Tribunal ouve capitão que considerou o Massacre de Paraisópolis ‘legítima defesa’

    Inquérito de Rafael Casella responsabilizou os pais das vítimas pela morte de seus filhos, por deixarem que fossem a um baile funk; para um assistente de acusação, afirmação foi “desnecessária e perversa”

    Familiares das vítimas e ativistas mostram fotos de nove jovens durante ato em frente ao Fórum Criminal da Barra Funda | Foto: Lara Ramos

    Com previsão de ouvir 17 testemunhas de defesa, a quinta audiência do processo judicial que analisa o papel de 12 policiais militares na morte de nove jovens durante o Massacre de Paraisópolis, ocorrido em 2019, terminou nesta sexta-feira (2/8) com o depoimento de apenas duas delas.

    Leia também: O que foi o Massacre de Paraisópolis

    O capitão Rafael Oliveira Casella depôs por três horas. Ele foi responsável por uma investigação na Corregedoria da Polícia Militar em que concluiu, em janeiro de 2020, dois meses após o massacre, que os 31 policiais envolvidos teriam atuado em legítima defesa para “repelir uma injusta agressão”. Os policais teriam sido alvo de pedras e pedaços de madeiras durante o baile funk da DZ7, que foi interrompido pela repressão policial, em 1º de dezembro de 2019. O relatório da investigação foi ratificado, na época, pelo então comandante-geral da corporação, Fernando Alencar Medeiros.

    Em seu depoimento, o capitão falou que se convenceu de que os réus haviam agido em legítima defesa ao ouvir a voz de “desespero” de um dos policiais da Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas (Rocam) ao pedir apoio para os colegas via rádio. O pedido de socorro teria sido feito após uma dupla de PMs supostamente ter sido alvejada por dois homens numa moto, que depois teriam entrado no baile e nunca foram localizados.

    “Pela análise da rede rádio, a gente consegue observar, num primeiro momento, um desespero do policial que acompanha a motocicleta. Ele modula [fala] de modo ofegante, fala meio errado, mostra desespero. Aquilo mostra transparência porque quem está em desespero não fala de modo tranquilo”, declarou.

    Casella admitiu que sua investigação ignorou os vídeos daquela noite que mostram policiais agredindo pessoas e gritando “vai morrer”, porque não teria como confirmar se as filmagens haviam mesmo sido feitas em Paraisópolis no dia do massacre. Isso apesar de uma perícia feita durante uma investigação da Polícia Civil ter constatado que os vídeos eram autênticos.

    “Não estou defendendo, mas se é o policial mesmo que está gritando ‘vai morrer’, a gente precisa analisar. É complicado porque no relatório tentei ser o mais imparcial possível, em nenhum momento emiti parecer pessoal”, justificou o oficial.

    As perguntas dos assistentes de acusação questionaram o que parecem ter sido tentativas do capitão Casella de estigmatizar e criminalizar as vítimas do massacre no inquérito da Corregedoria. “Essa passagem foi completamente desnecessária e perversa”, disse o advogado Dimitri Sales ao se referir a um trecho do relatório da investigação em que Casella responsabilizou os pais dos jovens pelo massacre, ao afirmar que “negligenciaram o ‘pátrio poder’ e subsidiariamente têm suas parcelas de responsabilidades pela omissão na guarda dos menores”.

    O policial tentou se justificar: “Eu tentei apresentar de forma lúdica a problemática ali para ajudar e evitar que aconteça novamente. Os pais têm responsabilidade pelo filho, têm que entender onde ele está. Tudo não termina na PM”.

    Casella também respondeu porque solicitou perícia para avaliar se os jovens haviam usado drogas, apesar de os laudos necroscópicos já terem indicado que haviam morrido por asfixia. “Naquela época eu não sabia o que poderia causar asfixia”, disse.

    Outra testemunha ouvida foi o aposentado Celso Neves Cavalini, que é presidente do Conselho Comunitário de Segurança (Conseg) Portal do Morumbi. Ele não presenciou o caso nem teve relação com a investigação, mas foi arrolado pela defesa dos PMs para falar sobre a situação de segurança da região. Ele é conhecido por ser um defensor da PM, tendo já realizado homenagens a favor de policiais que matam, inclusive um ato em homenagem à morte de uma criança negra de 10 anos. “Não me interessa letalidade policial, o que me interessa é se tem roubo contra morador”, afirmou.

    Cavalini também fez especulações falsas sobre as vítimas e recuou quando disse que “acredita” que o Baile da DZ7 “só pode” ter sido “patrocinado” pelo crime organizado, ainda sem qualquer prova. “Me parece, não sei se é verdade, que os meninos que morreram estavam com droga”.

    Até a publicação desta reportagem, o juiz Antonio Carlos Pontes de Souza ainda não tinha definido a data da próxima audiência. A defesa dos PMs dispensou duas testemunhas, portanto, são esperados os depoimentos de mais 13, além dos 12 acusados. Essa é a fase chamada de instrução, em que são coletadas provas, ouvidas testemunhas e réus, para que o magistrado decida se os policiais serão ou não levados a júri popular.

    O Massacre de Paraisópolis é como ficou conhecido o episódio em que nove jovens que saíram para se divertir morreram em uma ação da Polícia Militar para reprimir o Baile da DZ7, tradicional baile funk de rua que acontecia na comunidade de Paraisópolis, na zona sul da capital paulista, na madrugada do dia 1º de dezembro de 2019. Além deles, outros 12 sobreviventes saíram feridos.

    Quase cinco anos depois, de 31 policiais que participaram da repressão, 12 foram formalmente acusados pelo Ministério Público estadual de São Paulo (MPSP) como responsáveis pelas mortes e um pelo crime de explosão. Eles ainda aguardam o julgamento, todos em liberdade.

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