Tulio foi condenado por roubo cometido quando ele estava na pizzaria onde trabalha

    Entregador foi encontrado com celular roubado, mas teria recebido aparelho de um amigo. “A gente não exime ele da culpa, mas que pague pelo certo”, diz irmã

    Tulio Ikaro Pires Lima foi condenado a mais de 10 anos por roubo | Foto: Arquivo Pessoal

    “A gente quer que ele pague pelo que fez. Se ele pegou com o amigo dele e o celular era roubado, que pague pela receptação e não roubo. A gente tem prova que ele não participou do roubo, mas a gente não exime ele da culpa”. As palavras da promotora de vendas Thamires Pires Lima, 30 anos, resumem bem a história de seu irmão, o entregador de pizza Tulio Ikaro Pires Lima, 26.

    Lima está preso desde o dia 26 de junho, após ser abordado por policiais militares no interior de um posto de gasolina na Avenida Antonello de Messina, região do Tremembé, zona norte da capital paulista. De acordo com a sentença, no momento da prisão, por volta das 21h30, o entregador de pizza estava dentro de seu Fiat Uno em posse de celulares roubados.

    Com Lima preso desde o fato no CDP (Centro de Detenção Provisória) Vila Independência, na Vila Prudente, zona leste, seu filho de cinco anos é quem mais está sofrendo com a situação, contou a promotora de vendas. “O menino é muito apegado ao meu irmão. Tem crise de choro que a gente não consegue fazer ele parar de chorar. Isso está afetando muito ele”, disse. Além do menino, o jovem é pai de uma menina de um ano e meio.

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    Para entender a prisão de Lima é necessário voltar cerca de três horas no tempo naquela sexta-feira. Era início da noite quando três homens invadiram uma residência na Rua Padre Leão Peruche, no Tucuruvi, zona norte. Uma das moradoras saiu de casa por volta das 18h30 para colocar o lixo na rua, quando um dos homens a rendeu. No local, além da idosa rendida no portão, estavam sua filha, a neta de quatro anos e o genro. A todo instante, os assaltantes pediam dinheiro. Com a negativa de terem valores em casa, o trio passou a ser agressivo, mas decidiu ir embora levando objetos encontrados pelos cômodos. Foram roubados três notebooks, cinco celulares, sendo quatro Iphones, um videogame, televisores, cinco relógios, além de cartões bancários.

    Recomposta do susto, uma das vítimas passou a rastrear seu aparelho e passar as coordenadas para a Polícia Militar. A versão apresentada por policiais militares da Força Tática do 43° BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano) é que chegaram até Lima após serem avisados por rádio que o sinal de um celular que havia sido roubado apontava para o endereço onde se localizava um posto de gasolina. Ao chegarem, notaram um veículo estacionado com uma pessoa dentro. Ainda na versão dos policiais, ao avistar a aproximação da equipe, Lima “se mostrou apreensivo”, o que resultou na abordagem.

    Durante a revista, quatro celulares foram localizados, entre eles, um Iphone, que havia sido roubado da casa. Segundo a versão dada por Lima aos policiais, ele havia pego os aparelhos com um conhecido, de inicial S., para serem revendidos, negando a participação no crime.

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    Diante da versão de Lima, os policiais se dirigiram para o endereço de S., que havia repassado os aparelhos. No local, dentro de um veículo e também dentro do imóvel, foram localizados diversos objetos como relógios, televisor, videogame, além de um simulacro de arma de fogo. Ao ser questionado, ainda segundo o boletim de ocorrência, o dono da residência alegou saber que os produtos eram roubados, mas que não havia participado do crime, apontado para onde estaria uma terceira pessoa, de nome com inicial B.

    Após abordagem policial, B. contou ter participado do roubo, mas que não entrou na casa, “permanecendo apenas na direção do veículo para dar fuga do local”. Em seu depoimento à Polícia Civil, contou que não sabia sobre os outros homens que invadiram a casa, apenas que havia os conhecido em um bar.

    Horas depois de serem detidos, já nas dependências do 73° DP (Jaçanã), o trio foi colocado em uma sala onde foram apresentados para as vítimas. Lima e o segundo homem que o havia repassado os aparelhos foram reconhecidos “sem sombra de dúvidas” por uma das pessoas como aqueles que haviam entrado na casa naquele dia. Uma outra vítima reconheceu todos dos três.

    Imagem de Tulio na pizzaria onde trabalha na hora do roubo | Foto: Arquivo

    Diante da investigação policial e da denúncia do Ministério Público, baseada principalmente no reconhecimento do trio pelas vítimas e no encontro dos objetos roubados, o juiz Marcello Ovídio Lopes Guimarães condenou Lima e outros dois homens que teriam praticado o assalto a 10 anos e oito meses de prisão por roubo e extorsão.

    Preocupada em provar que seu irmão não roubou, mas praticou receptação, Thamires Pires Lima passou a investigar por conta própria o caso, onde conseguiu câmeras de segurança de um imóvel ao lado da pizzaria que mostram seu irmão no local no mesmo horário do roubo. A distância entre a pizzaria e o local do fato é de cerca de três quilômetros.

    “Uns dias depois eu fui na pizzaria em que ele trabalha, mas lá não tem câmera. Um outro estabelecimento próximo tinha. Consegui imagens que mostram meu irmão na pizzaria. Ele chega com o carro dele por volta das 18h e sai às 19h37. Esse dia ele estava de carro, porque a moto estava quebrada. Ele foi lá ver se tinha uma moto para trabalhar”.

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    Thamires ainda conseguiu que o dono da pizzaria escrevesse uma carta, entregue em juízo, que confirmava que seu irmão estava no local naquela data e horário.

    Em juízo, Tulio Ikaro Pires Lima alegou que trabalhou de dia em uma empresa e a noite foi até a pizzaria em que prestava serviço. Ele também explicou que como sua moto estava no conserto, pediu a moto de um amigo emprestada, mas não conseguiu. Foi até a casa de outro amigo, mas também não conseguiu a moto dele. Voltou à pizzaria e pediu dispensa, indo para a casa da tia da esposa.

    Questionado sobre o motivo de estar em posse dos aparelhos, Lima justificou que “recebeu telefonema de S., que pediu ajuda para vender alguns telefones. Soube, depois da prisão, que os aparelhos eram produtos de crime, mas não sabe se eram do presente roubo. Foi preso pela polícia pela localização do telefone, mas afirma que não participou do presente delito”.

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    A versão de Lima também pode ser confirmada através da investigação tocada pela sua irmã, já que além da testemunha na pizzaria, Thamires ainda obteve um print de uma conversa que seu irmão teve com o homem que passou o celular para ele.

    Thamires tenta entender até agora o que levou seu irmão a estar em posse dos aparelhos. “Eu não sei porque meu irmão pegou esses celulares. Pela mensagem não era para ele estar com esses celulares. Era para meu irmão ter levado ele, mas na hora que meu irmão foi pego ele estava sozinho”, explicou.

    Lima ainda afirmou em juízo ter permanecido por cerca de uma hora dentro da viatura da PM e que foram tiradas fotos dele. No entanto, ao serem indagadas pelo juiz do caso, as vítimas do roubo negaram que tenham visto ou recebido fotos do trio antes do reconhecimento na delegacia. Sobre o reconhecimento presencial, Lima disse que ele e os outros dois presos foram perfilados com mais duas pessoas.

    Também em juízo, a pessoa que entregou os celulares para Lima contou sua versão, em que também tirou o entregador de pizza do local do crime.

    De acordo com ele, por volta das 19h30 recebeu uma ligação de B. Como este lhe devia dinheiro, pois aluga a garagem para moto e carro, avisou que rapazes com o seu carro iriam ao local e pagariam os atrasados. Segundo ele, “recebeu o carro, que estava com dois indivíduos negros, e eles pagaram a dívida dando celulares. Estranhou, mas mesmo assim pegou os aparelhos”. Foi nesse instante, que “mandou mensagem para Lima o ajudar a vender os celulares. Soube depois da prisão que os aparelhos eram produto de crime, mas não sabe de qual subtração”.

    Já B. mudou sua versão. Diferentemente de seu depoimento para a Polícia Civil, de que teria dado dirigido o carro para fuga, ele alegou, em juízo, que devia dinheiro para traficantes e por isso emprestou o carro para eles, mas não participou do roubo.

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    “O caso é bem complexo, porque temos várias imagens que mostram Lima em outro local, mas ainda assim, o Ministério Público ignorou as imagens e preferiu acreditar que ele participou do roubo”, afirmou a advogada criminalista Amanda Tomeli. Além dela, a defesa conta com Luciana Tomeli.

    “Nós temos uma sequência de vídeos que foram juntados ao processo que mostram Lima na pizzaria. Ele até sai do local, mas ele retorna ao estabelecimento no momento em que ocorria o roubo. O Ministério Público tenta desacreditar os vídeos, alegando que eles não passaram pela perícia, mas acabam por não pedir que passem pela perícia”, argumentou Amanda.

    A dupla de advogadas estuda o caso para que possa apelar na tentativa de desconfigurar a acusação de roubo e transformar em receptação e brigar por um regime semiaberto para o entregador.

    A pedido da Ponte, a advogada criminalista Débora Roque, que atua junto da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, analisou o processo e apontou diversas lacunas em seu encaminhamento.

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    “Na sentença de condenação podemos verificar que as provas apresentadas pelas defesas dos acusados foram colocadas em dúvida quando o promotor cita que ‘a ofensa à cadeia de custódia e perícia de vestígios’ pelo fato das imagens não terem sido periciadas, ora se havia dúvidas da veracidade das provas tanto o juiz quanto o promotor poderiam requerer diligências, por que não fizeram?”

    A advogada criminalista ainda pontua que os reconhecimentos, única prova que coloca dois dos acusados na cena do roubo, não foram questionados, mesmo contendo irregularidades e contradições nas versões das vítimas. “Na delegacia relataram que três indivíduos entraram na residência, sendo que os três acusados foram reconhecidos. Já na sentença consta que as vítimas reconheceram dois dos acusados como os que entraram na casa e um terceiro que ficou do lado de fora, no entanto, não está claro como foi possível o reconhecimento daquele que ficou do lado de fora, em que momento foi possível as vítimas o reconhecerem?”

    Na análise de Débora Roque, os apontamentos “são questionamentos que deveriam ser feitos por todas as partes do processo, para então evitar condenações duvidosas que colocam o sistema judiciário em dúvida. Pois há chances de os verdadeiros roubadores estarem soltos”, completou.

    Outro lado

    Procurada, a Secretaria de Segurança Pública respondeu por meio de nota que “três homens foram presos em flagrante por roubo a residência na tarde de 26 de junho, na Rua Padre Leão Peruche, bairro do Tucuruvi, zona norte de São Paulo. O caso foi apresentado ao 73º DP (Jaçanã), onde duas vítimas realizaram o reconhecimento dos três suspeitos. O inquérito policial foi finalizado e encaminhado à Justiça em junho, não retornando mais à unidade”

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    Já o Tribunal de Justiça informa que “não emite nota sobre questão jurisdicional. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.”

    O Ministério Público, por sua vez, não havia se pronunciado até a publicação do texto.

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