Três PMs são afastados por suspeita de estupro coletivo em Fortaleza

Vítima, que estaria bêbada e sem condições de reagir, conta que foi atacada por policiais após aceitar carona de uma viatura, no Conjunto Ceará

Imagem de divulgação da PM do Ceará, que investiga suspeita de estupro coletivo contra vulnerável cometido por três de seus homens | Foto: Reprodução Facebook | PMCE

Já era por volta de meia-noite e meia, do último domingo (23/01), quando uma mulher se desencontrou de alguns amigos e resolveu aguardar um carro do Uber no bairro Conjunto Ceará, localizado na região sudoeste da cidade de Fortaleza (CE). Foi quando três policiais militares do estado ofereceram uma carona a ela. Após entrar na viatura, a mulher afirma que foi vítima de um estupro coletivo.

Em uma decisão publicada no Diário Oficial do estado da última sexta-feira (28/01), o controlador geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário, Rodrigo Bona Carneiro, determinou o afastamento preventivo, por 120 dias, dos PMs suspeitos do crime: o subtenente Raimundo Flávio Barros e os soldados Israel Pablo dos Santos e Carlos Henrique da Rocha Rodrigues. Os PMs permanecem soltos e recebendo salários, mas com a suspensão do “pagamento de qualquer vantagem financeira de natureza eventual” que estivessem recebendo.

Segundo o relato da vítima, pouco tempo depois de deixar o bairro Conjunto Ceará, a viatura parou em uma estrada de barro, onde os policiais pediram para a vítima descer. Ela se recorda de que “um dos policiais apertou seu seio” e que ela “ficou sem o short”. A moça afirma que foi estuprada pelo motorista da viatura e por um segundo policial e, “como estava com muito medo e sob efeito de álcool, não teve reação”. Ela diz não se lembrar se o terceiro PM também a estuprou.

A mulher relata que, após o estupro, os policiais a deixaram na casa de uma amiga, onde ela tomou banho, contou o que havia acontecido e se dirigiu ao 10º Distrito Policial para registrar o crime. Ela fez exame de corpo de delito no Hospital São José, onde recebeu a medicação para vítimas de violência sexual.

As escalas de trabalho dos policiais foram um dos elementos utilizados pela Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública para identificar os militares que estavam trabalhando na viatura 17651 no horário e dia declarado pela vítima. A decisão do órgão de controle aponta que foram apresentados “elementos mínimos de autoria e materialidade suficientes, consubstanciados, principalmente, pelo depoimento prestado pela vítima”.

Controladoria Geral de Disciplina do Ceará (CGD) do Ceará descobriu identidade considerou relato da vítima para exigir afastamento dos PMs |  Foto: Divulgação/CGE

Caso não haja conclusão do processo administrativo no prazo estabelecido, de 120 dias, os policiais poderão retornar às atividades administrativas, com restrição ao uso e porte de arma, até a decisão de mérito disciplinar.

Nos últimos dois anos, os casos de crimes sexuais em Fortaleza têm se mantido em nível constante: em 2020 foram notificados 566 casos e, no ano anterior, 553. No estado do Ceará como um todo, houve um aumento: os casos passaram de 1.829, em 2020, para 1.946 em 2021, sendo que 86,59% das vítimas foram mulheres, conforme dados da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública. São considerados crimes sexuais o estupro, a violação sexual mediante fraude, o assédio sexual, a exploração sexual e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual, conforme a Lei n° 12.015/2009.

Estupros fardados

Abusos sexuais cometidos por policiais militares ganharam repercussão recentemente. Em abril de 2021, a soldado Jéssica Paulo do Nascimento, do 45° Batalhão da Polícia Militar do Interior, em Praia Grande, no litoral de São Paulo, denunciou o tenente-coronel Cássio Novaes por ameaças de morte, perseguição no trabalho e assédio sexual, ocorridos desde 2018, quando ela atuava na capital.

Depois de sofrer diversas pressões de seus superiores, Jéssica afirma que decidiu sair da corporação em maio do ano passado. Já o tenente-coronel foi promovido a coronel e aposentado da corporação. As investigações sobre os supostos crimes cometidos contra Jéssica continuam.

Ainda em julho do ano passado, os soldados Danilo de Freitas Silva e Anderson Silva da Conceição foram absolvidos pela Justiça Militar de São Paulo da acusação de terem estuprado uma jovem de 19 anos, em 2019. Ela afirmou ter sido obrigada a fazer sexo dentro da viatura quando pediu uma carona em Praia Grande.

Em setembro, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo instaurou uma investigação contra o juiz do Tribunal de Justiça Militar, Ronaldo João Roth por suposto favorecimento ao advogado de Anderson, José Miguel da Silva Junior, ambos são colegas de trabalho em uma faculdade de Direito e interagiram intensamente nas redes sociais. Na época, o magistrado negou a suspeição e lembrou que o próprio Ministério Público pediu a absolvição dos réus no caso.

O Estado que estupra

O Estado que deveria dever prover a segurança pública, através de seus agentes, é o mesmo que promove e comete a violência sexual contra as mulheres, na visão de Claudia Patricia de Luna Silva, vice-presidente das Prerrogativas da Mulher Advogada na Comissão de Prerrogativas da da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo). “Ainda é natural, é legítimo se apropriar dos corpos de mulheres e arranjar uma desculpa para minimizar a culpa de quem comete a violência sexual”, salienta.

Sobre a denúncia de estupro coletivo praticado pelos três policiais de Fortaleza, a advogada critica o fato de a PM apurar as suspeitas na esfera da corporação e não como um crime militar, até o momento — a PM afirma que ainda pretende abrir um inquérito policial militar sobre o caso. “A corporação está tratando o fato como infração disciplinar, sendo que no mínimo deveria ser classificado como crime militar, critica Claudia.

“Nós observamos novamente uma tolerância do Estado que tende a minimizar, ou não reconhecer a responsabilidade dos agentes que a cometem, por vezes são de segurança pública, ou agentes de saúde, contra pacientes”, aponta a advogada.

Para compreender a ocorrência da prática da violência sexual dentro das instituições estatais, Claudia Patricia de Luna Silva afirma que é preciso olhar o caráter histórico que constrói a cultura do estupro na nossa sociedade, desde a colonização portuguesa.

“A colonização era feita pelos europeus que contratavam os bandeirantes, cuja função era explorar novas terras. Essa conquista era simbolizada pela apropriação dos corpos das mulheres que estavam nesse caminho”, analisa. “A apropriação dos corpos das mulheres também simbolizava a apropriação dos territórios. Através do estupro, era importante simbolizar que se estava invadindo uma fronteira, isso ocorre nas demais culturas para além do Brasil, asiática, africana e do Oriente Médio. Quando nós falamos de gênero, é algo que perpassa o tempo, o espaço e as culturas.”

O mesmo continuou ocorrendo durante a ditadura civil-militar de 1964 a 1988, sob o argumento de “proteção” ao Estado. “No período da ditadura, uma forma de humilhar, de causar violência psicológica, de aniquilar a autoestima das mulheres que participaram da luta armada, do processo de reconstrução da democracia do país, era o estupro”, explica a advogada.

Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, mostram que o estupro ainda é recorrente no Brasil. O documento, feito a partir dos boletins de ocorrência registrados em 2020, mostra que os casos de estupro em geral e de vulnerável diminuíram entre 2019 e 2020, mas se mantêm altos: foram 60.460 casos em 2020, ante 69.886 em 2019. 

Em 2020, 73,7% dos casos foram de estupro de vulnerável, ou seja, quando a vítima é menor de 14 anos, estava sob efeito de substância química, sofre de deficiência mental ou não tem o discernimento necessário para a prática do ato sexual.

O que diz a polícia

Por meio de nota, a Polícia Militar do Ceará reiterou que os três policiais suspeitos de terem cometido um estupro foram preventivamente afastados das suas funções e que um conselho de disciplina foi aberto junto à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD), que investiga o caso. 

A pasta diz, ainda, que a Polícia Militar do Ceará, através da Coordenadoria de Polícia Jurídica Militar (CPJM), “irá instaurar um Inquérito Policial Militar (IPM) em desfavor dos suspeitos.” 

A PM cearense ressalta no texto que repudia e não compactua com ações que maculem a missão institucional de servir e proteger a população cearense. “A fim de que permaneça com a reputação ilibada, apurará rigorosamente qualquer caso de desvio de conduta por parte de algum oficial ou praça”, finaliza.

A reportagem solicitou uma entrevista com os policiais suspeitos ou com seus advogados. A PM informou que “não disponibiliza os contatos dos referidos policiais militares”.

A Ponte ainda tentou contato com o governador do Estado, Camilo Santana (PT), para saber se o estado pretende tomar alguma medida dentro da corporação para impedir tais crimes, mas não houve resposta até o momento.

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