Zelador preso injustamente por reconhecimento fotográfico teme ser condenado

Ailton Rodrigues, de 34 anos, tenta entender como sua foto chegou aos policiais. Depois de três dias preso, ele foi libertado ao provar que estava em casa no momento do crime — mas ainda tem receio do julgamento

O zelador Ailton Rodrigues foi preso ao sair do trabalho num condomínio em São Caetano | Foto: Arquivo pessoal

O zelador Ailton Rodrigues, de 34 anos, até hoje não entende o que lhe aconteceu. Amedrontado, ele teme voltar à prisão em que esteve por três dias, de forma injusta. No dia 11 de setembro, quando saía do condomínio onde trabalha em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, ele foi levado por policiais. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) havia determinado sua prisão preventiva por um roubo de carga ocorrido em outubro do ano passado na vizinha São Bernardo do Campo. A única prova que embasava a decisão: um reconhecimento fotográfico. Ailton, que nunca entrara numa delegacia antes, não sabe como sua foto chegou até os policiais. “A gente é negro, não é bandido”, desabafa.

O zelador só soube que estava sendo investigado ao ser preso. O mandado diz respeito a um roubo na Avenida Lions, no bairro Rudge Ramos, em São Bernardo, por volta das 19h, do dia 3 de outubro de 2023. Na ocorrência foram roubados a carga do caminhão, avaliada em R$ 259 mil (cinco toneladas de cobre e bronze), dois celulares e a carteira de habilitação do motorista. O caminhoneiro ficou por cerca de cinco horas sob poder dos assaltantes.

Leia também: Reconhecido por foto de Instagram, jovem negro está preso há dois meses

Nesta data, Ailton conta que foi ao trabalho, treinou em uma academia e, por volta das 20h, retornou para casa. Ao entrar no prédio onde mora, teve o acesso liberado por reconhecimento facial às 20h15. O trajeto consta na localização marcada pelo celular do zelador e a entrada no prédio ficou registrada — o que reforçou a versão dada pelo zelador aos policiais. As provas reverteram sua prisão e, em 13 de setembro, a juíza Isabelle Ibrahim Brito, da 3ª Vara Criminal do Foro de São Bernardo do Campo, revogou a prisão preventiva determinada por ela dias antes.

“Ele foi levado para um presídio, cortou o cabelo, passou por todo o constrangimento”, lembra a esposa de Ailton, Rafaela Pereira Rodrigues, 28. Professora de Educação Infantil, ela diz estar desnorteada com a situação. “É muita humilhação”, completa.

Trajeto feito por Ailton no dia do roubo | Foto: Reprodução

“Até hoje não consigo entender”, diz Ailton, que ainda não se sente tranquilo. “Sinto como se estivesse sendo perseguido. Estou com medo.” O zelador se preocupa com a saúde da mãe, a tristeza da esposa e a perda da inocência do filho Matheus, de 4 anos. Para a criança, negra como o pai, a família não consegue explicar o que houve.

A ocorrência

O caminhoneiro roubado estava com o veículo carregado para fazer entregas em Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Ele é funcionário de uma empresa de transportes que presta serviço de coleta e entregas para outra empresa. Quando estava na Avenida Lions, foi desviar o caminhão de um automóvel Escort que estava parado à sua frente mesmo com o trânsito fluindo. Neste momento, foi rendido por uma pessoa armada, que anunciou o assalto.

Um passageiro do carro entrou no caminhão e ordenou, sob ameaça de arma, que o caminhoneiro seguisse o Escort. Segundo a descrição feita pelo caminheiro, essa pessoa seria o zelador Ailton.

Leia também: Reconhecimento irregular faz paisagista negro responder há 12 anos por atentado na Bahia

Ambos os veículos pararam na Rodovia Anchieta e o caminhoneiro foi obrigado por um terceiro indivíduo armado a estacionar o carro e descer pela janela. Ele teve um pano colocado em seu rosto e foi levado para o Escort. Chegou a ser trocado de veículo e seguiu sob vigilância de parte do grupo que o assaltou.

O boletim de ocorrência foi registrado no 2º D.P. de São Bernardo do Campo no dia 3 de outubro do ano passado. O inquérito, contudo, só foi instaurado no dia 11 de junho deste ano pelo delegado Marcos Vinicius Porcionato, da mesma delegacia.

Como se chegou a Ailton? 

Um relatório da investigação anexado ao processo descreve o procedimento de reconhecimento usado para incriminar Ailton e outras duas pessoas. É dito que o caminhoneiro compareceu à delegacia e foram apresentadas diversas fotos de investigados para reconhecimento. Ele teria reconhecido “sem sombra de dúvidas” Ailton e os demais. O procedimento ocorreu em 2 de maio deste ano.

O inquérito não diz, no entanto, como a foto de Ailton foi parar ali. O zelador não respondia a nenhum inquérito prévio e a foto, afirma a esposa Rafaela, é a que consta na Carteira Nacional de Habilitação (CNH) do marido. 

Ailton então foi indiciado de forma indireta — quando o suspeito não é localizado para formalização do indiciamento. 

Leia também: Jovens são presos acusados de roubo ocorrido a 10 km de onde estavam

Sem questionar nenhum dos procedimentos feitos pelo delegado, o promotor Diogo Pacini de Medeiros e Albuquerque, da 11ª Promotoria de Justiça de São Bernardo do Campo, denunciou Ailton no dia 4 de setembro. Diogo se limitou a dizer que a Polícia Civil, após diligências (que não são explicadas), identificou os suspeitos e a vítima fez o reconhecimento fotográfico.

Ao pedir a prisão preventiva, o promotor argumentou que não havia comprovação de que o zelador e os demais possuíam ocupação lícita. Até a prisão, Ailton sequer sabia que estava sendo investigado. 

‘Veementes indícios’

A juíza Isabelle Ibrahim Brito, da 3ª Vara Criminal, aceitou a denúncia no dia 8 de setembro. A magistrada tampouco questionou como foi feito o reconhecimento dos indiciados. “Quanto às fundadas razões de autoria ou participação do indiciado, existem nos autos veementes indícios de que o(s) investigado(s) tenha(m) praticado o crime em questão, já que houve, por parte da vítima, reconhecimento fotográfico. Nesse sentido, note-se que a vítima, além de descrever satisfatoriamente o roubo) reconheceu os réus por meio fotográfico. A vítima pontuou, ainda, que conseguiu reconhecê-los “sem sombra de dúvidas”.

Na mesma decisão, Isabelle também determinou a prisão preventiva de Ailton. Ela também decretou segredo de justiça no caso. O processo tramita sem uma data para julgamento. 

Reconhecimento fotográfico

A pedido da Ponte, o criminalista Marcelo Feller analisou o caso de Ailton. O advogado ressalta que o reconhecimento é a única prova que liga o zelador ao crime e questiona: “Como o Ailton foi parar em um álbum de suspeitos?”

Feller diz que o procedimento ideal, conforme a psicologia do testemunho — área que estuda os processos cognitivos de vítimas, suspeitos e testemunhas — não é apresentar fotos e pedir para a vítima reconhecer, como ocorreu com Ailton. A ação pode dar a falsa percepção para quem reconhece de que o responsável pelo crime está entre os retratos analisados. 

O procedimento correto, afirma Feller, seria o double blind. O artifício consiste no policial que conduz o reconhecimento saber quem é a pessoa a ser reconhecida. A vítima também deve ser informada de que o responsável pode ou não estar nas fotografias.

Assine a Newsletter da Ponte! É de graça

O criminalista argumenta que hoje existem meios de confirmar a localização das pessoas — como o GPS do celular e o monitoramento via Estações Rádio Base (ERB), que pode mostrar a região aproximada do local. 

O inquérito policial também não deixa claro se foram seguidos os procedimentos previstos pelo artigo 226 do Código de Processo Penal, que prevê que como primeiro passa a descrição, pela testemunha ou vítima, da pessoa a ser reconhecida. Só depois o suspeito deve ser colocado ao lado de pessoas parecidas. O inquérito não cita essa descrição prévia. 

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) solicitando entrevistas com os agentes públicos citados e também um posicionamento. 

Em nota, o TJ-SP informou que não emite notas sobre questões jurisdicionais e que os magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento. O MP-SP informou que se manifesta nos autos.

A SSP-SP enviou nota dizendo que o inquérito policial pediu a prisão preventiva, com a concordância do MP-SP. “O caso foi investigado pelo 2º Distrito Policial de São Bernardo do Campo. O inquérito policial foi concluído com a representação de prisão preventiva dos três envolvidos identificados, com concordância do Ministério Público, que reiterou a necessidade da prisão em nova manifestação lançada nos autos após pedido de liberdade provisória”, disse o texto.

A reportagem foi atualizada em 2/10/2024, às 18h38, para incluir a nota da SSP-SP.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude
Inscrever-se
Notifique me de
0 Comentários
Mais antigo
Mais recente Mais votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários

mais lidas

0
Deixe seu comentáriox