No décimo episódio do Da Ponte pra Cá, Luciana Nogueira falou das expectativas para o julgamento dos militares envolvidos na ação que matou seu marido, Evaldo Rosa, no RJ, em 2019; advogada considera que o caso é inédito na Justiça Militar
A tarde do dia 7 de abril de 2019 tinha tudo para ser mais um domingo tranquilo para a família de Luciana Nogueira. Ela, o filho Davi, o marido Evaldo Rosa dos Santos e o padrasto decidiram ir a um chá de bebê de uma amiga de Luciana que estava indo embora do Rio de Janeiro. Mas, no caminho, uma ação do Exército interrompeu subitamente os planos da família. O veículo foi fuzilado com mais de 80 tiros, dos 257 disparados por militares em Guadalupe, na zona norte da capital fluminense. O músico Evaldo Rosa, que dirigia o carro, morreu com nove tiros de fuzil. Dias depois, o catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentou socorrer a família e foi atingido com os disparos, não resistiu.
Hoje, dois anos e três meses depois, a técnica em enfermagem Luciana Nogueira lida com o luto da perda do marido, junto com o filho Davi de 10 anos, a espera de justiça pelo seu companheiro, com quem passou 27 anos ao lado. Para entender como tem sido esse processo, o Da Ponte pra Cá da última quarta-feira (30/6) recebeu a viúva de Evaldo e a advogada criminalista Alice Mac Dowell Veras, assistente de acusação no caso.
No início da conversa transmitida no canal de Youtube da Ponte, o editor Amauri Gonzo informou que o julgamento na Justiça Militar, marcado para abril deste ano, foi adiado pela segunda vez, após pedido da defesa dos 12 militares envolvidos na ação. Está previsto para acontecer em 15 de setembro.
Família atravessada por um massacre
Os momentos inesquecíveis ao lado do marido estão marcados na memória de Luciana. Ela conta que conheceu Duda, como ela chama o Evaldo, ainda na adolescência e logo os dois se apaixonaram um pelo outro. “O Duda foi uma pessoa muito importante na minha vida. Além de ter sido meu esposo, ele foi meu amigo. Tem sido muito difícil ter que seguir, ser pai e mãe, ter que seguir sem ele. Nós tínhamos tantos planos juntos e infelizmente foram interrompidos”, lamenta.
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Luciana fala que Evaldo era uma pessoa tranquila e feliz. “Aos poucos fomos construindo as nossas coisas, com muito sacrifício, com muito trabalho”, recorda. A relação de Evaldo com a música começou desde cedo. Ela conta que o marido tocava cavaquinho e foi um dos fundadores e integrantes do grupo Remelexo da Cor. Durante anos trabalhou como florista de dia e fazia shows à noite.
Assim, o casal construiu uma vida juntos por quase três décadas, cessada em abril de 2019. A técnica em enfermagem descreveu os últimos momentos ao lado de Evaldo no dia do massacre. “Por volta do meio-dia, saímos de casa para poder ir ao chá de bebê. Fomos tranquilos, fomos felizes e conversando. Revolvemos ir por esse caminho que nós fomos e foi quando tudo aconteceu. A gente estava numa rua tranquila, numa rua calma e foi uma sessão de muitos tiros. Eu tinha visto que eram os rapazes do exército, mas, naquele exato momento, eu nunca imaginaria que os tiros tivessem partido deles”, relata.
Luciana se emocionou ao contar do desespero que sentiu quando Evaldo foi atingido pelo primeiro tiro. “Eu saí do carro para poder tirar meu filho daquele momento, da cena que ele tinha visto”, prossegue. Na hora, muitas pessoas que moravam no bairro se revoltaram e ajudaram no socorro, ao contrário dos militares, que segundo Luciana não ajudaram a socorrer Evaldo e continuaram com a arma em punho.
“Aquele foi o pior momento da minha vida. Não desejo para ninguém aquela dor, aquela cena que eu vi, e a perda de quem eu perdi. Nem um momento eles tiveram dó e piedade pela minha família. Eles não tinham o porquê de fazer aquilo com a gente, de destruir minha família da forma como eles destruíram”, desabafa.
Nos últimos dois anos, Luciana e o filho Davi lidam com o luto e a repercussão nacional do caso. Na época, muitos veículos cobriram a ação e protestos aconteceram exigindo repostas da Justiça e do Exército. O jovem acompanha os desdobramentos do caso. Ela relata que têm dias em que o filho fica triste, tem crises de choro e fala da falta da presença do pai: “Ele era muito presente na vida do Davi e eles eram muito amigos”. Atuando na linha de frente da covid-19, a técnica em enfermagem disse na conversa que sentiu os impactos da pandemia ao sentir medo e angústia de deixar o filho.
A espera por justiça
Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores negaram que o exército havia assassinado Evaldo Rosa. “É muito complicado você estar nesse meio, ver as coisas do jeito que aconteceu, e não ver uma palavra de solidariedade. Você se sente completamente desprotegida”, comenta Luciana. A espera do julgamento, ela acredita que o processo tem caminhado a passos lentos por estar na Justiça Militar.
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A advogada criminalista Alice Mac Dowell explica que a ação de Evaldo e do catador de recicláveis, Luciano Macedo foi para esta competência “sobre o argumento de que o homicídio teria ocorrido dentro de uma área de administração militar, pois foi próximo aos PNR (Próprio Nacional Residencial) [acomodações para militares]”. Alice questiona que essa questão não leva em consideração as comunidades e favelas, pois estas regiões não estariam protegidas das violações do Exército.
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A defesa dos militares apresenta argumentos que tentam criminalizar Luciano Macedo, sem provas, dizendo que ele estava armado, conta a advogada. Na versão das testemunhas do massacre, o catador andava na rua ao lado da mulher grávida. “A gente, de alguma forma, tem confiança na Justiça Militar. Não interessa a ninguém essa absolvição, não interessa ao Exército, à família. Estamos confiantes”, reitera, apesar de considerar que os adiamentos do julgamento podem favorecer a defesa.
Ela explica que o trabalho dela como assistente no caso é atuar como advogada da vítima, uma função diferente do MP que além de fazer o papel de acusação também supervisiona a legalidade do caso. “No final, o Ministério Público pediu a absolvição de quatro deles por todos os crimes, a condenação de oito pelo crime de homicídio qualificado e pediu a absolvição de todos pelo crime de omissão de socorro, pois ficou evidenciado no processo que eles acionaram [serviços de assistência médica]”, conta a advogada das acusações. A ação por indenização do Estado está sob reponsabilidade de outro advogado de Luciana.
“A justiça, nesse caso, é importantíssima não só para a família, mas também para toda a sociedade e o próprio exército que tem a chance de passar a mensagem de que não compactua com esse tipo de operação, de assassinato, ainda mais em tempos como esse, que essa credibilidade está sendo colocada em xeque”, destaca Alice. Para ela, o caso é inédito na Justiça Militar pela forma como o assassinato aconteceu.
Luciana considera que houve racismo quando os militares não prestaram nenhum tipo de apoio e arrependimento após o fuzilamento do veículo e a morte de Evaldo. Ela diz que tem fé em um resultado favorável na justiça, pensando no filho, mesmo que isso não traga o marido de volta. “Vou estar ansiosa até setembro. Toda a força que eu tenho para continuar seguindo se chama Davi Bruno. Eu preciso estar de pé por ele, preciso ter força por ele”, finaliza.