Três vídeos em menos de 24 horas mostram que PMs de SP matam e mentem

    Versões apresentadas por policiais para justificar cinco mortes, no interior e na capital, foram derrubadas por imagens

    Imagens captadas por duas câmeras de segurança e por um telefone celular serviram para desmentir a versão de tiroteio para três casos nos quais nove policiais militares alegaram resistência à prisão para tentar justificar as mortes de cinco homens, em menos de 20 horas, em Campinas (a 95 km da capital de SP), São José dos Campos (97 km) e na capital paulista.

    O primeiro dos três casos nos quais os PMs foram desmascarados por vídeos aconteceu na noite de 14 de novembro, por volta das 21h20, no Jardim Nova Mercedes, em Campinas, e levou o cabo André Fernando Pereira Plácido, de 26 anos, para o Presídio Militar Romão Gomes, no Jardim Tremembé (zona norte de São Paulo).

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    Rua Gustavo Orsolini, em Campinas (interior de São Paulo). PM de batalhão especial matou dois homens no local e alegou troca de tiros. Câmeras o desmentiram – Imagem: Reprodução Google Street View

    Ao narrar para a Corregedoria da PM (órgão fiscalizador) como matou o ajudante-geral Rodrigo Ferreira Rodrigues, 26 anos, e o auxiliar Miguel Martins de Lima, 18 anos, o cabo Plácido, integrante do 1º Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia) de Campinas, tido como tropa de elite da PM em algumas cidades do interior e do litoral do Estado de SP, afirmou ter atirado contra eles para se defender dos tiros da dupla.

    Pela versão do cabo Plácido, ele e os amigos Anderson Mesquita Dantas, Diego Fernando Agostinho, Bruno Eduardo Chagas Silva e Paulo César Batista Ferreira iam comprar gelo, todos no Astra do PM, quando viram um Ford KA passar por eles. O PM disse ter ficado sabendo instantes antes que um carro com as mesmas características havia sido roubado perto da região onde estava.

    Desconfiado de Miguel Lima e Rodrigo Rodrigues no Ford KA, o cabo Plácido, segundo sua versão paras mortes, resolveu fazer o “acompanhamento” do carro e, na frente da empresa Gerdau, no Jardim Nova Mercedes, os dois veículos pararam.

    Ainda segundo o policial militar, ao parar o Ford KA, Miguel Lima e Rodrigo Rodrigues já desceram atirando contra ele. Miguel, que estaria com um revólver calibre 38, caiu logo após a parada do carro, já baleado pelo cabo Plácido.

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    Um dos símbolos do Baep de Campinas – Reprodução

    O segundo suspeito, Rodrigo Rodrigues, de acordo com a narrativa do cabo Plácido, tentou fugir e quis pular um muro para escapar para dentro da Gerdau. Foi quando os amigos que acompanhavam Plácido o pegaram e gritaram o militar que Rodrigo estaria armado, também com um revólver calibre 38.

    O cabo Plácido atirou contra Rodrigo algumas vezes antes de precisar recarregar sua pistola .40 para continuar a disparar contra o homem em fuga.

    Ao todo, na cena das mortes de Rodrigo e Miguel, a perícia recolheu 29 cápsulas deflagradas, todas elas pela arma do policial militar. O revólver calibre 38 que estaria com Rodrigo estava com as munições intactas.

    Um dos amigos do PM, o soldado temporário do Exército Anderson Dantas, foi ferido por um tiro no ombro esquerdo e, segundo a versão do cabo Plácido, por um tiro disparado por Miguel Lima, o primeiro a ser morto pelo policial militar. Diego Agostinho, outro amigo do cabo e aluno da PM de SP, foi quem socorreu Dantas e o levou para o hospital.

    Ao investigar as câmeras de segurança da empresa Gerdau, os investigadores das mortes de Rodrigo e Miguel descobriram imagens que desmentiram o PM Plácido e seus quatro amigos.

    Ao contrário do que disse o cabo Plácido, que teria atirado contra Rodrigo e Miguel em legítima defesa porque os dois dispararam primeiro, as imagens mostraram que os dois não deram um só tiro contra o militar e que ele disparou 29 vezes contra a dupla em uma ação típica de execução.

    Segunda mentira

    A segunda mentira contada por integrantes da Polícia Militar de São Paulo descoberta por câmeras de segurança também aconteceu na noite de 14 de novembro, por volta de 22:10, cerca de 50 minutos após o duplo homicídio em Campinas.

    Jeffer Martins de Lima e Manoel Messias de Oliveira Júnior, os dois com 23 anos, foram mortos por quatro policiais do 2º Batalhão de Choque da Polícia Militar de São Paulo, na Vila Tatetuba, na periferia de São José dos Campos.

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    PMs da Tropa de Choque mataram dois homens e disseram que eles atiraram primeiro. Câmeras os desmentiram – Imagem: Reprodução Google Street View

    Pela história contada pelos PMs cabo Hallissen Santos da Penha, 33 anos, cabo Roberto Donizeti de Souza, 45, soldado Edson da Silva, 38, e sargento Gledson Guaraci Pereira Apolinário, 41, os dois jovens foram mortos quando trafegavam em um Fiat Palio, com os faróis apagados, pela rua dos Paturis, Vila Tatetuba.

    Por estar com as luzes de sinalização do Palio apagadas, segundo os quatro PMs da Tropa de Choque contaram, o carro chamou a atenção dos militares e eles deram ordem de parada.

    Exatamente como na versão do cabo Plácido para as mortes dos dois homens em Campinas, os PMs da Tropa de Choque disseram que o carona do Palio, Manoel Júnior já desceu do carro atirando contra o carro dos militares.

    Sem acertar nenhum dos quatro PMs da Tropa de Choque, Manoel Júnior, armado com uma pistola .380, pela narrativa dos militares, foi baleado pelo sargento Gledson.

    Praticamente ao mesmo tempo em que Manoel Júnior era baleado pelo sargento Gledson, os PMs cabo Hallissen e soldado Edson, ambos no banco traseiro do carro da PM, desceram e foram na direção de Jeffer, motorista do Palio abordado.

    Os militares Hallissen e Edson contaram que, ao se preparar para descer do Palio, Jeffer teria colocado a mão na cintura onde trazia um revólver calibre 38. Os dois PMs atiraram contra ele.

    Ao apresentar o caso para a Corregedoria da PM e para a Polícia Civil, os PMs da Tropa de Choque disseram ter encontrado dentro do Palio uma mochila preta com cocaína, uma balança, R$ 315 e um telefone celular.

    Os PMs da Tropa de Choque só não contavam que boa parte da ação deles na rua dos Paturis havia sido gravada por câmeras de segurança de estabelecimentos comerciais e a versão de que haviam matado Manoel Júnior e Jeffer porque eles tinham atirado primeiro na direção do carro da Polícia Militar ia ser totalmente desacreditada e os mandaria para a prisão.

    As câmeras captaram o momento em que Jeffer, o motorista do Palio, foi morto. Ele foi atingido pelos tiros dos PMs da Tropa de Choque quando levava as mãos para a cabeça, sem nenhum tipo de reação que colocasse a vida dos PMs em risco, segundo os investigadores do duplo homicídio. Jeffer recebeu quatro tiros.

    As câmeras de segurança da rua dos Paturis não gravaram o momento da morte de Manoel Júnior. A investigação continua e está sob segredo de Justiça.

    Terceira mentira

    No feriado da Proclamação da República, em 15 de novembro, quatro PMs da Força Tática (grupo especial) do 51º Batalhão (na Penha, zona leste de SP) mataram Hildemberg Pereira dos Santos, 40 anos, e a versão de que ele teria reagido a tiros à prisão foi desmentida por um vídeo postado na rede social de compartilhamento de imagens Instagram.

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    Na zona leste de SP, no feriado de 15 de novembro, homem foi morto com tiro no peito e PMs disseram que foi durante tiroteio. Vídeo no postado no Instagram os desmentiu – Imagem: Reprodução Google Street View

    Os PMs sargento Marcelo da Silva Oliveira, 48 anos, soldado Gustavo José da Silva, 27, cabo Wendel e soldado Ruas, cuja identificação completa a reportagem solicitou à Secretaria da Segurança Pública, mas não obteve resposta, são, segundo as investigações, os responsáveis por mentir sobre um tiroteio para tentar justificar a morte de Hildemberg, morto às 15h54 do dia 15 de novembro, na altura do 1.818 da avenida Doutor Assis Ribeiro, no Jardim Piratininga, região do bairro do Cangaíba, zona leste de São Paulo.

    A versão dos PMs para a morte de Hildemberg é bem parecida com as mentiras contadas nos casos de Campinas e São José dos Campos: Hildemberg estava com Neiva Luiza Pereira Benites em um carro Jac J6, preto e com registro de roubo, quando foram vistos pelos quatro militares do carro nº M-51027. Ao receber ordem de parada, o casal fugiu em alta velocidade e, após bater o carro e parar, o homem desceu atirando contra os policiais, que não foram feridos e atingiram Hildemberg, “diante de injusta agressão” por parte dele.

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    Uma das representações da Força Tática da PM de SP – Imagem: Reprodução

    Pela história dos PMs da Força Tática do 51º Batalhão, Hildemberg desceu do Jac J6, armado com um revólver calibre 38, e atirou duas vezes contra os policiais. No revide, o sargento Marcelo e o soldado Gustavo atiraram contra Hildemberg. Um deles deu dois tiros na vítimae outro, apenas um.

    Enquanto Hildemberg era levado para o Pronto Socorro do Hospital Ermelino Matarazzo, o soldado Ruas e o cabo Wendel prenderam Neiva Luiza e a levaram para o 10º DP (Penha). No corpo de Hildemberg, a perícia encontrou dois tiros no peito.

    Mas um vídeo encontrado no Instagram, dias após a morte de Hildemberg, ajudou os investigadores a descobrirem a verdade sobre o caso: os PMs não atiraram para se defender, mas para executá-lo.

    As imagens postadas na rede social de imagens reforçaram a versão apresentada por Neiva Luiza para a morte de Hildemberg. Ela narrou aos investigadores que, enquanto foi detida por um dos quatro PMs e colocada sentada em uma calçada, Hildemberg fugiu correndo dos outros três militares, mas acabou alcançado.

    Enquanto era levado pelos militares para o local da batida do Jac J6, com as mãos na cabeça, um dos três PMs atirou no peito de Hildemberg, segundo Neiva Luiza. Segundos depois, outros dois tiros foram disparados.

    Assim que atirou contra Hildemberg, o mesmo PM caminhou na direção de Neiva Luiza para matá-la, segundo ela relatou. O militar só desistiu de puxar o gatilho ao perceber que a Kombi na qual o Jac J6 dirigido por Hildemberg bateu estava cheia de passageiros.

    “Vagabunda, você nasceu de novo! Deu sorte e, de bônus, vai ser presa!”, foi a frase que a mulher disse ter ouvido do policial militar.

    Os documentos sobre a morte de Hildemberg estão sob segredo de Justiça e o vídeo postado no Instagram que levou os PMs para a prisão foi removido da rede social. Ele estava armazenado em https://www.instagram.com/p/BM2Cr4oBg8S/?taken-by=cagaiba.oficial.

    Outro lado

    A reportagem procurou o secretário da Segurança Pública da gestão de Geraldo Alckmin (PSDB), Mágino Alves Barbosa Filho, por meio da empresa privada CDN Comunicação, contratada pela pasta para intermediar o atendimento à imprensa, para diversos questionamentos sobre os três casos nos quais os nove PMs foram desmentidos por vídeos.

    Além dos questionamentos, a reportagem também solicitou entrevistas com o comandante-geral da PM, coronel Ricardo Gambaroni, com os superiores hierárquicos dos nove PMs presos e com um representante da Corregedoria da PM. Nenhum dos pedidos foi atendido.

    Confira quais foram os questionamentos enviados à Segurança Pública, por meio da CDN Comunicação:

    1 – Por qual motivo cada um dos nove PMs foi preso?
    2 – Quem são as vítimas (nome, idade e demais dados) dos referidos PMs e por quais motivos os PMs atiraram contra elas? As vítimas possuíam antecedentes criminais/judiciais?
    3 – Quem são defensores dos nove PMs?
    4 – Os nove PMs são investigados em outros procedimentos da Corregedoria da PM? Caso sim, por quais motivos?
    5 – Algum desses PMs já esteve envolvido em tiroteios? Caso sim, quais deles? Quando, onde e como ocorreram os supostos enfrentamentos? Quais os resultados das investigações sobre esses enfrentamentos alegados?
    6 – Por qual motivo os PMs Hallissen Santos da Penha, Roberto Donizeti de Souza, Edson da Silva e Gledson Guaraci Pereira Apolinário, integrantes do 2º Batalhão de Choque da corporação, com sede na capital paulista, realizavam patrulhamento na cidade de São José dos Campos, em 14 de novembro deste ano?

    Às 16h23 do dia 26/12, o governo de São Paulo, por meio da CDN Comunicação, enviou a seguinte nota:

    “A SSP lamenta que tenha sido procurada pela reportagem apenas no fim da tarde do domingo (25/12) para uma pauta que demanda pesquisa o que, pela data, não haveria possibilidade de resposta, como é de conhecimento do jornalista. 

    No entanto, a pasta esclarece que os PMs citados foram presos em novembro por determinação da Justiça Militar do Estado de São Paulo, após pedido da Corregedoria. Os elementos apurados contradizem as versões de legítima defesa apresentadas, nos casos citados, pelos policiais.

    Os PMs do 51º BPM/M foram presos pela ocorrência que vitimou Hildemberg Pereira dos Santos.

    Os policiais do 2º Batalhão de Choque respondem pelas mortes de Jeffer Martins de Lima e Manoel Messias de Oliveira Junior.

    Já os PMs do 47º BPM/I foram detidos pelas mortes de Miguel Martins de Lima,  Rodrigo Ferreira Rodrigues e Anderson Mesquita Dantas.

    Nenhum dos PMs envolvidos era alvo de investigações da Corregedoria da Polícia Militar. Todas as vítimas tinham antecedentes criminais.

    Sobre a atuação no Vale do Paraíba em novembro, o Comando de Policiamento de Choque realizou operação em apoio às unidades territoriais da região.”

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