Vídeos trazem à tona novo caso de tortura policial no PR

Ministério Público diz que nova agressão em batalhão da PM em Matelândia vai ser apurada; dois policiais foram condenados e expulsos da corporação após agredirem e colocarem luva de plástico em cabeça de jovem negro detido em 2017

Frames dos vídeos que viralizaram: no primeiro, dois policiais foram condenados. No segundo, o MPPR disse que ainda não tinha conhecimento e que abriu investigação | Imagens: Reprodução/Instagram/Deputado Renato Freitas

Dos dois casos de tortura policial gravados dentro do 6º batalhão da Polícia Militar de Matelândia, no oeste do Paraná, e que viralizaram no fim de semana, somente um era de conhecimento do Ministério Público do Paraná (MPPR). O segundo, em que um PM bate nas solas dos pés de um jovem com um objeto semelhante a um cabo de vassoura, enquanto outro ri e segura a perna do rapaz, será investigado.

Os vídeos ganharam repercussão nacional e foram compartilhados, inclusive, pelo deputado estadual Renato Freitas (PT), que exigiu posicionamento da PM do Paraná. Em nota encaminhada ao portal Plural no domingo, a PMPR diz que os envolvidos na primeira situação gravada foram punidos, mas não comentou o segundo episódio.

A Ponte e a Rede Lume apuraram que dois então policiais militares – Marlon Luiz Santos e Rafael Stefano Lauersdorf de Souza – foram denunciados e condenados pela tortura com luva de látex registrada no primeiro vídeo. Era Marlon colocando a luva na cabeça de um jovem negro algemado e depois dando tapa no rosto dele, enquanto Rafael filmava. Este chega a perguntar para o preso, em tom de deboche, “gostou do saco?”. O caso aconteceu em abril de 2017 e foi denunciado por uma ex-companheira de Rafael, dois anos depois. Ela disse à Corregedoria que teve acesso ao vídeo e foi ameaçada por ele.

Durante a investigação, Marlon pediu licença para viajar para a Espanha e solicitou a exoneração do cargo ainda em 2019. Ele acabou condenado pela Justiça Militar a uma pena de três anos, três meses e seis dias, em regime aberto, pelo crime de tortura em 2022, após recorrer da sentença que previa o cumprimento da pena em regime semiaberto. Já Rafael foi condenado a um ano, seis meses e 20 dias de detenção, em regime aberto, por omissão, quando tinha o dever de agir para evitar o resultado do delito de tortura.

Os dois ainda foram sentenciados à perda do cargo público, bem como à impossibilidade de seu exercício por período correspondente ao dobro do prazo da pena aplicada, punições também previstas na lei de tortura. Quando Marlon perdeu o cargo, ele já não estava mais na corporação.

Segundo o advogado Rafael Colli, do escritório Carneiro, Vicente e Colli – Advocacia Humanista, o crime de tortura está previsto na lei 9.455, de 1997. “A lei diz que é crime constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa. Ou então para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; e ainda em razão de discriminação racial ou religiosa”, explica.

Segundo o advogado, uma segunda situação que configura crime de tortura é quando se submete alguém, “sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.

A lei prevê pena de reclusão, de dois a oito anos, pena que pode ser aumentada, de um sexto a um terço, se quem comente a tortura for servidor público. “Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos”, afirma o advogado. Se a tortura resultar em morte, a pena sobe para de 8 a 16 anos.

Mesmos envolvidos

No último domingo (21), após a viralização dos fatos nas redes sociais, o Ministério Público emitiu nota em que reitera que, quanto à tortura com luva de látex, houve apuração e responsabilização criminal dos agentes envolvidos. “Os policiais foram condenados, definitivamente, pelo crime de tortura, e foram também condenados à perda do cargo público”.

Já sobre o segundo fato, o MP afirma que “não haviam chegado ao conhecimento do Ministério Público e que serão adotadas medidas apuratórias para esclarecimento e eventual responsabilização dos envolvidos”. O órgão afirma, porém, que os dois policiais envolvidos no primeiro caso também participaram do segundo. E que este também ocorreu em 2017.

“(…) há, aparentemente, o concurso de três policiais militares – dois deles também envolvidos na situação já apurada e que já foram expulsos”. Marlos Santos não foi expulso, mas deixou a corporação no decorrer do processo.

O terceiro policial seria o que ri para a câmera e, depois, segura a perna do rapaz para dar continuidade às agressões. Este teria sido afastado pela PMPR após a repercussão dos vídeos, de acordo com o portal G1. A Rede Lume tentou confirmar a informação com a assessoria da corporação, via Whatsapp, mas recebeu como resposta somente a informação de que se trata “de vídeo antigo”.

Presos relataram outras agressões

A leitura do processo que levou à condenação de Marlon Luiz dos Santos e Rafael Stefano Lauersdorf de Souza revela outras agressões além da filmada, com luva de látex. A vítima, W., relata ter sofrido violência física, “mediante um tapa desferido na face, com a intenção de aplicar-lhe castigo pessoal e lesioná-lo”. O homem também relatou a aplicação de choques elétricos.

F., que também estava detido com W., teria tentado frear as agressões: “o piá é trabalhador, não precisa fazer isso não”; “por que vocês ficam judiando da gente? Eu sou trabalhador, se quiser, por que não mata de uma vez?”. Os policiais teriam respondido que seria “um desperdício de bala”.

De acordo com os depoimentos deles, a abordagem aconteceu quando os dois estavam indo a um bar. No caminho, de forma aleatória, foram abordados porque estavam sem documentos. Mesmo ao falarem o número do RG, as vítimas dizem que “os policiais não quiseram ouvir” e os levaram ao batalhão onde aconteceu a tortura. Depois, foram até à casa de F. e apreenderam uma porção de maconha, já que ele era usuário.

Dali, seguiram ao hospital, já que W. estava com corte na orelha, decorrente do brinco que caiu por conta do tapa do policial.

No boletim de ocorrência, os policiais disseram que os jovens fugiram da abordagem e que tentaram pular um muro e caíram, por isso W. estava com lesões na cabeça e no tórax. No bolso dele, afirmam, havia 2,5 gramas de maconha. Dali, alegam que os conduziram ao hospital e depois ao batalhão para registro do caso.

Durante o processo, Rafael e Marlon negaram as agressões e que eram eles nos vídeos.

Defesa pede sigilo

Nesta segunda-feira (22/1), a defesa de Marlon Luiz dos Santos pediu a reabertura do processo no qual o ex-PM foi condenado por tortura. Conforme apurou a reportagem, a defesa requer o sigilo dos autos por entender que a exposição do vídeo antigo nas redes sociais e do número do processo pelo MP traria “riscos” à família.

“Diga-se, Marlon já foi julgado e condenado, com decisão transitada em julgado, e está com processo de execução penal em andamento para ‘pagar’ pelo seu erro, inexistindo necessidade de qualquer pessoa ter acesso ao inteiro teor destes autos, colocando em risco a segurança dele e de sua família”, escreveu o advogado Alessandro Rosseto.

A defesa também afirmou que “Quanto ao segundo vídeo, nada se sabe a respeito, o próprio MPPR desconhecia, e informou que irá investigar, razão pela qual a defesa aguarda o desfecho que certamente será por meio de inquérito policial, ressaltando que Marlon esteve e sempre estará à disposição das autoridades para prestar informações quando solicitadas.”

O tribunal militar pediu para o MP se manifestar em três dias, o que ainda não ocorreu.

A reportagem não conseguiu localizar a defesa do ex-PM Rafael.

Essa reportagem foi adaptada com apuração da Ponte e publicada originalmente no site da Rede Lume.

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