Pai de Leandro Machado, 23, faleceu sem ver desfecho do caso e família ainda não recebeu indenização pela morte do rapaz, ocorrida em 2003; guardas seguem trabalhando e um até já se aposentou
Aí, Leandro, esteja em paz onde você estiver. Eu sei que, aqui na Terra, a sua missão já foi cumprida com sucesso, morô? Sua luta não foi em vão, irmão. Eu oro e peço a Deus para que conforte o coração da sua família, opere na alma do agressor o caminho da luz. Há dois anos, o rapper Mano Duda lançou uma música em homenagem ao amigo, o líder comunitário Leandro Machado, 23 anos, morto em 13 de novembro de 2003 por guardas civis metropolitanos no bairro do Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo. Desde então, são 18 anos de espera por um julgamento que tem sido adiado por anos e que só teve data marcada para 8 de novembro após a publicação desta reportagem*.
A filha de Leandro, Shelzeer, que tinha quatro anos na época, cresceu, completou 22 anos e virou mãe. O vigilante José Carlos Machado, pai do jovem, faleceu aos 75 anos, em 2019, sem ver justiça nem a indenização da Prefeitura que havia sido determinada em segunda instância pela Justiça. Na última entrevista que deu à Ponte, em 2018, já apresentava os primeiros sinais de Alzheimer, mas era enérgico quando falava do filho. “Quem errou tem que pagar. E não é pelo dinheiro. É pela honra”, disse. Hoje, os familiares não querem mais dar entrevista, pela perda de esperança e pela tristeza de reviver a dor que carregam. “E tem a dona Cida [mãe de Leandro], que agora diz que vai morrer e não vai ver isso se resolver, assim como meu pai não viu”, foi tudo o que Oseias Machado, irmão da vítima, declarou, por mensagem de texto.
A última movimentação do processo no sistema do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo datava de janeiro de 2020, quando os autos foram remetidos ao Ministério Público Estadual. O júri já havia sido adiado em 2018 porque uma jurada passou mal e em 2019 e 2020 por conta do número de jurados não estar de acordo para dar prosseguimento (primeiro, apareceram menos de 7 pessoas, que é o número determinado, e na data seguinte havia 14, o que foi considerado gente demais). Depois disso, nenhum agendamento ocorreu.
Um dia após a Ponte ter questionado a assessoria de imprensa do TJ-SP sobre ausência de data para o julgamento, em 13 de fevereiro deste ano, foi atualizado no processo uma decisão do juiz Marcus Alexandre Manhães Bastos, da 3ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda, argumentando que, por causa da Covid-19, o tribunal está priorizando audiências e julgamentos de réus presos e que deveria aguardar “melhor oportunidade para designação de data”. Situação essa que não é a dos guardas Orlando Sérgio dos Santos, 62, e José Donizete de Freitas, 56, acusados por homicídio doloso (quando há intenção de matar), e Andrea Alves dos Santos, 47, que responde por falso testemunho e fraude processual: nenhum deles foi preso. Também houve troca de juiz do caso na mesma semana, passando para a magistrada Ana Carolina Munhoz de Almeida por “divisão interna de trabalho”, segundo o Tribunal de Justiça.
A magistrada liberou sua decisão sobre o agendamento do júri no sistema do TJ-SP às 16h desta terça-feira (22/3), um dia após esta reportagem ter sido publicada. A assessoria do tribunal confirmou a movimentação nesta data. O documento diz que a decisão foi escrita no dia 4 de março, também um dia após a Ponte ter ido presencialmente ao Fórum Criminal da Barra Funda consultar os seis volumes do processo. A assessoria não respondeu o que motivou essa agilidade nem por que houve demora da liberação nos autos, já que a decisão foi proferida no início do mês.
Com exceção de José Donizete, que se aposentou em 2021 por tempo de contribuição, conforme publicado no Diário Oficial, os outros dois guardas seguem na ativa. Não é possível saber qual o salário, já que a Prefeitura de São Paulo não divulga os nomes de guardas no Portal da Transparência. A sindicância no âmbito administrativo também está sobrestada (suspenso) desde 2007, sob justificativa de que aguarda o encerramento da ação penal. A reportagem questionou a ausência de informações de salário por nome, mas a assessoria de imprensa a Prefeitura apenas reiterou a suspensão do procedimento administrativo.
O crime
Segundo a família, no dia 3 de novembro de 2003, Leandro foi buscar a mamadeira da filha que estava na casa de um amigo no Grajaú, zona sul da capital paulista. Na mesma semana, a cidade recebeu a primeira onda de ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), com 44 ofensivas contra delegacias e bases da polícia e GCM. Leandro passou em frente a uma base da GCM, na Rua São Caetano do Sul, e acabou baleado.
Na versão dos GCMs Orlando e José, ele teria batido no portão da base, dito que “a noite está sinistra” e pulado para o lado de dentro. A GCM Andrea afirma que havia visto duas pessoas em uma moto do lado de fora que teriam atirado contra eles. Ao cair, Leandro teria colocado a mão na cintura como se fosse sacar uma arma. Armados com revólveres calibre 38, os dois atiraram “num gesto natural de defesa”.
“Nós demos um tiro para o alto e quando ele chegou ao chão, meio agachado, levou as mãos na cintura, momento em que eu e o Donizete disparamos contra ele”, disse Orlando em interrogatório, que confirmou não ser uma orientação da corporação atirar depois de algum sinal de ameaça, mas que atuaram para defender a base. Ele descreveu Leandro dizendo que “o referido elemento era de cor negra e estava com uma touca que chegava até a altura das sobrancelhas, mostrando-se suspeito, vez que ficava olhando o tempo todo para os lados”. Segundo os guardas, o homem portava uma garrucha calibre 38, arma de cano curto que costuma ser vendida como antiguidade.
A família acredita que os guardas estivessem em pânico por conta dos ataques e por isso atiraram ao verem Leandro passando diante da base. O jovem ajudava organizando eventos de rap e basquete para crianças da comunidade. Uma das festas seria feita dias depois e por isso o jovem havia passado antes, no mesmo dia, pedindo para entregar um ofício em que solicitava proteção da GCM para o evento, mas os guardas haviam pedido para ele voltar em outra hora.
O jovem era o caçula de sete irmãos e trabalhava como vendedor de cocos em Santo Amaro. Tinha dificuldade em conseguir empregos formais por conta da miopia avançada, que atrapalhava sua leitura. Mas isso não o impedia de atuar como voluntário em entidades como o Grêmio Regional Império do Grajaú ou a Sociedade de Apoio aos Moradores da Capela do Socorro e de organizar diversos eventos no bairro, misturando esportes e hip hop. As festas eram chamadas de LDK porque Leandro sonhava em melhorar a vida das pessoas que viviam “do lado de cá”, na quebrada onde moravam. Por isso, a canção de Mano Duda leva o nome de Tributo LDK.
Segundo o laudo necroscópico, Leandro foi atingido com dois disparos: um na cabeça, de trás para a frente, e no peito, de cima para baixo. Apesar disso, a reprodução simulada da Polícia Científica, feita em 2006, não deixa clara a origem dos disparos e diz que a versão dos guardas é “plausível”, mas também admite a possibilidade de a vítima ter sido atingida caída no chão.
Um dos GCMs que comandaram a investigação interna da corporação, e que contrariou a versão dos guardas Orlando Sérgio dos Santos e José Donizete de Freitas, reafirmou com base no laudo diante dos jurados e do juiz, durante o julgamento que foi interrompido em 2018, a falha de “natureza grave” cometida pela dupla.
“Não havia motivos para o indivíduo invadir a base com um armamento arcaico e os laudos divergem com a versão: um tiro foi na nuca e o outro no peito, com ângulo de cima para baixo, sendo que o relato é de que eles atiraram de frente”, disse o guarda.
Na época, o advogado Cláudio Márcio de Oliveira, que representa Orlando e Andrea, disse à Ponte que os guardas atuaram de forma “moderada” e a perícia não definiu a posição dos tiros, conforme a versão dada pelos réus: de que atiraram de frente e os projéteis entraram na nuca e o outro em posição de cima para baixo. “Quando pula um muro que é alto, a pessoa escala e depois, para descer, ela vira e está com o peito projetado do lado de fora. Se eventualmente um disparo partiu de fora, pode ter atingido o peito dessa pessoa. ‘Ah, Cláudio, mas você está me dizendo que a pessoa pode ter tomado um tiro na nuca enquanto escalava, aí virado e tomado outro?’ Estou dizendo o seguinte: a perícia não deu essa resposta”, sustentou o defensor.
A reportagem procurou Cláudio de Oliveira e marcou nova entrevista, mas ele não atendeu no horário combinado nem respondeu aos pedidos de reagendamento. Sobre José Donizete, embora conste no processo que esteja sendo defendido por defensores públicos, a assessoria de imprensa da Defensoria afirmou que a defesa teria sido passada a um advogado particular, mas não disse o nome.
Indenização
Em 2014, a 6ª Câmara de Direito Público do TJ-SP, um acórdão (decisão de órgão colegiado de um tribunal, ou seja, tomada por mais de um magistrado) dos desembargadores Reinaldo Miluzzi, Maria Olívia Alves e Evaristo dos Santos reconheceu os danos morais e materiais provocados pelos guardas que mataram Leandro. A família havia entrado com a ação judicial em 2009.
A Prefeitura foi condenada a pagar R$ 50 mil por danos morais tanto aos pais de Leandro, Maria Aparecida Bernardes Machado e José Carlos Machado, como para a mãe de sua filha, Mabatha Carlos Lucio, e à própria filha do casal, Shelzeer, que estava com 15 anos quando a decisão foi proferida. A jovem também ganhou o direito de receber o equivalente a um salário mínimo por mês durante 22 anos, contando a partir da morte do pai, quando ela tinha dois anos, até quando completar 25, “data presumível em que completará estudos universitários e poderá manter-se com seu trabalho”.
A Procuradoria Geral do Município chegou a alegar que Shelzeer não sofreu dano com a morte do pai, “pois sequer tem conhecimento do evento ou conviveu de forma suficiente com o pai”.
Quando da decisão, Oseias, irmão de Leandro, declarou que foi o melhor presente de Natal. “A Justiça começou a limpar o nome do meu irmão”, afirmou. Mas, até o momento, os parentes não viram um centavo porque houve a perda de um recurso que os advogados da família fizeram pedindo a revisão dos juros e correção monetária dos valores, que passou a depender de posicionamentos do STF (Supremo Tribunal Federal) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça) a respeito desses temas.
De acordo com Jaime Machado, advogado da família na esfera cível, o caso está no STJ aguardando uma decisão. “O STJ tem um andamento difícil, a gente mede aí uns cinco anos [para uma decisão], mas com recebimento dos valores retroativos”, informou.
O que diz o Tribunal de Justiça
Perguntado sobre data de julgamento e risco de prescrição do caso, a assessoria encaminhou a seguinte nota:
Neste processo houve várias sessões plenárias redesignadas, por diversos motivos. No momento, os autos aguardam a designação de data para julgamento. Devido à pandemia, há prioridade para a realização dos júris de réus presos. Não há risco de prescrição nesse caso.
O que diz o Ministério Público
A reportagem procurou a assessoria sobre o andamento do caso que respondeu sobre a nova data marcada para 8 de novembro e que o caso voltou para o promotor Thomas Moyico Yabiku. “Por conta da pandemia os júris de réus presos foram priorizados e a partir de 2022 serão realizados os julgamentos de réus soltos”, disse em nota.
*A reportagem foi atualizada às 18h19, de 22/3/2022, após informação do TJ-SP sobre o agendamento do júri.