Visibilidade e representatividade marcaram discursos na ‘1ª Marcha do Orgulho Trans’, nesta sexta-feira; ‘Será que é tanto assim pedir pelo direito de existir?’, questiona ativista
No mês do Orgulho LGBT, uma marcha exclusiva para pessoas transexuais e travestis aconteceu pela primeira vez no Largo do Arouche, importante ponto LGBT da cidade. Com concentração às 14h, a marcha permaneceu parada até as 17h, quando começou a andar pelo centro de SP. Às 20h, de volta ao Arouche, o evento foi encerrado. Discursos de personalidades importantes para o movimento trans, como Jaqueline Gomes de Jesus, Neon Cunha, Renata Perón e Giovana Baby, dividiram espaço com shows de MC Dellacroix, DJ Ledah, Natt Maat, Erick Barbi, Tiely Queen, MC Xuxú, Johnny Hooker e Pepita.
As mortes de Matheusa Passareli, Marielle Franco e Dandara dos Santos foram lembradas durante todos os discursos, incluindo um minuto de silêncio em homenagem às vítimas. O direito à vida, empregabilidade e representatividade foram falas frequentes dos que falaram durante a marcha.
Para Hailey Kaas, ativista e escritora, é importante ter uma marcha separada das demais, pois a demanda da população trans é específica. “A gente está em um momento em que a gente tem que lutar não só pela representatividade LGBT, mas pela representatividade trans e por mais empregos, empregos dignos e de qualidade, e por saúde”, defende.
O ator Caio Jade também acredita que é preciso separar a luta trans da luta LGBT. “Pela primeira vez a gente está se dissociando, num certo sentido. É muito importante que a gente esteja junto da Parada Gay, porque ainda é gay, entendo essa importância de estar junto para disputar espaço, mas é fundamental que a gente se dissocie porque a gente tem que dizer que as questões de identidade de gênero são diferentes das questões de sexualidade, então a gente precisa trazer as nossas pautas, a gente precisa se unir, a gente precisa se encontrar porque a gente não se encontra, a gente não se vê”, explica.
A psicóloga e professora Jaqueline Gomes de Jesus enfatiza a importância histórica desse evento acontecer em São Paulo. “É significativo, é uma visibilidade para todo o país das questões que a gente traz, dessas especificidades da população trans, das nossas demandas que são particulares. Então é fundamental, é muito importante. A gente marca aqui a primeira e que sigam outras para que essa questão, que é principalmente política, se mantenha e que a visibilidade trans se torne cada vez mais representatividade trans, que a gente não seja vista só como assunto, mas como aquelas que tem que estar em todos os espaços”, afirma.
Para Klaus Dimitri, educador no Museu da Diversidade Sexual, ter um evento para as demandas trans dá visibilidade para homens trans. “A visibilidade é importante, o recorte da visibilidade é importante, nós estarmos todos juntos, todas as pessoas trans, as travestis, a população LGBT unida é muito importante. Mas cada movimento ter a sua representatividade, mostrar que existe, é muito importante, principalmente pra gente que é homem trans. Quando a gente passa pelo processo hormonal, a gente se torna invisível para sociedade. Então a gente perpassa pelos lugares e se a gente não se autodeclara como homem trans as pessoas acham simplesmente que são pessoas cis, homem cis. Essa invisibilidade ao mesmo tempo que é boa, pois ela nos traz uma tranquilidade para ir e vir, ela é ruim por nos deixar invisíveis na sociedade, nas questões de saúde, nas questões de acesso aos lugares”.
A ideia de ter a primeira marcha para pessoas trans surgiu de uma conversa entre grupos de homens trans de diferentes movimentos em 2017. A necessidade crescente de dar visibilidade para as lutas trans foi o principal motivador para criação do evento. Majoritariamente com pessoas trans na produção e nos shows, a escolha da data da marcha foi proposital, para acompanhar a agenda turística com pautas LGBTs, por decorrência da Parada do Orgulho LGBT que acontecerá no domingo (3), e segue os parâmetros internacionais: Marcha Trans na sexta, seguida pela Caminhada Lésbica e Bissexual no sábado e com encerramento no domingo com a Parada LGBT.
Para Lam Matos, organizador da marcha e coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT), a importância da marcha é trazer visibilidade para pessoas trans, travestis e não-binários. “[A gente quer] mostrar que nós existimos, que nós somos pessoas também necessitadas de direitos. A gente sabe que a população trans no geral cada dia tem menos chance de sobreviver dignamente. Quando a gente entende que o Brasil é o país que mais mata e registra assassinatos de pessoas trans por motivos de ódio e preconceito”, explica. Lam também ressaltou a dificuldade que trans enfrentam para conseguir emprego formal, no acesso à saúde, à educação e ao lazer.
A rapper MC Dellacroix conta que ainda é muito difícil ser uma pessoa trans no rap, pois, para ela, o espaço ainda é dominado por homens machistas. Ela reforça, também, a necessidade de ter um evento para pessoas trans, além dos eventos LGBTs, para mostrar que pessoas trans estão vivas. “A gente já tá aí 18 anos tendo a Parada LGBT, que se diz LGBT, mas ainda não é um espaço confortável para todos os corpos, corpos trans, corpos não-binários, corpos estranhos. Temos que celebrar a nossa existência porque a gente tá viva e vai continuar viva”, comemora.
A presidente do Fórum Nacional de Travestis Negras e Negros (FONATRANS), Giovana Baby, relembra que outras marchas de pessoas trans já aconteceram na década de 90. “Eu não considero essa como a primeira marcha, pois nós já tivemos várias outras marchas nos anos 92, 93, 94, 95 e 96. Tivemos marcha no Rio de Janeiro, no Espírito Santo, no Ceará e em São Paulo nesses anos. Essa é a primeira da nova etapa de discussões que estamos trazendo para a sociedade nos perceber e nos respeitar. A importância é inegável, porque está mostrando para a sociedade que somos cidadãs, que existimos, que participamos do processo democrático, nós votamos, nós pagamos todos os impostos, então temos que ser vistas e respeitadas como as demais pessoas da sociedade”.
A publicitária e ativista Neon Cunha reforça a importância da escolha do local da marcha. “O mais importante é estar no Arouche que foi, durante muito tempo, cerco de perseguição dessa população. A visibilidade já está no nome: marcha do orgulho trans. Precisamos pensar na construção dessas identidades, pensar na vulnerabilidade e nesse lugar que a gente ocupa”.
Wiliam Peres, professor universitário e integrante do Coletivo Elite Trans, enfatiza a importância do ato. “É um momento importante para que a sociedade reveja os seus preconceitos, reveja as suas limitações para pensar no respeito ao ser humano. É isso que essas meninas e esses meninos estão pedindo: me deixe viver, me deixe ter acesso a saúde, me deixe ter acesso ao trabalho, me deixe ter o direito de ter um amor na minha vida, me deixa ter o direito de ter uma família. Será que é tanto assim pedir para as pessoas o direito de existir? De poder circular no mundo sem levar pedrada?”, provoca. “Isso daqui é uma expressão de amor, é uma festa de amor, porque o amor não tem que ter sexo, não tem que ter gênero”, conclui Wiliam.