Sobrinho de Fernando Ramos da Silva foi assassinado, assim como o tio, por policiais em janeiro; dois irmãos do ator estão presos e outros dois foram mortos
Há exatos 30 anos, no dia 25 de agosto de 1987, o ator Fernando Ramos da Silva, o Pixote, do filme “Pixote, a lei do mais fraco” (1980), do diretor Hector Babenco (1946-2016), protagonizava sua última cena na vida real, sendo perseguido por três policiais militares pela rua 22 de agosto, no Jardim Canhema, periferia de Diadema, município da Grande São Paulo.
Sem tiros de festim ou PMs de mentira como no longa-metragem, Silva foi executado com oito tiros de revólver calibre 38 disparados à queima-roupa pelo sargento Francisco Silva Junior e os soldados Walter Moreira Cipolli e Wanderley Alessi. Após ser descoberto em seu esconderijo, chegou a correr desesperado por telhados e pela rua de sua casa, se escondeu debaixo de uma cama simples, leito da avó de um amigo, que era formada por um estrado velho de madeira e um fino colchonete. Se por duas vezes anteriores o jovem havia sido preso por roubo e porte de arma, na data de sua morte ele estava desarmado e não havia praticado crime algum. Naquele momento, ele corria para fugir da perseguição com a qual sua vida passou a conviver depois de estrelar o filme.
Se a morte de Fernando Ramos da Silva não é esquecida até hoje, sendo motivo de homenagens pelo país, como símbolo do abandono da juventude, a morte de seus familiares sequer chega a ser noticiada. A reportagem da Ponte Jornalismo apurou que, em janeiro, um sobrinho de Pixote, chamado Rone Leal da Silva, o Roninho, de 17 anos, foi assassinado por policiais também em Diadema.
Assim como ocorreu com o tio, uma legião de pessoas foi ao enterro do jovem, que ocorreu no mesmo cemitério de Diadema em que Fernando foi sepultado trinta anos antes. O menino era popular no bairro em que vivia com a família, conhecido pelo sorriso fácil e pelos passeios de moto pela região, uma de suas paixões.
O pai de Roninho, Ronaldo Ramos da Silva, de 42 anos, está preso. Sua ficha criminal começou ainda no início dos anos 1990, pouco após completar 18 anos. Ao ser preso,em outubro de 1994, acusado do roubo de uma moto na Vila Pauliceia, bairro de São Bernardo do Campo, vizinho a Diadema, ele já carregava outras duas passagens criminais: uma por furto e uma segunda também por roubo. Ronaldo tinha 12 anos quando Fernando foi executado por PMs. Ironicamente, a mesma idade do irmão quando ficou famoso no cinema. Ronaldo era o irmão mais apegado a Fernando e o único dos filhos de dona Josefa do sexo masculino que aparece em fotos antigas retratadas pelo fotógrafo do filme, Ayrton de Magalhães. Assim como o irmão, seu olhar também era triste e disperso.
Outro irmão de Pixote atualmente preso é Valdemir Ramos da Silva, 47 anos. Detido em março de 1993 acusado de roubar residências no ABCD, ele já respondia na Justiça por uma fuga da Cadeia Pública de Santo André, um furto, um outro roubo e uma acusação de falsidade ideológica.
Dos seis filhos homens que dona Josefa Carvalho da Silva teve, outros dois também foram mortos de forma violenta. Paulo Ramos da Silva, o Paulinho, foi morto em abril de 1987, quatro meses antes de Fernando. Paulinho foi morto a tiros, após ter sido arrastado por um caminhão, também em Diadema, num crime nunca esclarecido pela polícia. No bolso de sua calça havia um bilhete em que estava escrito: “estamos matando ele para ver se o rei vai chorar”. A mensagem era endereçada a Valdemar Ramos da Silva, o Dema, irmão de Paulinho e Fernando, que tinha envolvimento com roubo de carros.
A dor da perda dos filhos Paulo Ramos da Silva e Fernando Ramos da Silva, ambos em 1987, seria sentida novamente por dona Josefa, em 2 de abril de 1990. Dema, com 27 anos, foi encontrado morto dentro do porta-malas de seu carro, um veículo modelo Volkswagen Passat. Dema foi assassinado com vários tiros, facadas e espancamento, em um provável acerto de contas entre quadrilhas. Ao seu lado estava uma mulher com quem se relacionava. Socorrida ao hospital com diversos ferimentos e sinais de abuso sexual, a mulher morreu dias depois.
O outro irmão de Fernando, já mais velho e o primeiro a casar, se mudou de São Paulo pouco após os primeiros casos de violência atingirem os homens da família Ramos da Silva. A família ainda é composta por outras três mulheres. Um familiar, que preferiu não se identificar, disse que eles “só querem viver em paz, ter paz”.
Quando Dema morreu, dona Josefa chegou a dizer que sua família estava sendo “exterminada”. A matriarca da família morreu de causas naturais há três anos, sem saber que acertou no prognóstico e que sua família continua a ser atingida pela violência urbana.
Desprezo de PMs marcou viúva
Passados trinta anos da execução do ator Fernando Ramos da Silva, o Pixote, algumas lembranças negativas teimam em não deixar a memória de sua ex-mulher, Cida Venâncio. Uma delas é o decorrer do julgamento dos PMs Francisco Silva Junior, Walter Moreira Cipolli e Wanderley Alessi, à época integrantes do Tático Móvel do 6º Batalhão de São Bernardo do Campo, responsáveis pela ação que culminou na morte de Ramos da Silva, aos 19 anos, alvejado por oito disparos à queima-roupa.
“Uma das coisas que mais me deixou triste foi ver os policiais no tribunal dando risada, como se nada tivesse acontecido. Um deles até folheava um jornal. Não respeitaram a minha dor, da minha filha, de dona Josefa, de toda a família”. A mulher conta que, durante o júri, o soldado Cipolli era o mais sarcástico de todos e lia as notícias do dia calmamente. Julgados anos após o crime, quando já estavam fora da corporação, não ficaram presos nem um dia sequer. Num primeiro júri, foram sentenciados pelo Tribunal de Justiça Militar com penas de quatro a seis anos, que, depois, foram reduzidas para dois anos. Após deixarem as fileiras da Polícia Militar, os ex-agentes do Estado se tornaram empresários do ramo de segurança privada e terceirização de funcionários, além de patentes de produtos. Procurados, não foram localizados para derem sua versão ou depoimento dos fatos ocorridos em 25 de agosto de 1987, na rua 22 de Agosto.
À espera da Justiça
Hoje, a família espera que a reparação da execução sumária possa vir financeiramente. Porém, o que era esperança até poucos anos atrás já virou descrença. O processo de indenização por danos morais que tramita na Justiça paulista desde 1996 foi ganho pela família, obrigando o Estado de São Paulo a pagar uma determinada quantia para Cida e para a filha do casal, Jaqueline. No entanto, o procedimento virou precatório, ou seja, está na interminável fila de títulos a quem o Estado tem obrigação de pagar, mas sem data para fazer.
Cida recebe um pequeno montante que incide sobre os rendimentos do marido na época de sua morte. No entanto, a indenização por danos morais é a que aliviaria as despesas familiares. “A Cida há uns três anos começou a receber a pensão alimentícia como viúva. O valor incide da renda que o Fernando tinha como artista, já que estava atuando em uma peça de teatro [quando foi morto]”, conta o advogado da família, Edalto Caballero, que cuida do processo desde 2002.
Em nota, a Procuradoria-Geral do Estado informou que, “embora a ação tenha sido, efetivamente, ajuizada em 1996, somente houve definição quanto ao valor devido a título de condenação em setembro de 2015, quando foi expedido o respectivo precatório que aguarda quitação seguindo a ordem cronológica de pagamentos estabelecida pela Constituição Federal. Atualmente, quem administra os pagamentos de precatórios é o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo”.
Por sua vez, o TJ informou que, atualmente, “o precatório encontra-se na posição de número 7.269 na Lista de Precatórios Pendentes de Pagamento da Fazenda do Estado pela ordem cronológica, ou seja, existem 7.268 precatórios anteriores a este para terem seus pagamentos disponibilizados antes do precatório em questão”. E, “caso os credores se enquadrem nos requisitos de pagamento de prioridade estabelecidos pela Emenda Constitucional 94/2016 (idosos acima de 60 anos, portadores de doença grave ou portadores de deficiência), podem, através de advogado, peticionar com os documentos comprobatórios requerendo a prioridade”.
Para Caballero, a demora em receber torna o cenário todo muito ruim. “A expectativa faz com que aguarde receber amanhã e infelizmente esse dia não chega”, explica o advogado.
Ao falar sobre o dinheiro que espera receber, Cida aproveita para desmentir boatos de que Hector Babenco, morto no ano passado, teria abandonado Fernando após o filme e o restante da família quando o ator foi assassinado. “Mentira. Hector Babenco foi um pai para a família. Ajudava em tudo. Sempre presente. Nunca deixou faltar nada. Inclusive, pagou todos os estudos da Jaqueline. Ainda ajudou minha outra filha a se formar dentista”, completa.