cantinho para ela. A rua não é um lugar seguro para ela. Ela não sabia que tinha direitos e agora vai passar por uma reabilitação social que o próprio governo deveria dar. Não fui eu que adotei a Mishelly, a Mishelly me adotou porque ela me escolheu como pessoa confiável para estar com ela nesse caminho de mudança”, aponta Bruna.
“O meu sonho é ajudar as pessoas, ter meu canto e cuidar da minha mãe. É uma coisa que vem de mim porque eu fui ajudada. As pessoas precisam reconhecer e dar valor àquilo que elas têm. O bairro pra mim é uma família”, desabafa Mishelly.
Bruna e Mishelly pretendem dar continuidade ao Projeto Fada (Fazer Amigos, Distribuir Amor), que antigamente se chamava “Fazendo a Diferença com Mishelly Wylasck” que promove ações socioeducativas no bairro de Santa Cecília.
Com a nova perspectiva, Mishelly abandonou o sobrenome artístico de Wylasck e adotou “Luz” para representar esse momento.
“Ela é iluminada, é filha da Santa Cecília”, concluiu Bruna.