Funcionário de um edifício em São Caetano (SP), Ailton Rodrigues, de 35 anos, chegou a ser preso em setembro de 2024 com base em um reconhecimento fotográfico. Juíza identificou problemas no procedimento

A vida do zelador Ailton Rodrigues, de 35 anos, ganhou um novo rumo nesta quarta-feira (12/2). A Justiça de São Paulo o absolveu da acusação de roubo de carga, crime que sempre negou ter cometido. A única prova produzida pela investigação foi um reconhecimento fotográfico feito com uma foto que Ailton ainda não sabe como chegou aos policiais, já que nunca tinha pisado em uma delegacia.
“Eu tive que provar uma coisa que eu nunca fiz. Agora, se fosse branco, filho de médico, será que teria que provar? Só porque eu sou preto e periférico, sou bandido até provar o contrário?”, diz Ailton, que nasceu no município de Casa Nova, na Bahia.
A prisão injusta de Ailton foi contada pela Ponte em outubro do ano passado. O texto da reportagem foi usado pela defesa do zelador nas alegações finais apresentadas à Justiça.
Leia reportagem da Ponte sobre a prisão de Ailton
O zelador foi preso sem saber sequer que era investigado em setembro de 2024, ao sair do trabalho em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo. Na delegacia, foi informado sobre um mandado de prisão preventiva por um roubo de carga ocorrido no ano anterior na vizinha São Bernardo do Campo.
Na ocorrência, foram roubados a carga do caminhão, avaliada em R$ 259 mil (cinco toneladas de cobre e bronze), dois celulares e a carteira de habilitação do motorista que conduzia o veículo. O caminhoneiro ficou por cerca de cinco horas sob o poder dos assaltantes.
Sete meses após o crime, o caminhoneiro foi apresentado a uma foto de Ailton, que estava no álbum de fotografias do 2º D.P. de São Bernardo do Campo. O inquérito não explicou como a foto do zelador foi parar ali. “Por que a minha foto [estava na delegacia]? Eu trabalho, nunca tive passagem. Eles [policiais] disseram ter feito investigação, mas no fim das contas não fizeram nada”, desabafa o zelador.
Falta de provas
A juíza Isabelle Ibrahim Brito absolveu Ailton por falta de provas. Isabelle reconheceu que a acusação contra o zelador foi baseada exclusivamente em um reconhecimento fotográfico feito na delegacia. Na sentença, a magistrada destacou que o reconhecimento aconteceu sete meses após o crime. Já o procedimento pessoal ocorreu onze meses depois — e, na ocasião, a vítima chegou a dizer estar com dúvidas sobre a pessoa a ser reconhecida.
A juíza também apontou problemas sobre a precisão do reconhecimento. A vítima afirmou ter sido encapuzada em parte do roubo e disse não ter visto o rosto da pessoa que a mandou descer do caminhão. Ela contou ainda que viu “mais ou menos” outro suspeito com quem teria interagido. Contudo, em juízo, ela não reconheceu Ailton como um dos assaltantes.
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“Nota-se, assim, reconhecimento falho em delegacia, uma vez que o roubador cujo rosto a vítima teria mais visto foi justamente o roubador em relação a quem a vítima não confirmou o reconhecimento perante a autoridade judicial”, escreveu a magistrada.
Foto de Ailton
Na audiência, foram ouvidos os responsáveis pela investigação. O investigador Marcos Alberto Ribeiro de Souza disse que o caso foi apurado por um ano. Sobre a foto de Ailton, Marcos limitou-se a dizer que a imagem foi apresentada à vítima por meio do livro de fotografias — sem explicar como a foto de alguém que nunca foi preso constava no álbum.
O investigador disse não lembrar de outras provas além desse reconhecimento para identificar Ailton e os demais suspeitos como responsáveis pelo roubo. Já Maurício Carvalho, também investigador, contou que o álbum de fotografias foi composto por imagens tiradas de pessoas investigadas ou indiciadas por roubo de cargas.
O zelador Ailton não cumpria nenhum desses requisitos.
Família provou inocência
Provas reunidas pela própria família de Ailton foram fundamentais para a sua absolvição. No dia do roubo, Ailton foi ao trabalho, treinou em uma academia e, por volta das 20h, retornou para casa. Ao entrar no prédio onde mora, teve o acesso liberado por reconhecimento facial às 20h15.
O trajeto consta na localização marcada pelo celular do zelador e a entrada no prédio ficou registrada — o que reforçou a versão dada pelo zelador aos policiais. Quem apurou e encaminhou esse material às autoridades foram os familiares do acusado.
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O síndico do prédio onde Ailton trabalha testemunhou, confirmando que no dia do roubo o zelador trabalhou normalmente. Duas moradoras do condomínio também testemunharam e disseram que Ailton era um ótimo funcionário.
Outra prova favorável ao zelador foi que os dois outros suspeitos do roubo disseram desconhecê-lo.
Investigação precária
A juíza também destacou que poderiam ter sido feitas outras análises para produção de provas além do reconhecimento que acabou sendo a única prova. Isabelle comentou, por exemplo, que poderiam ter sido feitas perícias papiloscópicas (de extração de digitais), no caminhão roubado.
Outro ponto que poderia ter sido investigado eram os carros que participaram da ação. O caminhoneiro apontou o modelo e as cores, o que, para a juíza, poderia ter sido cruzado com as imagens das câmeras da Rodovia Anchieta — onde a abordagem ocorreu. O monitoramento da carga roubada também poderia ter sido alvo da investigação, apontou a juíza. As cinco toneladas de cobre e bronze não foram localizadas com nenhum dos três suspeitos acusados pelo crime.
Alívio
O zelador chegou a ser preso preventivamente por três dias. A soltura aconteceu após a família conseguir registros que provaram que o zelador não participou do roubo. O alívio momentâneo ocorreu no dia 13 de setembro do ano passado, mas a angústia só terminou com a absolvição final pela Justiça.
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“Eu me sinto feliz não só por mim, mas pela minha família. Minha mãe e esposa podem dormir em paz agora. A gente ficava o tempo todo inseguro porque não sabíamos se eu iria ser novamente preso”, relata Ailton.