Decisão da Justiça de São Paulo põe fim em disputa de mais de 5 anos e determina reintegração de posse de área para construção de hospital; famílias vão receber R$ 400 de auxílio
“Nos temos que cumprir a ordem que o juiz deu, mas o juiz lá de cima sabe o que faz. Ele trará paz para o coração da gente”. A frase do oficial de justiça Julio Cesar Silveira era para acalmar Porfílio Valera, de 90 anos, ao ver o prédio em que morava há meio século na Alameda Glete ser desapropriado. Na manhã desta segunda-feira (16/4), cerca de 200 famílias tiveram suas casas entregues à construtora Construcap, responsável por levantar o Hospital Pérola Byington em uma quadra inteira no local conhecido como Cracolândia, na região da Luz, centro de São Paulo.
O quarteirão fica em frente ao Terminal Princesa Isabel, formado pela Avenida Rio Branco, Alameda Glete, Rua Helvétia e Alameda Barão de Piracicaba. Lá será a nova sede do hospital, que ainda funciona em um prédio alugado na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Desde 2013 acontece uma briga judicial para retirar os moradores do espaço, com capítulo favorável ao governo estadual na última sexta-feira (13/4), com a determinação da reintegração de posse. Para os proprietários que saem, é oferecido uma indenização que varia de acordo com tamanho e condições do imóvel. Aos moradores que alugavam o espaço, é oferecido um auxílio moradia de R$ 400 – com três parcelas pagas de uma vez e, depois, este valor a cada mês.
Entre prédios, casas e comércios, nove espaços deveriam ser esvaziados até as 5h desta segunda-feira (16/4). Sete deles tiveram a retirada feita, incluindo o prédio no qual seu Porfílio Valera morava, fechado com chaves e parcialmente interditado com um muro construído na hora em suas portas. A peruana Ilda Luz Ponce, de 36 anos, vive há nove no Brasil e perdeu o espaço onde morava, no segundo andar de um prédio. Há um ano, seu marido viajou ao país natal deles e não voltou, deixando para trás um menino de quatro anos e uma menina de dois, que tem problemas respiratórios, para Ilda criar sozinha.
“Eu não fiz ocupação, nós compramos essa casa, sou proprietária. Se paguei, me custou, eu moro aqui. Recebi ajuda de cesta básica da LBV e trabalho lá há pouco tempo. Sou faxineira, ganho R$ 1,1 mil para trabalhar das 11h às 22h. O que vai acontecer? Eu quero moradia, porque não dão um espaço para as pessoas que não têm condição de pagar?”, pergunta. Ela é natural de Lima, capital do Peru, e garante ter os documentos do local.
A reintegração também teve em sua lista comércios, como o ferro velho no qual Cristina Fernandes trabalha há 20 anos. Segundo ela, a mudança demoraria pelo menos 30 dias para ser feita, impossível acontecer em apenas um fim de semana, período entre a decisão da Justiça de São Paulo e o limite de retirada, às 5h desta segunda. “Vou procurar meus direitos onde? No poder judiciário que demora dez anos para julgar um caso? É complicado”, lamenta.
Um bar na Alameda Barão de Piracicaba se tornou o quarto comércio de José Antônio dos Santos, 66 anos, desapropriado na região. Há 20 anos, ele vive de comércios na área e há um e meio estava no novo endereço. Na parte da frente, o bar garantia o sustento. Em cima, um quarto era a sua casa.
“Nem imagino para onde vou, com um apavoro desses… É crítico, não é fácil. Tenho seis filhos, eles moram aqui em São Paulo. Ainda não falei com nenhum deles que preciso de lugar para morar, tava faltando tempo. Eu morava sozinho. É fácil para eles [justiça e governo], mas para quem mora aqui, não é”, critica. No imóvel anterior, seus pertences foram fechados junto do prédio, segundo Santos, dando um prejuízo de R$ 50 mil.
Ocupação resiste por mais quatro dias
O fato de Ilde falar em ocupação não foi à toa. Um dos imóveis no processo de retirada dos moradores era um casarão na esquina da Alameda Glete com a Avenida Rio Branco. Lá, uma ocupação abrigava cerca de 60 famílias, com 90 adultos e 55 crianças. Parte das pessoas tinha cadastro na prefeitura e conseguiu receber o auxílio moradia sem tantas dificuldades, mas outra parte não tinha. Estes ganharam prazo até a próxima sexta-feira (20/4) para regularizar a situação e liberar o valor.
A questão se tornou um problema para parte dos ocupantes do casarão nem tanto pelo valor da indenização, mas pelo pouco tempo até encontrar uma nova casa e levar seus filhos e pertences. É o caso de Dreicy Marques Pinto, de 37 anos. Ela é mãe de seis filhos e explica ter enorme dificuldades em encontrar proprietários que aceitem alugar suas casas para tantas crianças.
“Nem consigo imaginar daqui para frente. Ainda não parei porque não me deram opção. Um final de semana e para mim é pior ainda por ser mãe. Um filho, casal sem filhos, o povo aceita. Quem têm muitos filhos fica difícil e o jeito é viver de ocupação. As mães foram as mais prejudicadas. Minhas coisas estão todas aqui ainda”, conta. Dreicy é natural de Ferraz de Vasconcelos, cidade na região metropolitana de São Paulo, e vive com os filhos David, 19 anos, Victor, 15, Nicole, 11, Isabele, 9, e Nicolas, 8, que precisa de tratamento especializado no intestino – Bruna, de 18, não mora mais com a mãe, mas também vive em ocupação.
A situação de Dreicy não é a única. Vilma de Freitas, de 44 anos, enfrenta o mesmo desafio: encontrar um lugar para viver com os quatro filhos Isaac, 10, Iara, 8, Isadora, 7, e Isaias, que fará 9. São nove anos morando em espaços abandonados na cidade, seja na Consolação, Armênia, Alcântara Machado ou na Rio Branco. A mais nova será também na região central, reutilizando materiais do barraco em que morava no casarão.
“Antes eu vivia em pensões em cortiços em Perdizes, Santa Cecília. Eu sou doméstica, trabalho aqui na região e agora mais levo criança para escola, lavo roupa para fora, nada em carteira, concretizado, mas muitos bicos. É disso que sobrevivo, do bolsa família de R$ 400 mais R$ 500 do meu suor”, diz Vilma, terminando de tirar pedaços de madeira para levar até a construção do novo lar.
Nem todos que moram na ocupação têm filhos, porém o convívio com a dificuldade financeira de encontrar um lugar para viver é recorrente. “Eu sou técnica de enfermagem, mas estou desempregada há 16 dias. Morava aqui, nós ocupamos porque o prédio estava há muito tempo fechado e sem nada. Vivendo nessa cidade louca de aluguel, nós entramos e estamos até nesse momento, e só vamos sair com moradia. Por isso esse impasse”, explica a enfermeira Edinilsa Martins, de 30 anos. Ela não sabe para onde irá depois da desocupação.
Insegurança para quem fica
Há mais gente que permanecerá no quarteirão além dos moradores do casarão que ganharam mais quatro dias de respiro. Alguns do imóveis no quarteirão que abrigará o Hospital Pérola Byington ainda não tiveram a reintegração de posse determinada. É o caso do salão de cabeleireiro no qual Raimundo do Carmo, de 72 anos, vive com a mulher, a sobrinha e a filha dela.
“Eu não sei como será daqui para frente. Alugo esse espaço há quarenta anos e o proprietário não me falou nada que precisava sair, então não tem nada de acerto com ele. Enquanto isso, vou ficando sem imaginar o futuro”, diz. Sem saber se seu teto está em risco, Raimundo segue cortando cabelos e barbas, cobrando R$ 20 cada corte e R$ 35 o serviço com acerto de barba e bigode.
Mesmo vivendo nessa incerteza, o cabeleireiro aprova a construção do hospital no bairro. “As coisas aqui pioraram muito desde que a Cracolândia surgiu. De uns cinco anos para cá, ficou pior ainda. Tive até que diminuir o valor do meu trabalho, cobrava R$ 25 o corte antes. Esperamos que a região melhore, era um lugar bom para morar. Agora não é tanto assim”, confessa.
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