Uso de entidades religiosas no tratamento de dependentes químicos dispara sob Bolsonaro

Estudo do CESeC aponta que as chamadas “comunidades terapêuticas” triplicaram as vagas para internações bancadas pelo governo federal entre 2018 e 2021. “Falta embasamento científico” nos métodos aplicados pelas CTs, diz pesquisadora

Imagem do estudo “Imposição da Fé como Política Pública: As Comunidades Terapêuticas no Rio de Janeiro” | Ilustração: Reprodução / CESeC

Para o poder público brasileiro a maneira mais eficaz para tratar o uso abusivo de álcool e outras drogas são os tratamentos empregados dentro das comunidades terapêuticas (CTs). Segundo dados do governo federal, apenas na gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), a União passou de 2.900 vagas financiadas em 2018 para 10.657 em dezembro de 2021. A meta é chegar a 24.320 vagas até o final de 2022.

No início da atual gestão do executivo nacional, o valor repassado para essas entidades era, em média, de R$ 40 milhões por ano. Nos últimos dois anos o valor transferido pelo atual governo para as CTs foi de R$ 193,2 milhões.

Buscando entender como esse dinheiro é aplicado e quais são os requisitos necessários para que essas entidades possam receber verba vinda do Estado, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) produziu o estudo “Imposição da Fé como Política Pública: As Comunidades Terapêuticas no Rio de Janeiro”. 

“Essas entidades estão ganhando cada vez mais força e relevância dentro do debate sobre o tratamento de pessoas que fazem uso abusivo de substâncias, ao mesmo tempo em que estão ganhando força política e financeira com essas parcerias com o poder público e receber verbas via editais”, explicado Paula Napolião, coordenadora executiva do CESeC.

A pesquisa qualitativa, focada no estado do Rio de Janeiro, conseguiu mapear, através da internet, a existência de 109 comunidades terapêuticas em 16 municípios do estado, sendo 38 delas na capital. Também para a formulação do estudo, foram entrevistados gestores de CTs e funcionários de órgãos reguladores desses espaços, como a Vigilância Sanitária do Município do Rio de Janeiro, Subsecretaria de Prevenção à Dependência Química do Estado do Rio e Coordenadoria de Cuidado e Prevenção às Drogas do Município do Rio.

Trabalho, disciplina e espiritualidade

Passando ao largo de qualquer tratamento que vise a redução de danos ou de consumo controlado de substâncias, as comunidades terapêuticas trabalham quase que exclusivamente com o método de abstinência e confinamento para o trabalho junto às pessoas que são tratadas nestes lugares. Para Paula Napolíão, a falta de opções que possa trabalhar as necessidades específicas de cada indivíduo já mostra um das deficiências das CTs.

“Eles até enxergam como uma questão de saúde o uso abusivo de substâncias, mas tratam como uma falha moral ou uma ausência de Deus. Pouco se busca saber sobre a vida o que aquelas pessoas passaram antes do tratamento. Foca-se em questões espirituais, na abstinência total daquilo que eles julgam incorreto e utilizam de discursos religiosos como ferramenta de cura”, analisa a coordenadora do CESec.

A pesquisadora também enfatiza que outra forma que a CTs trabalham junto às pessoas em tratamento é a disciplina por meio de uma rotina rígida, onde se é obrigado a cumprir uma série de tarefas e obrigações como parte do processo de desintoxicação.

“Eles costumam chamar de espiritualidade, mas na verdade as pessoas têm que cumprir uma infinidade de serviços que lhe são impostos, como horários definidos para acordar,  fazer refeições e tarefas laborais, além de reuniões e cultos. A ideia é que através da disciplina as pessoas continuem a fazer essas séries de tarefas regradas quando terminarem o tratamento dentro das CTs”.

Fiscalização complacente

Para poder receber verbas públicas através de editais, as comunidades terapêuticas precisam seguir uma lista de normas de órgãos reguladores e de fiscalização para estarem aptos a fazerem uso dos recursos. As principais determinações vêm da RDC (Resolução da Diretoria Colegiada) 29 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 20 de junho de 2011. 

O documento deixa claro que as instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas em regime de residência devem possuir profissional que responda pelas questões operacionais durante o seu período de funcionamento, podendo ser o próprio responsável técnico ou pessoa designada para tal fim.

Porém, Paula Napolião informa que as CTs encontram brechas no texto da resolução para não cumprir à risca o que determinado pelo órgão regulador.  “Na verdade, deveriam existir profissionais como psicólogos e assistentes sociais, [operando] diariamente nestes espaços, acompanhando os internos. Mas o que a gente viu é que há lugares onde esses profissionais aparecem uma vez a cada 15 dias para assinar laudos e permitir que a instituição permaneça de portas abertas”, alerta.

Segundo a coordenadora, existe uma leniência por parte de quem deveria fiscalizar o funcionamento das entidades que cuidam de pessoas que estão em tratamento para uso abusivo. 

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“Os CTs estão recebendo cada vez mais dinheiro público e colocando esse tipo de tratamento baseado em religião e abstinência como algo técnico e que deve ser seguido como política pública. Isso é muito perigoso pela falta de embasamento científico. É problemático financiar esse tipo de trabalho excludente. Os CTs não vão acabar, mesmo que parem de receber dinheiro público, pois existem há muito tempo sustentadas pelas igrejas”, lembra Paula Napolião

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