Movimento apresenta as demandas das mulheres indígenas latino-americanas que acabam invisibilizadas pelas demais lutas feministas
Cerca de 2.795 mulheres latino-americanas foram vítimas de feminicídio em 2017, segundo pesquisa do Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe (OIG), que pertence à Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, ligada à ONU). Desses casos, 98% não foram julgados, de acordo com o mesmo estudo. Nove mulheres são assassinadas por dia, vítimas de violência de gênero, na região. A América Latina, segundo a ONU, é o local mais perigoso do mundo para as mulheres, fora de uma zona de guerra.
Neste cenário, os movimentos feministas, que lutam pelo fim da opressão e violência contra as mulheres, mostram-se fundamentais. Um deles se destaca em meio a outros: o chamado “feminismo comunitário”, que traz em seu bojo as causas das mulheres indígenas, que encontram-se muitas vezes mais alijadas e sem acesso a direitos e serviços que as mulheres brancas possuem. O movimento pode, em alguma dimensão, ser encarado como resultado do processo histórico de colonização do continente.
O “feminismo comunitário” é a maneira encontrada pelas indígenas para conquistar um espaço independente de fala e, também, para desconstruir um sistema desigual secular da sociedade. Mesmo com sua popularização pelos quatro cantos da América Latina, os grupos do feminismo comunitário têm características distintas de país a país. Adriana Guzmán Arroyo e Diana Vargas representam duas faces desse movimento.
Para Diana, o feminismo que acontece dentro de tribos e o que acontece na cidade, no Ocidente, são diferentes, e muitas vezes o segundo acaba atrapalhando um pouco a luta do primeiro. “Vivemos uma dupla opressão. Obviamente não temos as mesmas condições de vida que as mulheres na Europa, porque elas vivem privilégios por terem explorado nossos territórios e nossos corpos, embora sejam feministas, porque elas também têm que lutar contra seu próprio patriarcado, seu próprio capitalismo. Então nós vivemos esse impasse”, afirma Adriana Guzmán, uma das líderes do grupo bolivariano Feminismo Comunitário Antipatriarcal.
A boliviana ainda acrescentou que as indígenas que moram nas cidades, sofrem duplamente pois, por serem quem são, seus corpos são desvalorizados. “A violência ali é duplamente, triplamente mais repressiva. Porque, além disso, seus corpos, suas vidas não valem. Estes feminicídios serão muito mais impunes do que outros feminicídios.”, argumenta.
Adriana explica sobre as diferenças no feminismo de acordo com o país onde se dá o movimento: “Em geral, o movimento na Bolívia é um feminismo também eurocêntrico, institucional, tomado por ONGs, pelos organismos internacionais, pelo discurso dos direitos”. Para a feminista, essa aproximação com reivindicações europeias limitam o que o feminismo comunitário pode se tornar.
“Na Argentina, por exemplo, há muito mais presença nas ruas, a luta lá é muito mais vinculada a questões como aborto. O movimento tem mais capacidade de organização”, complementa Adriana.
A pesquisadora latina Muriel Figueiredo da Costa, mestranda em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP), estuda o feminismo comunitário. Ela destaca que é necessário tratar esse movimento com um olhar especial. “As mulheres indígenas possuem outra relação com a terra e, consequentemente, com o corpo. É uma noção diferente da nossa, pelo menos na sociedade tradicional, na qual não há uma ideia de conexão com a natureza”.
O conceito adotado por Muriel é chamado de “território corpo-terra”, que reconhece que a dominação das mulheres das aldeias corresponde à exploração de seus territórios. Em outras palavras, diz respeito a uma relação de desigualdade que tem ligação intrínseca às opressões sobre alguns povos, como o sexismo, racismo, colonialismo, por exemplo. De acordo com essa leitura, tanto os corpos das mulheres quanto a terra são concebidos como territórios a se conquistar.
Gilsa Helena Barcellos foi outra pensadora que se esforçou para comprovar a presença de uma ligação consistente entre a herança histórica latina e a luta por direitos humanos. A estudiosa descreveu como a colonização e, mais tarde, a exploração das terras mataram os direitos dos povos indígenas. Muriel confirma a constatação: “Historicamente, a colonização e o modo como a nossa sociedade capitalista se instaurou na América Latina deixaram marcas sobre os indígenas que vão muito além do genocídio que aconteceu e acontece até hoje. Além deste aspecto que é mais gritante, são grupos que não possuem representatividade na mídia e na política.”
Um exemplo prático sobre a questão da representação são as mulheres Aimarás, indígenas presentes nos territórios da Argentina, Bolívia, Chile e Peru, que foram as pioneiras feministas. “No caso do feminismo comunitário, que é um movimento formado primeiramente por mulheres indígenas Aimarás, a noção de luta pelos direitos das mulheres desse grupo é vista em consonância com a conexão com a Pachamama, com a Terra. Assim entende-se que quanto mais danos são causados à terra, o mesmo impacto será sentido pelas mulheres e vice-versa”, ressalta Muriel.
A pesquisadora da USP ainda afirma que, para mulheres do contexto urbano, se torna tarefa árdua tentar entender essa relação das feministas comunitárias com a terra, a natureza e a flora. “Mas, no caso de grupos que estão conectados com a natureza, essa questão é gritante. É comum o relato de que em comunidades onde são realizadas atividade de extração de minérios, por exemplo, além do impacto na natureza, aumentam os relatos de casos de alcoolismo e de violências sexuais com as mulheres e crianças”, explica.
As indígenas enxergam a luta feminina sob a visão de ligação com a terra e com os demais. Para Diana, a terra é uma companheira de luta e, por isso, nada justifica a violência e desrespeito com o espaço. Segundo as feministas indígenas, respeitar a terra é respeitar a si mesmo. “Não podemos deixar que o patriarcado destrua nossa cosmovisão, nossa forma de relacionamento com a natureza. Não queremos chamar a natureza como mãe, porque a mãe é um exemplo da figura da exploração capitalista. É uma maternidade de escravidão que sempre nos dá tudo. A pátria, para nós, é uma companheira e uma irmã, ou seja, alguém que convivemos, não que exploramos”, observa Diana.
Adriana enxerga essa ancestralidade como poder: “Nós sermos Aimarás é uma posição política frente ao sistema, e isso implica a denúncia de todas as práticas do sistema sobre nossos povos, sobre nossos corpos”. Muriel ainda diz que existem casos de etnias, como as mulheres Huni Kuin e Yawanawa, que não são necessariamente parte do feminismo, mas que se esforçam para criar uma comunicação saudável entre as mulheres indígenas e as não-indígenas por meio dos encontros medicinais e da valorização dos conhecimento das tribos.
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