Um rapper foi preso por criticar o rei e a polícia. E isso incendiou a Espanha

    Pablo Hasél foi condenado a nove meses por chamar o rei emérito Juan Carlos de, entre outras coisas, “bêbado tirano” e “capo mafioso”; protestos contra a prisão aconteceram em todo o país

    Um dos grafites pedindo liberdade de Pablo Hasél | Reprodução: Twitter @diogenessentim1

    E se criticar instituições públicas fosse um crime punido com prisão? Parece algo de governos ditatoriais, mas vem acontecendo na Espanha. O caso mais recente é o do rapper catalão Pablo Hasél, preso nesta terça-feira (16/2).

    Segundo veículos de imprensa internacionais, o cantor foi condenado a nove meses por criticar a monarquia espanhola e acusar a polícia de tortura e assassinato de imigrantes e manifestantes em suas músicas e tuites. A prisão teve repercussão em todo o país e se torna mais um caso de repressão do governo espanhol à liberdade de expressão. 

    Pablo Rivadulla Duro, nome real de Hasél, começou a lançar suas músicas gratuitamente em 2005, a maioria delas com temática antifascista e marxista cujo alvo mais comum é a família real, a qual ele acusa de ser herdeira da ditatura franquista, segundo o portal France 24h.

    Os fatos pelos quais Hasél foi preso datam do período entre 2014 e 2016, quando ele postou 64 mensagens no Twitter e uma música no YouTube. Uma de suas ofensas foram dirigidas ao rei emérito Juan Carlos, que abdicou do trono em 2014 e é pai do atual rei da Espanha, o qual definiu como “capo mafioso” e “bêbado tirano”. Em uma das canções, o músico fala sobre desejar que o antigo rei “voe pelos ares”. “Isso não é terrorismo, ele merece o céu”, completa a letra.

    “As pessoas que estão escandalizadas com o que eu canto não tem a mesma reação com os 700 trabalhadores que morrem todos os anos por que são forçados a trabalhar em condições inseguras”, disse Hasél ao se referir às 695 mortes em ambientes de trabalho do país em 2019.

    Condenação

    Por estes fatos, a Corte Nacional condenou o músico em março de 2018, a dois anos e um dia de prisão e ao pagamento de 24.300 euros em multas, informa o El País. Entretanto, a Câmara de Recursos deste órgão reduziu a pena para nove meses e um dia ao considerar a pena mínima prevista por lei deveria ser aplicada porque suas mensagens não representavam um “risco real” para as pessoas. A decisão foi confirmada pelo Tribunal Supremo espanhol em maio de 2020.

    Segundo a BBC, o rapper deveria ter se entregado na semana passada, mas desafiou as ordens policiais e se refugiou na Universidade de Leida, a 150 km de Barcelona, no noroeste da Espanha. Quase duas horas após a entrada dos Mossos d’Esquadra (polícia catalã) na universidade, Hasél foi escoltado para fora do edifício universitário enquanto gritava “nunca nos silenciarão, morte ao Estado fascista”.

    “Serei preso ‘de cabeça erguida’”, o cantor tuitou na noite anterior à sua prisão. “Não podemos permitir que eles ditem o que podemos dizer, o que podemos sentir ou o que podemos fazer”, disse ele, acrescentando que havia escolhido não ir para o exílio no exterior.

    Outros casos

    Em artigo para a BBC, o jornalista James Badcock lista que “vários outros artistas ou blogueiros incorreram no delito de ‘glorificar o terrorismo’”. Na Espanha, essa expressão tem um “alcance tão amplo que qualquer exemplo de justificação de um ato terrorista, mesmo que tenha ocorrido há muito tempo, pode levar a uma condenação”, explica o jornalista.

    Em 2018, o rapper Valtònyc foi condenado pelo Tribunal Supremo da Espanha sob as mesmas acusações de Hasél. Ao contrário de seu colega, este fugiu para Bélgica, onde a justiça decidiu extraditá-lo, mas o cantor se evadiu novamente e segue foragido.

    Outro caso destacado pelo jornalista é o da a usuária do Twitter Cassandra Vera que, em 2017, foi sentenciada por fazer piadas sobre o assassinato do almirante Luis Carrero Blanco, homem de confiança do ditador Francisco Franco, em um ataque com bomba do ETA (grupo separatista basco).

    Para Badcock, “o enquadramento legal desses delitos pode parecer uma questão acadêmica seca, mas uma explosão de grafites nas cidades espanholas em defesa da Hasél nos últimos dias sugere que muitos entre a juventude espanhola acreditam que há uma verdadeira questão de liberdade em jogo”.

    Reações à prisão

    Entidades e personalidades reagiram a prisão de Hasél. A Anistia Internacional tuitou que a prisão foi uma terrível notícia para a liberdade de expressão na Espanha.

    Na quinta-feira (11/2), 60 organizações culturais fizeram um protesto virtual enquanto mais de 140 jornalistas lançaram um manifesto. “O rap ‘não é um crime’, mesmo que a letra seja desagradável”, diz o texto, segundo o portal Catalan News.

    Um outro manifesto, assinado por mais de 200 personalidades espanholas incluindo o diretor Pedro Almodovar e o ator Javier Bardem, pontua que “a perseguição a rappers, usuários do Twitter, jornalistas, bem como a outros representantes da cultura e arte, por tentarem exercer o seu direito à liberdade de expressão, tornou-se uma constante” no país.

    Divulgado na segunda-feira (15/2), o documento também compara o Estado espanhol com Marrocos e Turquia “que também contam com vários artistas presos por denunciarem os abusos cometidos pelo Estado”.

    Por fim, o manifesto pede o apoio e a liberdade para Pablo e a retirada do Código Penal “deste tipo de delito que mais não faz do que cercear o direito não apenas à liberdade de expressão, mas também à liberdade ideológica e artística.”

    Horas depois da divulgação do documento, o Estado espanhol reagiu. Segundo o El País, o governo está preparando uma emenda ao Código Penal para que os crimes relacionados à liberdade de expressão, como o do rapper Pablo Hasél, não sejam punidos com pena de prisão. Em nota à imprensa, o governo promete alterar a definição “para que apenas se castiguem condutas que pressuponham claramente um risco para a ordem pública, com penas dissuasórias, mas não privativas de liberdade”.

    Protestos nas ruas

    O jornal El Periódico registrou na noite desta terça (16/2), várias manifestações pedindo a liberdade de Hasél nas ruas de diferentes cidades espanholas. Algumas tiveram conflitos entre manifestantes e a polícia.

    https://twitter.com/ivan8848/status/1361794229786312705

    Os incidentes mais graves ocorreram em Barcelona, com uma jovem ferida supostamente por uma bala de borracha. Em Lleida, Girona e Vic os manifestantes colocaram fogos em lixeiras que também foram usadas como barricadas.

    15 pessoas foram presas, três em Barcelona, oito em Lleida e quatro em Vic. 17 policiais foram feridos: cinco em Vic, cinco em Barcelona, cinco em Lleida, um em Girona e um em Reus.

    Em Palma de Mallorca, cerca de 200 pessoas se concentraram na Praça da Espanha sem que fossem registrados incidentes relevantes.

    A plataforma ‘Llibertat Pablo Hasél’ convocou para esta quarta-feira (17/2) uma concentração em frente à prisão de Ponent (Lleida), além de novas marchas em várias cidades.

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