’80 tiros em nós’: ato em SP cobra justiça por Evaldo Rosa dos Santos

    ‘Quais vidas importam num lugar onde a morte negra é algo comum?’, indaga manifestante sobre os 80 tiros disparados contra família no Rio

    Intervenção artística feita pelo militante Alex Miranda | Foto: Rosa Caldeira/Ponte

    Mais de 300 pessoas se concentraram em frente ao vão livre do Masp, neste domingo (14/4), com o mesmo objetivo: repudiar a ação do Exército que executou o músico Evaldo Rosa dos Santos, 51 anos, há exatos 7 dias em Guadalupe (RJ), em ato intitulado “80 tiros em nós”. Foram 80 tiros alvejados contra o carro de Evaldo e sua família, que estava a caminho de um chá de bebê no domingo passado. Os 10 militares envolvidos na ação foram presos, apenas um foi liberado depois da audiência de custódia.

    O governo federal demorou para se pronunciar sobre o fuzilamento do músico. Sérgio Moro, ministro da Justiça, classificou o episódio como um “incidente lamentável”. Para o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), a operação que tirou a vida de Evaldo foi um “erro grosseiro”. O último a se posicionar foi o presidente Jair Bolsonaro (PSL) que, depois de seis dias de silêncio, alegou que “o Exército não matou ninguém” e que a instituição não poderia ser acusada de ser “assassina”.

    “Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo. Por menos que contem a história, não te esqueço meu povo”. O poema ‘Insônias’, de José Carlos Limeira, foi recitado em coro pelas mais de 300 vozes durante a caminhada. O ato que começou às 14 h, caminhou até a sede da Presidência da República em São Paulo, na altura do metrô Consolação, às 16 h e foi encerrado por volta das 17 h. Em sua maioria de pessoas negras, os manifestantes trajavam preto, como pedia a organização do evento – que foi organizado por diversos coletivos dos movimentos negros.

    ’80 tiros em nós’ cobra justiça por Evaldo Rosa dos Santos | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    O ato acontece no dia em que se completa 13 meses do assassinato da vereadora Marielle Franco, morta com 4 tiros no bairro de Estácio, zona norte do Rio de Janeiro. Um crime para o qual o Estado ainda não conseguiu dar uma solução definitiva. A Polícia Civil e o Ministério Público prenderam dois suspeitos de matarem Marielle, o PM da reserva Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Vieira de Queiroz, conhecidos por atuarem como assassinos de aluguel, mas não foram capazes até agora de apontar os possíveis mandantes do crime. Franco foi lembrada durante todo o trajeto aos gritos de “Marielle vive e viverá, mulheres pretas não param de lutar”, sempre seguido de “povo preto unido, é povo preto forte”.

    Manifestante segura cartaz com a frase: ‘O tom da minha pele não é desculpa para me matar’ | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Na linha de frente, com a bandeira principal, estava Douglas Belchior, professor e integrante da Uneafro. Em entrevista à Ponte, Douglas enfatiza que é preciso cobrar responsabilidade do Estado em mortes como a de Evaldo. “O governo é responsável pelas mortes das suas policias e do Exército. Isso é a síntese e tem que ser repetido. As pessoas não morrem aleatoriamente, no Brasil inclusive há uma predileção específica para a população negra que morre nas ações cotidianas da polícia, quando o Exército ultrapassa a barreira do que é aceitável agindo nas ruas, o que já é por natureza inconstitucional é para cumprir outra tarefa. A vítima desse Exército é a mesma que a da polícia”, argumenta Belchior.

    ‘O governo é responsável pelas mortes das suas policias e do Exército’, defende Douglas Belchior | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    O professor destaca que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) acentua a situação. “A partir do governo Bolsonaro isso se aprofunda ainda mais por que você tem o reforço da narrativa violenta e racista explícita de um presidente que diz que a polícia tem que matar e quando ocorre um absurdo como esse não se pronuncia e quando se pronuncia diminui a importância da ação”, argumenta Douglas.

    Para a educadora popular Maria Aguiar, 49 anos, o fuzilamento com mais de 80 tiros representa cansaço de ir às ruas pedir justiça por outro corpo negro tombado. “Nós não aguentamos mais ir para a rua para falar da morte dos nossos iguais. Mas, ao mesmo tempo, é importante a gente estar aqui para dizer que estamos vivos e estamos presentes, que a gente rechaça tudo o que está acontecendo no país. Isso aconteceu com o Evaldo, isso aconteceu com Marielle, isso aconteceu com Mestre Moa e por aí vai. Estamos aqui para dizer que vidas negras importam, vamos continuar gritando e defendendo nosso direito. Eu, enquanto mulher negra, tenho esse papel e essa missão com outros e outras”, destaca Maria.

    ‘Nós não aguentamos mais ir para a rua para falar da morte dos nossos iguais’, diz Maria Aguiar | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Para o cientista social Wellington Aparecido Santos Lopes, 22 anos, o fuzilamento do músico carioca mostra que o corpo negro está em território inimigo. “O que aconteceu no Rio de Janeiro, com a morte desse músico, assassinado pelo Exército, demonstra mais do que nunca a importância que as vidas negras têm nesse território. A mobilização do movimento negro no sétimo dia de morte do músico é trazer à tona um questionamento importante: quais vidas importam num lugar onde a morte negra é algo comum?”, enfatiza Wellington.

    ‘quais vidas importam num lugar onde a morte negra é algo comum?’, indaga Wellington Lopes | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Milton Barbosa, 70 anos, coordenador nacional de honra do Movimento Negro Unificado (MNU), mortes como essa são parte de um projeto genocida que perpetua no Brasil desde a abolição da escravatura. “A extrema-direita está muito forte em todo o mundo, eles tomaram a presidência através da manipulação, colocando um presidente obtuso [Jair Bolsonaro] que por trás tem um militar como o Hamilton Mourão [vice-presidente da república]. Colocam ele lá para falar as bobagens e passar um pano nas ações criminosas desse governo. Os tiros representam o genocídio da população negra, especificamente voltado para a juventude negra. É um projeto genocida que não é de hoje, vem desde os tempos da abolição da escravatura. Eles matam negros das mais variadas formas. Mas nós nos defendemos, apesar de toda ação deles nós a maioria da população”, aponta Milton.

    ‘Os tiros representam o genocídio da população negra’, aponta Milton Barbosa, do MNU | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

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