Um comerciante negro com R$ 600 no bolso: para a PM, é um traficante

    Jonathas Ribeiro recebe auxílio do INSS e havia saído do trabalho quando foi preso, em SP; única testemunha da abordagem afirma que ele é inocente

    Jonathas foi preso por tráfico de drogas, mas família afirma que ele é inocente | Foto: Arquivo pessoal

    A vida de Talita Barbosa dos Reis, 23 anos, mudou completamente no último 14 de julho. Naquela noite, o motoboy Jonathas Silva de Paula Ribeiro, 31, marido de Talita, foi preso por tráfico de drogas na Vila Medeiros, na zona norte da cidade de São Paulo. A família afirma que a droga encontrada com ele foi armação dos policiais militares. Jonathas está preso no Centro de Detenção Provisória Belém I, na zona leste, desde então.

    Um vídeo enviado pela família mostra Jonathas na adega da qual é sócio na Vila Medeiros por volta das 19h20. Nas imagens, é possível ver o motoboy conversando e, depois, pegando algo ao lado do caixa e o celular. Segundo Talita, o companheiro havia sacado o auxílio do INSS no valor de R$ 600 na manhã daquele dia e usaria o dinheiro para acertar multa do carro que havia vendido a um amigo.

    Ao filho de 5 anos do casal, que está doente desde que o pai foi preso, Talita diz que Jonathas está na praia, “vendendo água na praia e já já ele chega”. “O Jonathas é um menino bem na dele. É um pai maravilhoso. Ele sofreu um acidente há um tempo, então parou de trabalhar como motoboy. Anos atrás ele teve uma passagem, por roubo, mas desde então refez a sua vida”, define a esposa.

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    Da adega, Jonathas passou em casa, em uma viela na Vila Ede, e saiu novamente para encontrar o amigo, perto de onde mora. Pouco depois, foi abordado com o amigo e outro homem. Segundo a versão dos policiais militares Sandoval Galvão Santos e Danilo Santos Almeida, ambos do 5º Batalhão da Polícia Militar Metropolitano, denunciado pela Ponte por investigação de “mensalão” do tráfico e morte de morador de rua, Jonathas estava com 123 gramas de cocaína, maconha, crack e haxixe agachado perto de um Fusca abandonado.

    O caso foi registrado no 73ºDP (Jaçanã) pelo delegado Denis Kiss, responsável pela atuação em outro caso noticiado pela Ponte, quando PMs abordaram e torturaram um jovem negro na região do Jaçanã, também na zona norte.

    Segundo a versão dos policiais militares, eles estavam fazendo patrulhamento de rua e, por volta das 21h10, viram Jonathas no cruzamento das ruas Silva Guimarães com a rua Doutor Pedro Paulo Lagreca Neto.

    Ainda de acordo com o registro policial, Jonathas teria corrido quando viu a viatura, sendo perseguido pelo sargento PM Danilo. Na revista, segundo os PMs, foi encontrado uma sacola plástica com as drogas e R$ 248 em dinheiro. No Fusca, relatam os policiais, foram encontradas mais drogas e a quantia de R$ 630.

    Desde o acidente em 2017, Jonathas recebe benefício do INSS | Foto: Arquivo pessoal

    A família rebate a versão dos policiais. Talita contou à reportagem que Jonathas teria certa dificuldade em correr, pois já sofreu dois acidentes com moto: um aos 16 anos e outro em 2017, quando ele passou por cirurgia e colocou pino na perna. “De lá pra cá tem que fazer acompanhamento e precisou ficar afastado do trabalho de motoboy”, conta. Foi aí que ele entrou como sócio da adega para complementar a renda que tem de benefício do INSS.

    A esposa também afirma que Jonathas não tem envolvimento com o tráfico e que a droga encontrada pelos PMs não estava com ele, mas no Fusca abandonado, localizado na entrada da favela, cerca de 300 metros de distância do local onde ele foi abordado. “É desesperador saber que ele tá preso injustamente, que não é o primeiro e nem vai ser o último com quem vão fazer isso”, lamenta.

    Talita gravou um vídeo e enviou à Ponte sobre o trajeto que o marido fez no dia dos fatos.

    Na delegacia, o advogado de Jonathas apresentou as imagens da adega, localizada na rua Bentureli, que mostram que, por volta das 19h27, Jonathas estava no local. A família afirma que a abordagem foi pouco depois da filmagem na adega, perto das 20h.

    O soldado PM Galvão afirmou para o delegado na delegacia que a viatura passou pela adega para fazer o cerco já que Jonathas teria corrido. Os PMs não confirmam o horário que passaram no local, mas afirmam, no registro policial, que foram acionados via Copom às 19h30 e estavam na rua São Leotélio, a 700 metros dali, no momento.

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    O amigo de Jonathas que foi abordado com ele também prestou depoimento na delegacia. Segundo registrado no B.O., ele confirmou a abordagem e disse que nenhuma droga havia sido encontrada com Jonathas. Essa pessoa declarou também ter sido presa em 2015 por associação ao tráfico de drogas, mas seu depoimento divergiu do de Jonathas no que diz respeito aos valores em dinheiro que ambos iriam trocar no encontro referente à venda de um carro. Isso foi prejudicial a Jonathas no entendimento do Ministério Público e da Justiça paulista.

    No depoimento dado na delegacia, a testemunha afirma que estava conversando com Jonathas na rua onde mora para resolver pendências que tinha da documentação do carro que comprou com o motoboy um mês antes. Quando conversavam, foram abordados pelos policiais militares antes de receber os valores referentes a pendências na documentação do veículo. A testemunha afirma que nada de irregular foi encontrado com nenhum dos dois após a revista. Os policiais, então, os levaram para outra viela, onde foram separados.

    Jonathas, no depoimento na delegacia, narrou o que aconteceu naquela noite. Ele contou que por volta das 20h foi até a casa da avó para medicá-la. Depois, encontrou um tio dele e, por fim, foi falar com a testemunha, que é seu amigo, para resolver pendências do carro que havia vendido, quando a PM o abordou. Jonathas conta que os PMs o levaram para outro local, onde pegaram a droga.

    Ele contou que estava com R$ 600, que sacou o auxílio emergencial mais cedo. Ele afirma que o combinado era receber R$ 2 mil reais da testemunha, não pagá-lo. Também relata que não correu em nenhum momento.

    Jonathas e seu filho Nathan, de 5 anos | Foto: Arquivo pessoal

    Para justificar a prisão de Jonathas, a promotora Ana Luisa de Oliveira Nazar de Arruda argumentou que “o crime em questão, apesar de ser cometido sem violência ou grave ameaça, é delito que vem ocorrendo com freqüência no Estado de São Paulo, tirando o sossego de toda a sociedade honesta e trabalhadora”.

    Arruda também afirmou, em sua manifestação no processo, que havia materialidade e autoria criminosa de Jonathas, solicitando, assim, que a Justiça paulista convertesse o flagrante para prisão preventiva (espécie de prisão cautelar sem condenação). A promotora também destacou que o motoboy já teve passagem pela polícia e que “não há nos autos comprovante de residência fixa e trabalho lícito”, apesar de endereço e profissão terem sido anotadas no boletim de ocorrência na delegacia.

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    Esse também foi o entendimento da juíza Helena Furtado de Albuquerque Cavalcanti, que concordou com o MP e decretou prisão preventiva no dia 15 de julho. “Não verifico a existência de qualquer irregularidade para não converter a prisão”, declarou a magistrada em sua decisão.

    “Referida testemunha, que conhece o autuado desde a infância, afirmou que o autuado não fugiu da abordagem e nem trazia nada de ilícito. Contudo, trouxe versão distinta acerca do encontro entre eles, tendo afirmado que o autuado lhe pagaria R$ 3 mil para ajudar a pagar multas de um veículo vendido, ao passo que o autuado afirmou que a testemunha lhe pagaria R$ 2 mil referente à prestação da venda do veículo”, sustentou.

    ‘Malabarismo para justificar prisão’

    Para a advogada criminalista Maria Clara D’Ávila, integrante da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, a divergência sobre quem iria receber o dinheiro do carro não era suficiente para manter Jonathas preso. “Ambos confirmaram que iriam se encontrar para resolver as pendências da venda do carro e poderia ter havido divergência de entendimento entre os dois por conta disso”, avalia.

    “Isso não é suficiente para desqualificar a parte mais importante da testemunha, em que ele afirma que estava com o Jonathas no momento em que foram abordados, que Jonathas não correu dos policiais, nem foi visto ao lado do Fusca onde foram encontradas as drogas. Que ele [testemunha] viu o Jonathas sendo levado para lugar afastado por um dos policiais. Essas partes que têm a ver com o momento do flagrante estão todas em consonância com o depoimento do Jonathas”, aponta.

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    Por isso, continua D’ávila, as maiores fragilidades do flagrante estão na falta de comprovação do delito, que seria provar que Jonathas correu dos policiais, “o que segundo os policiais configuraria a atitude suspeita e justificaria a abordagem”. “O primeiro montante de drogas e dinheiro foi encontrado apenas por um policial, Danilo. O outro policial, Sandoval, inclusive, confirma que quando chegou o Danilo já havia feito a revista no Jonathas”.

    A criminalista avalia que a sentença desqualifica o depoimento da testemunha e considera apenas a divergência sobre quem iria receber o dinheiro do carro. “A sentença apenas se baseia no depoimento dos policiais, não indagando sobre quaisquer outros meios de prova e também chama atenção que a argumentação se baseia nos efeitos da cocaína sobre o corpo, o que fomenta a criminalidade violenta, sem qualquer comprovação científica disso”, aponta.

    “É impressionante o malabarismo para justificar o tráfico como sendo um crime violento quando na verdade não é”, finaliza.

    Palavra da PM vale muito; a da testemunha, nada

    Para Maira Pinheiro, advogada criminalista e integrante da Rede Feminista de Juristas, é cruel a lógica de que “a palavra dos policiais é tratada como presunção de veracidade”. “Não é nem um pouco incomum que a gente se depare com esse tipo de relato de drogas que foram plantadas e situações de flagrantes forjados”, pontua.

    Pinheiro aponta que, no nosso sistema de Justiça criminal, há uma inversão de valores: o réu precisa provar que é inocente e não provar que suas alegações são verdadeiras. “Quando ficamos nesse regime de verdade que se atribui à palavra dos policiais militares é muito difícil você refutar essa narrativa porque o Judiciário se satisfaz com uma absoluta ausência de corroboração, de verificação”.

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    A criminalista aponta que os policiais não têm incentivo para elucidar os casos. “A partir do momento em que ele [policial] precisa legitimar a sua atuação, ele não vai confessar que incorreu em algum tipo de prática que pode configurar em abuso de autoridade. Então ele não tem interesse, nem incentivo, de esclarecer ou fornecer elementos que completem a sua palavra, porque o sistema já se contenta com a palavra e ele não precisa comprovar”, pondera.

    Pinheiro também discorre sobre a dificuldade de medir quantas pessoas estão presas por terem sido forjadas pela polícia. “No caso do tráfico isso é particularmente prevalente, porque basta a palavra do policial e drogas surgirem, sem nenhuma comprovação, para você produzir uma condenação”, conclui.

    Outro lado

    A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar para questionar as contradições do caso, assim como apresentar os vídeos e solicitando entrevista com os PMs citados e o delegado Denis Kiss.

    Como resposta, recebemos que o posicionamento seria por nota, não por entrevista. “A Polícia Civil informa que o autor foi preso em flagrante por tráfico de drogas. O inquérito foi relatado à Justiça. Demais questionamentos devem ser remetidos ao órgão responsável”.

    Já o MP-SP informou que “a denúncia já foi apreciada pelo Poder Judiciário e o réu foi mantido preso. O processo terá seu trâmite normal”.

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    Por e-mail, o TJ-SP informou que “não emite posicionamento sobre questão jurisdicional”. “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe à parte a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.

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