Pesquisa do Instituto Sou da Paz, baseada em dados mais recentes do Sinan, mostra que violência armada não letal contra mulheres subiu 23% em 2023. Maior acesso a armas agravou violência baseada em gênero

O número de registros de violência armada não letal contra mulheres no Brasil subiu 23% em 2023 na comparação com o ano anterior, atingindo um patamar de 4.395 ocorrências. O cenário foi identificado pelo Instituto Sou da Paz a partir de dados mais recentes do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), que reúne informações de vítimas atendidas por equipamentos de saúde.
Os resultados foram divulgados neste sábado (8/3), Dia Internacional da Mulher, por meio da quarta edição da pesquisa Pela Vida das Mulheres: o papel da arma de fogo na violência baseada em gênero, antecipada à Ponte. Para a entidade à frente do estudo, o panorama atual exige a formulação de políticas públicas de controle do acesso a armas de fogo orientadas também a questões de gênero.
Leia mais: PMs suspeitos de estupro em viatura são do mesmo batalhão de policial que jogou homem de ponte em SP
Após 2017, quando houve um pico de homicídios e de casos de violência armada não letal contra mulheres, as notificações haviam tido três anos de queda. Desde 2021, contudo, o número de agressões com o uso armas de fogo contra mulheres voltou a subir. Daquele ano a 2023, o salto foi de 35%.
O estudo registra que, entre 2021 e 2022, o Ministério da Saúde, à frente do Sinan, identificou um aumento geral das notificações do sistema, o que atribuiu ao maior empenho dos profissionais e ao fortalecimento da vigilância de violência. Para o Instituto Sou da Paz, o aumento das notificações especificamente sobre agressões armadas contra as mulheres pode também estar associado à maior conscientização em relação às violências sofridas pelas vítimas.
De todo modo, diz ainda a entidade na pesquisa, o rápido aumento “é um indicativo de que o problema é muito maior do que imaginávamos”.
Armas como instrumento de coerção
O estudo também contextualiza que, contra as mulheres, as armas de fogo costumam ser instrumento não apenas de violência física, como é praxe quando as vítimas são homens. Entre os registros de violência armada não letal contra mulheres colhidos pelo Sinan em 2023, estão associados a eles 6,9 mil notificações de outros tipos de violência. As mais comuns são a física (52,8%), psicológica/moral (22,2%) e sexual (13,8%). Também se destacam tortura (4,5%), violência financeira (3,3%) e negligência (1,1%).
“A violência baseada em gênero pode ser agravada quando você tem como recurso uma arma de fogo de fácil acesso para ser empregado contra a vítima. E há várias formas de coerção que podem ser praticadas com a arma, não só a agressão física, mas a violência psicológica, por exemplo. É um instrumento de coerção”, diz Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, à Ponte.
Leia mais: 81% das vítimas de feminicídio nunca haviam registrado denúncia contra seus agressores
A pesquisa mostra, também a partir de dados do Sinan, que os principais locais onde as mulheres sofrem algum tipo de violência armada não letal são a residência (43,8%) e a via pública (31,8%). Em relação aos autores, são sobretudo homens (76%). Além disso, 46% dos agressores são pessoas próximas da vítima — principalmente os parceiros íntimos, que correspondem a 29% do total.
Os dados revelam que, em cerca de um cada de cada três casos de violência não letal (35%), a vítima já havia sofrido outros episódios de agressão atendidos pela saúde.
O estudo também traz dados de violência armada letal: em 2023, foram 3.946 assassinatos contra mulheres no Brasil, dos quais 49,4% tiveram uso de arma de fogo. Esse patamar de agressões armadas entre o número geral de homicídios é o mesmo desde 2012, em torno de 50%, mas tem crescido o percentual de mortes com armas na residência da vítima. Em 2023, 28% delas foram assim, um indicativo de como o maior acesso a armamento por civis agrava a violência doméstica e baseada em gênero.
“A violência doméstica, familiar e baseada em razões de gênero é um problema estrutural, que vai para além da violência armada, mas que se agrava na medida em que a arma de fogo é utilizada como um instrumento para perpetuar isso”, lembra Cristina Neme.
Tanto nos casos de violência letal quanto não letal, a maioria das vítimas é de mulheres negras: entre os homicídios em 2023, elas foram 72%; já entre os episódios de agressão armada, foram 64%.
Controle do acesso orientado a gênero
A entidade defende no estudo a ampliação dos investimentos em notificação e também a necessidade de articulação da agenda de defesa dos direitos das mulheres com as políticas de controle de armas — que diz terem sido retomadas pelo governo Lula (PL), após a gestão de Jair Bolsonaro (PL) ter assumido com uma de suas principais bandeiras a facilitação do acesso.
“Após a fragilização da política de controle de armas promovida entre 2019 e 2022, temos cerca de três milhões de armas legais em mãos de particulares (para defesa pessoal e de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), além das armas institucionais de órgãos públicos, das armas de empresas de segurança privada e de outros milhões de armas em situação ilegal em circulação”, escreve, no estudo.
Leia mais: Entregador preso a caminho do trabalho é solto após passar cinco meses num centro de detenção
“Os indicadores da saúde evidenciam a vulnerabilidade das mulheres à violência em um contexto de maior disponibilidade de armas, seja pelo uso direto dessas armas por proprietários legais que, infelizmente, são cotidianamente relatados, seja pela maior facilidade de desvio para o mercado ilegal em dinâmicas intencionais (por exemplo, laranjas do crime organizado) ou não intencional (como roubos e furtos de armas legais)”, acrescenta ainda a entidade em sua publicação.
A coordenadora de projetos do Sou da Paz reforça ainda a necessidade de integração entre setores, como segurança pública e saúde, para lidar com o problema: “É preciso avançar nesse sentido para promover prevenção e, nos casos mais emergenciais, a proteção imediata para evitar, por exemplo, o feminicídio.”