Um incêndio que não se apaga

     Após a morte do motorista John Brandão, vítima de um incêndio a ônibus, viúva e filhos tiveram que mudar de bairro e sofrem com falta de dinheiro

    Uma polícia que mata, um jovem que se vinga, um Estado que não ampara são os ingredientes que ainda moldam o drama da família de John Carlos Soares Brandão, sete meses após a sua morte. Além da dor da perda do ente amado, a viúva e os filhos mudaram de bairro, de escola e sofrem com a falta de dinheiro e de creche.

    John ao lado da esposa / Foto: Álbum de família
    John ao lado da esposa / Foto: Álbum de família

    Eram aproximadamente 19h do dia 18 de outubro de 2014. O motorista da viação Santa Brígida, John Carlos Soares Brandão, 42 anos, conduzia o ônibus prefixo 11.272 pelas ruas do Parque São Domingos, zona noroeste, da cidade de São Paulo, em uma viagem normal da linha 8047/41 (Metrô Vila Madalena – Jaraguá). Na mesma região, 14 jovens se preparavam para incendiar um coletivo. Eles queriam vingar a morte de Thiago da Silva Santos, morto na manhã daquele mesmo dia, pelo policial militar José Carlos da Silva, numa suposta tentativa de assalto ao próprio PM.

    Ao passar próximo ao número 1.890 da Estrada Turística do Jaraguá, o ônibus guiado por Brandão foi interceptado pelo grupo. Motorista, cobrador e passageiros receberam ordens para deixar o coletivo. Antes que Brandão destravasse o cinto de segurança, Lucas Mateus da Silva, 18 anos, teria jogado combustível no motorista — segundo a versão de dois adolescentes detidos, que consta no processo que tramita na 5ª Vara do Tribunal do Júri. O adolescente e o motorista chegaram a trocar socos, mas Lucas teria acendido um isqueiro e Brandão foi tomado pelas chamas. Com 80% do corpo queimado, ele morreu três dias mais tarde.

    A versão de Lucas é diferente. Num áudio encontrado pela polícia no celular do rapaz, divulgado pela Rádio CBN, ele admite a participação, mas afirma que o fogo em Brandão foi acidental:

    Lucas: “Aí, eu coloquei a gasolina, o motorista veio trocar soco comigo, tá ligado, ‘parça’?! Nós caímos no chão, mano, no bagulho, tá ligado?! Aí, nisso que nós caímos no chão, mano, ele se molhou com a gasolina, né parça?! Aí, nós descemos para fora do busão trocando, mano.”

     Aí, o que acontece: na hora que eu vi que não tinha ninguém no ‘busão’, eu fui tocar fogo lá no banco de trás lá, mano, na porta de trás, tá ligado?! Ele tava entrando no segundo degrau da frente, mano. Ele tava com gasolina, tá ligado?! ele já pegou fogo também.”

    Os colegas de trabalho de Brandão, assim como Lucas, também se valeram dos ônibus para protestar. Ao invés de incendiá-los, interromperam o trabalho e fecharam terminais das zonas norte e oeste durante uma hora, enquanto o condutor era enterrado. Na mesma Viação Santa Brígida, trabalha o pai de Lucas, também como motorista.

    Sem creche, sem emprego

    “Só soube o aconteceu com meu marido por volta das 4 horas da manhã. Ele deveria estar em casa à meia-noite, como não chegou e não atendia o telefone, não consegui dormir. Continuei a ligar no celular, quando o supervisor da linha atendeu e pediu que que fosse até o hospital. Não reconheci meu marido, todo inchado, desfigurado”, conta Joelma Lima de Souza, de 38 anos.

    Segundo a viúva, John Carlos Soares Brandão era um esposo e pai presente, mesmo após chegar cansado do trabalho, por volta da meia-noite, ainda tinha ânimo para brincar com os filhos, J. P. B., 10 anos, P. L. C. B., 9 anos, e H. S. B., hoje com oito meses, mas com 45 dias quando o pai morreu. Joelma tem mais um filho de um relacionamento anterior.

    Em todos há um olhar de resignação e saudade. O bebê, com febre, choroso, pula rápido no colo do repórter, parece querer encontrar ali a presença do pai. Mas, quem mais sofre, segundo a mãe, é P. que dado momento da entrevista deixa a sala. “Já está chorando P.?, pergunta a mãe. Cabisbaixo, ele sai da cozinha com um brinquedo nas mãos e num tom quase inaudível diz: “tô não mãe”.

    Sete meses após a morte de Brandão, então com 42 anos, sua família vive de favores, e mora numa casa alugada pela viação Santa Brígida. Joelma e os quatro filhos vivem com apenas um salário mínimo, ela está sem trabalhar por não encontrar vaga em creche e não tem com quem deixar o caçula, H.

    Joelma conta que os filhos não têm vontade de ir à nova escola e que passaram a viver reclusos em casa após mudarem para o Jardim Carumbé, extremo norte da capital, ao pé da Serra da Cantareira. O bairro é “perigoso” e “pesado”, nas palavras da viúva, e fica distante da Osasco onde viviam.

    A mulher e os quatro filhos não conseguem se adaptar. “Nós estamos depressivos, os meninos não podem sair de casa, a rotina dos garotos é da escola para casa, da casa para escola”. O barulho dos bailes funks na rua em que residem não os deixam dormir. “Isso não tinha em Osasco (os carros com som alto e as motos que passam estralando)”. Os garotos também não se adaptaram à escola da região. É difícil, meus filhos não têm direito a jogar bola, quero sair daqui”. O maior desejo é voltar para Osasco.

    Os acusados

    Dos 14 acusados de participar da ação quatro estão presos. Além de Lucas, foram detidos Juan Diego Garcia, 19 anos, Marcos Vinícius Oliveira Silva, 22, e Danilo Gomes Brigadeiro. Um está foragido, Leandro Batista de Sales, de 24 anos. Também são réus no processo Igor Félix da Silva e Diego Alves Alcântara de Souza.
    Contra eles pesam as acusações de homicídio triplamente qualificado, associação criminosa armada, incêndio majorado e corrupção de menor majorada, além de constrangimento ilegal e furto.

    Com base no processo, a reportagem pode apurar a tese de defesa de dois acusados. Segundo a defesa de Danilo Gomes Brigadeiro, ele não estava no local no momento do ataque. “O paciente acredita que teve seu nome indevidamente envolvido na acusação, já que na data dos fatos estava próximo do local dos fatos, ou seja, na rua do seu local de trabalho”. Porém, Brigadeiro foi reconhecido por testemunhas, tendo seu pedido de habeas corpus negado.
    A defesa de Leandro Batista de Sales usa como argumento para pedir revogação de prisão preventiva sua primariedade em delitos. “O paciente é primário, com bons antecedentes, possui residência fixa e ocupação lícita”.

    A reportagem tentou contato com a defesa dos réus, mas não obteve êxito.

    ‘Eu não mereço ser queimado’

    A morte de John motivou a campanha ‘Eu não mereço ser queimado’, no Facebook, promovida por moradores da zona norte e oeste e funcionários da Viação Santa Brígida. A campanha visa conscientizar a população que é ela é a maior prejudicada quando se queima um ônibus, pedir por mais seguranças para os motoristas e também a arrecadar doações para a família de John.

    Restos de ônibus incendiado/ Foto: Campanha Eu não Mereço ser Queimado
    Restos de ônibus incendiado/ Foto: Campanha Eu não Mereço ser Queimado

    “Somos contra o vandalismo ao transporte público, que prejudica a população e as empresas. O caso do John nos chamou a atenção, pois em todos esses anos, foi o primeiro funcionário a morrer queimado em São Paulo. Vimos a repercussão do caso na mídia e ficamos chocados com tamanha crueldade para aqueles que trabalham arduamente servindo à população”, diz a estudante Tayná Alencar, de 21 anos, que faz parte, junto a funcionários da empresa, da campanha
    Ataques a ônibus em SP registram mortos e feridos

    Segundo a SPUrbanuss (Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo) , desde 2013 foi registrada uma morte e quatro feridos vítimas de ataques a ônibus. Mas o sindicato, não contabilizada os dados de 2012, quando dois passageiros morreram, após ataque a um coletivo parado em um ponto final. A ação também teria sido uma represália à morte de um homem por policiais militares num suposto confronto, na região do Parque Edu Chaves, na zona norte.

    Medo

    A cobradora Ana Paula Xavier, de 23 anos, disse trabalhar tensa. “A gente vive com medo pela nossa segurança e dos passageiros. O ônibus é grande e não possui muitas saídas e sempre vive lotado”. A SPTrans informou que se preocupa com a integridade de motoristas, cobradores e passageiros, e que busca junto ao secretário de segurança pública uma medida.

    O desespero, não é só apenas de pessoas que estão dentro dos veículos, mas também de quem está fora deles. O porteiro A. P., de 40 anos, conta como acordou assustado, durante uma noite no final de 2014, quando percebeu que um ônibus ardia em chamas na porta de sua residência, no Jardim Luso, na zona sul. “Acordei com aquele calor, quando olhei pela janela, um ônibus pegando fogo. A cena não sai da cabeça. E se pega na minha casa, o que eu iria fazer?”, diz resignado.

     

    Número de ônibus queimados em SP desde 2005 | Create infographics

     

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    Casos com vítimas

    12/5/2014 – Avenida Yervant Kissajikian, 1.629, Americanópolis, zona sul. Um cobrador teve queimaduras.

    2/04/2013 – Estrada Dom João Nery, altura do número 2.200, no Itaim Paulista, zona leste. Deixou um motorista com queimaduras pelo corpo.

    26/09/2013 – na Avenida Ragueb Chofi, no Jardim Iguatemi, no extremo Leste. Deixou um motorista e uma cobradora com partes do corpo queimado.

    9/12/2012 – esquina da Avenida Edu Chaves com Rua Basílio Alves Morango, no Jardim Brasil, zona norte. Duas pessoas morreram. A ação seria em protesto pela morte de dois homens após abordagem policial.

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