Ele cresceu no samba e no Carnaval. Hoje, a maior festa popular do país é a oportunidade de tentar levantar algum trocado e seguir sobrevivendo nas ruas
O relógio marcava 8h da manhã, clima abafado no Bixiga, na região central de São Paulo. Debaixo do Viaduto Júlio de Mesquita Filho encontramos Evandro Aparecido de Oliveira, 39 anos, e alguns outros moradores em situação de rua. Aproximadamente 15 pessoas, apenas três delas mulheres, dividem uma cozinha improvisada em blocos de cimento, a alimentação, o dinheiro e as roupas. No espaço, havia duas televisões, cercadas por colchões. Em um deles estava Evandro, que na época do Carnaval se autointitula “o homem da lata”. “O homem da lata é isso. É reciclagem, latinha”, explica.
Evandro marca presença em todas as alas do desfile da vida real. Com sua sacola plástica, vai catando as latas que os foliões vão descartando enquanto o bloco vai passando. “Não tem balada igual. É latinha pra caramba!”, comemora Evandro, que, após 11 anos de cadeira, vive nas ruas de São Paulo depois de uma briga familiar.
Catador de recicláveis é uma das muitas coisas a que se dedica para tentar levantar um trocado e sobreviver. Mas também ataca de camelô, cambista, “flanelinha”, o que der para levantar um trocado.
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Não demorou muito para Evandro trazer o futebol para conversa. “Tô de luto por quarta-feira [quando Corinthians perdeu para o Guarani do Paraguai e foi desclassificado da Libertadores]. Ser corintiano é a pior doença que tem, tio. É maldição”, riu. Às terças-feiras, ele joga bola em um campo de gramado sintético debaixo do viaduto onde mora. O programa é oferecido pela Prefeitura de São Paulo para pessoas em situação de vulnerabilidade social e os jogadores recebem um almoço após a prática pela manhã.
Na sequência, falou do samba. “Sou ritmista. Toco percussão, timba, reco-reco”. Aprendeu todos os instrumentos com os tios, que faziam roda de samba em casa com sua mãe e outra tia, uma doce lembrança que guarda da infância.
Evandro cresceu no Carnaval. Apaixonado pela Unidos do Peruche, tocou na bateria em alguns desfiles de escolas de samba. Largou a vida na avenida após perceber que seu trabalho era um dos mais árduos e dos menos recompensados. Hoje, com a sua comunidade debaixo do viaduto, seu instrumento é outro: faz samba com batuque na lata, caixa de fósforo e balde.
A reportagem acompanhou um dia de trabalho de Evandro na folia carnavalesca. O bloco escolhido foi o Arrianu Suassunga, na rua Padre de Carvalho, ao lado da avenida Faria Lima, região rica da cidade. Gastamos aproximadamente uma hora para chegar, contando o caminho a pé e de ônibus. ”Faz mais ou menos uns quinze anos que eu não venho para esses lados”, disse Evandro, transparecendo a sensação de que aquele não é o lugar dele.
Já no bloco, que ainda estava na concentração, os foliões bebiam e se preparavam para a festa. Enquanto isso, Evandro já empunhava o saco plastico. “Não é ‘saco’, é ‘cartucho’ no dialeto da rua”, disse, corrigindo a reportagem, enquanto vasculhava lixeiras em busca de latinhas. Até então ele era o único catador do bloco, mas quando estávamos acompanhando a folia apareceu outro. Nessa situação, a amizade fica de lado e dá lugar à concorrência. “Se eu não pegar, ele pega”, explica.
Além de ser o material mais reciclado no Brasil, as latinhas de alumínio possuem um ciclo rápido de retorno ao mercado, algo em torno de 60 dias, segundo a Associação Brasileira do Alumínio, a partir da compra, utilização, coleta, reciclagem, envasamento e retorno às prateleiras. Por isso a importância do trabalho dos catadores.
No fim do bloco, Evandro tinha coletado mais ou menos cinco quilos (aproximadamente 335 latinhas, rendendo R$ 20). Enquanto isso, no mesmo bloquinho, os vendedores anunciavam a promoção “3 por 12”, ou seja, a cada 5 latinhas consumidas pelos foliões, se gastava R$ 20, o mesmo arrecadado após toda a jornada do trabalhador.
Egresso do sistema prisional, Evandro conta que é uma experiência que deixa marcas por toda uma vida. Ele fala da linguagem usada lá dentro, do tratamento desumano que os presos recebem e até do fato de não ter mais conseguido emprego por causa do seu passado.