De barracas a medicamentos controlados, povo de rua do centro da capital paulista denuncia retirada de pertences. Após declarações da Prefeitura, MP instaurou inquérito e reunião sobre o tema é prevista para esta segunda (27)
Não é de hoje a prática do “rapa”, a retirada de pertences da população em situação de rua pelas equipes de zeladoria urbana do município de São Paulo. Nos anos em que estiveram à frente da Prefeitura de São Paulo, tanto Fernando Haddad (PT) quanto João Dória (PSDB) e Bruno Covas (PSDB) editaram decretos e portarias visando regular a atividade, resultando em maior ou menor proteção aos indivíduos que, sem ter onde morar, acomodam-se em praças públicas e debaixo de viadutos. O tema voltou a repercutir no começo deste ano, após o atual prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o subprefeito da Sé coronel Camilo se posicionarem a favor da remoção de pertences.
No dia 17 de fevereiro, o Tribunal de Justiça de SP (TJSP) emitiu decisão liminar suspendendo a retirada de barracas pelo poder público até julgamento da Ação Civil Pública protocolada pelo deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) em parceria com o padre Júlio Lancellotti e militantes de direito humanos. Neste dia, a Ponte conversou com moradores da Praça da Sé e do Patriarca, ambas no centro da cidade.
Por volta das 10h, na Sé, não havia uma tenda montada, e cerca de 15 funcionários da Prefeitura, usando coletes laranjas, estavam parados no meio da praça. José João Ribeiro, 50, apontou para eles e disse que haviam recolhido seus pertences. “Tudo o que nós tem eles leva”. Ele dorme na praça desde 2015, quando se mudou de Missão Velha, no Ceará, para trabalhar como pedreiro. Hoje, faz uso de crack.
Além de ter perdido o carrinho para catar material reciclável, que era seu instrumento de trabalho, José conta que seus remédios também foram levados. Ele toma fenobarbital, medicamento controlado com propriedades anticonvulsivantes e sedativas, e retrovirais para tratar infecção por HIV. “Se você rouba, tá errado. Se você trabalha, tá errado. Então eles levam tudo nosso.”
A explicação que deram para ele é que não querem mais ninguém na rua. “Mas não tem para onde eu ir”, diz. Segundo o homem, o transporte que leva até albergues para passar a noite demora muito para chegar. “A perua vem pegar a gente aqui 4h da manhã, como eu vou pro albergue 4h da manhã para voltar às 5h?” A reclamação por conta do horário apareceu na fala de outras pessoas entrevistadas pela Ponte. Ainda de acordo com José, geralmente as vagas para pernoite são no Centro Temporário de Acolhimento (CTA) Parque Novo Mundo, que fica a cerca de meia hora, de carro, da Praça da Sé.
A abordagem para o que seria a limpeza do espaço muitas vezes vem acompanhada de truculência. Novamente, José faz menção aos funcionários de colete laranja e diz: “eles são empregados, mas aqueles ali [apontando para Guardas Civis Metropolitanos] batem com força.” José e Agnaldo Dias de Lima, alagoano de 49 anos que estava sentado ao seu lado, contaram que, além da violência, nem sempre são passadas orientações para restituição dos pertences. Disseram, inclusive, que um dos funcionários os teria orientado a pagar 500 reais para recuperar o carrinho.
Sérgio Augusto Martins é fiscal de vias públicas e estava responsável pela equipe de zeladoria na manhã daquele dia. Ele explicou que, no caso das barracas, a permissão é para que permaneçam montadas somente das 20h às 9h. Quando são recolhidas pela manhã, os moradores da Sé precisam se deslocar até o guarda móveis, que fica na Barra Funda, para recuperá-las.
Isso faz com que a maioria das pessoas não vá atrás e passe a noite desabrigada. Para retirar, também é preciso apresentar o contralacre, uma fichinha de cerca de 5cm que muitas vezes acaba se perdendo.
José critica a forma como ele e os companheiros são tratados. “Não existe tirar ninguém daqui à força. A gente não estudou, mas tem a vivência da rua. Você acha que é certo alguém chegar pra você que já tá desse jeito? A gente vive de doação. Por que esses caras não vêm pagar uma marmita pra nós?”
Marcos Dias, 35 anos, dorme na Praça da Sé há nove meses. Ele disse à reportagem que, de um tempo pra cá,a situação tem sido diária. “Todo dia é assim. A turma suja, o povo vem e limpa. O povo suja, eles vêm e limpam e levam nossos pertences.” Acompanhado do seu cachorro, Totó, Marcos saiu de Santos para a capital do estado porque precisava “resolver uma firma aberta” que estava em seu nome.
O homem morou sete anos no litoral paulista, mas nasceu em Formiga, município mineiro a cerca de 170 km da cidade Três Corações, berço do jogador Pelé. O fato foi destacado por Marcos durante a conversa. É fã do atacante, que assim como ele se mudou para Santos. “Ele morreu, né?”, perguntou. Em seguida, continuou comentando sobre a retirada de pertences.
Marcos teve três carrinhos levados sob justificativa de que atrapalhavam o movimento na rua. “Ele me deu uma fichinha, mas eu nem procurei saber, nem fui atrás. Não fui atrás, não vale a pena.” Além dos carrinhos, a Prefeitura também levou embora lonas de plástico que ele usava para se proteger.
Praça do Patriarca
Na Praça do Patriarca, perto do Viaduto do Chá, a situação foi um pouco diferente. Naquela manhã, a equipe de limpeza tinha abordado as cerca de 20 pessoas que se instalaram no local, mas ainda havia duas barracas montadas. Para o manauense Anselmo da Silva Costa, 22 anos, nem sempre a Prefeitura leva os pertences porque o pessoal de lá costuma dialogar.
Anselmo chegou em São Paulo em fevereiro de 2022. Há três meses, sofreu um acidente e caiu do viaduto, tendo que operar o fêmur. Não conseguiu vaga fixa em abrigo, mas tanto ele quanto seus companheiros endossaram que, quando há vagas para passar a noite em centros de acolhimento, um nome que aparece com frequência é o do Parque Novo Mundo, que consideram muito distante. Além disso, reclamaram da demora. “Falam que vão buscar o carro e a gente tem que esperar três horas aqui”.
As pessoas que vivem na praça do Patriarca são, em maioria, mulheres trans, homens gays e pessoas com deficiência, que criaram vínculos com o território e dependem dos serviços de saúde da região para sobreviver, como a Unidade Básica de Saúde (UBS) e o centro de testagem Henfil Henrique de Souza Filho. Por isso, não se sentem à vontade para frequentar albergues em outros bairros.
Para Anselmo, limpeza urbana, com água e sabão, é uma coisa, mas retirar uma manta que protege do frio é algo completamente diferente. Ele acredita que o poder público deveria criar mais oportunidades para a população em situação de rua, que diz ser, em sua maioria, composta por pessoas que vieram de fora em busca de trabalho. “A gente quer escrever nossa história. Mas só passa página, passa página, e a gente não consegue nada, não tem voz.”
O que diz a legislação
O decreto 59.246/2020 editado por Bruno Covas veda a subtração de bens pessoais como documentos, cartões bancários, medicamentos e receitas médicas, além de travesseiros, mantas e barracas desmontáveis. Instrumentos de trabalho, malabares e carroças de reciclagem também não podem ser retirados.
A maior parte desses itens já constava na chamada “Lei do Frio” (57.069/2016), assinada por Fernando Haddad em 2016 para diminuir o sofrimento da população em situação de rua durante o inverno. No artigo 10º, constava que não poderiam ser subtraídos, dentre outros itens, “papelões, colchões, colchonetes, cobertores, mantas, travesseiros, lençóis e barracas desmontáveis”.
No ano seguinte, o decreto 57.581/2017, publicado por João Dória, substituiu a Lei do Frio e abriu precedente para que fossem retirados objetos que impediam a circulação de pedestres e veículos, a exemplo de colchões e barracas montadas. No mesmo ano, ainda na gestão do tucano, foi publicada uma Instrução Normativa para disciplinar os processos de zeladoria. A IN voltou a defender o direito da população de rua a manter instrumentos de sobrevivência como barracas e fogareiros.
É o decreto 59.246/2020, de Bruno Covas, que possui validade hoje. Ele alterou superficialmente a redação da lei de Dória: seguiu proibindo a retirada de itens, mas manteve o parágrafo que prevê o recolhimento de barracas montadas quando impedirem a circulação.
A promotora Anna Trotta Yaryd, que abriu inquérito para investigar as falas do prefeito e do subprefeito da Sé a respeito da situação, disse à Ponte que essa discussão é antiga e o mais importante é como a regulamentação deve ser seguida “para respeitar a dignidade das pessoas em situação de calçada”. Segundo ela, caso retiradas, as barracas precisam ser restituídas de forma que possam ser colocadas à noite para pernoitar. Além disso, o procedimento de guarda dos pertences e emissão do contralacre também deve ser observado.
“É preciso observar se as pessoas estão sendo orientadas sobre os direitos delas e como proceder. Também precisa ter esse cuidado da informação, da orientação, da educação para que as pessoas possam, de uma forma humana e razoável, conviver no espaço público”, afirma a representante do Ministério Público de São Paulo (MP-SP)
A promotora mencionou o número de vagas em abrigos, estimadas em torno de 20 mil. Ainda que houvesse acolhimento para todas as pessoas em situação de rua, Yaryd chama atenção para o fato de que não se trata de uma população homogênea. Há mulheres cis, mulheres trans, mães, pessoas com deficiência e problemas de saúde. “É isso que a gente pretende investigar, também para entender que tipo de vaga está sendo oferecida, qual o público alvo e, se existe alguma negativa por parte da população que não quer ir, qual o motivo dessa negativa.”
Para esta segunda-feira (27/2), às 14h30, está agendada reunião para que o subprefeito da Sé possa se manifestar sobre o inquérito.
O que diz a Prefeitura
A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) e a assessoria de imprensa da Prefeitura foram procuradas, no início da semana, para comentar a respeito da situação. Até a última atualização desta reportagem, não haviam se manifestado.