“Ele me ligava todo dia pedindo comida”, lamenta Elaine Costa Silva, mãe de Yan Barros da Silva. Ele e o tio foram encontrados mortos após serem pegos por funcionários do Atakadão Atakarejo em Salvador; empresa afastou seguranças e polícia diz ter indicação de autores dos assassinatos
As vidas de Bruno Barros da Silva, 29, e Yan Barros da Silva, 19, tio e sobrinho, respectivamente, custaram R$ 700, valor dos quatro pacotes com cinco quilos de carne seca. Eles foram mortos em 26 de abril, suspeitos de furtar o produto em uma loja do Atakadão Atakarejo em Salvador, capital da Bahia.
Esse foi o valor que Bruno tentou arrecadar junto a uma amiga, por meio de uma das últimas mensagens enviadas por ele pelo WhatsApp, para poder escapar do suposto flagrante e, em consequência, da morte.
Mãe de Yan, a vendedora ambulante Elaine Costa Silva, 37, disse à Ponte que, após a movimentação da amiga de Bruno, conseguiram arrecadar R$ 550. Faltavam R$ 150 para fechar a conta, mas os funcionários não deram tempo da família conseguir o restante.
“Eles (os funcionários) são todos bandidos. Desde quando o furto não foi concluído, já que eles (Bruno e Yan) não chegaram a sair do mercado, eles deviam ter esperado a gente conseguir o dinheiro para pagar a conta”, lamentou a mãe do mais novo.
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Elaine não entende a suposta participação de Yan no alegado furto, o que ela classifica como um gesto errado, mas defende que a segurança do estabelecimento deveria ter acionado a polícia, o que não foi feito, segundo informações da Secretaria da Segurança Pública da Bahia.
Yan era o segundo dos quatro filhos de Elaine, cursava o 9º ano do ensino fundamental, sonhava ser YouTuber para comprar uma casa para a mãe e não tinha antecedentes criminais. Chegou a trabalhar como catador de recicláveis e vendedor de amendoim para ajudar a mãe.
A família vive em um barraco de madeira com dois cômodos para quatro pessoas, em uma ocupação no bairro Fazenda Coutos, subúrbio ferroviário de Salvador, região que concentra uma dezena de bairros com população majoritariamente de baixa renda.
Elaine segura o tranco da casa sozinha, com uma renda média mensal que oscila de R$ 700 a R$ 800, metade do valor vem do Bolsa Família. A outra metade do orçamento é proveniente da comercialização de produtos de limpeza, que ela mesma fabrica, pelas ruas do bairro.
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“Agora, o valor (da bolsa) vai diminuir porque perdemos Yan, que estava entre meus dependentes”, calcula Elaine, que também vai perder a cesta básica que recebe pelo fato do segundo filho estar matriculado na rede pública de ensino.
A mãe de Yan não sabe dizer o que os dois faziam naquele supermercado, do outro lado da cidade, a cerca de 24 quilômetros de casa, o que levaria mais de uma hora e meia de ônibus até o destino final, a depender do horário do trânsito.
O que ela sabe mesmo é que ambos saíram de barriga vazia da casa em que os dois dividiam, pois, naquele dia, nem ela nem a mãe de Bruno, avó paterna de Yan, havia enviado comida. “Yan me ligava todo dia pra pedir comida, aí a gente mandava o que tivesse e eles dividiam”, lembra.
O imóvel que compartilhavam pertencia a Dionésia Barros Silva, mãe de Bruno, avó paterna de Yan, que cedeu a casa para o filho ter onde morar. A fome que atinge quase 20 milhões de brasileiros – outros 125,6 milhões em situação de insegurança alimentar – sempre rondava o local.
Com dois antecedentes criminais, também por furto de comida, Bruno não conseguia emprego, situação que aflige, pelo menos, 14 milhões de pessoas no país. Tampouco foi bem-sucedido nas tentativas de obter o auxílio emergencial do Governo Federal, em nenhuma das duas fases.
Elaine, assim como o restante da família, agora aguarda pela elucidação do duplo homicídio, o que já estaria próximo, segundo a polícia. “Estamos pedindo a Deus que os responsáveis paguem pelo que fizeram, que não se faz nem com bicho”, clama.
Caso anterior
Os funcionários do Atakadão Atakarejo podem ser reincidentes na prática de recorrer a criminosos para punir quem subtrai produtos no estabelecimento. Depois que vieram à tona os assassinatos de Bruno e Yan, uma adolescente resolveu denunciar à imprensa baiana ter vivido a mesma situação que os rapazes.
À época, o caso ocorrido com a jovem em 4 de outubro de 2020 foi noticiado pela mídia local, mas não chamou tanta atenção. Após os homicídios dos dois jovens negros, a adolescente revelou ter sido torturada no supermercado, depois de também ter furtado produtos no estabelecimento.
A jovem relatou que já havia cometido o delito uma primeira vez no supermercado, mas escapou impune. Resolveu, então, voltar no dia seguinte, acompanhada de duas amigas, quando foi flagrada pelos funcionários, que protagonizaram uma primeira sessão de espancamento ainda no local.
Em seguida, os funcionários recorreram ao modus operandi de acionar supostos traficantes da região conhecida como Nordeste de Amaralina, próxima ao supermercado, para dar uma lição nas jovens. Duas delas conseguiram escapar, mas a terceira foi alcançada pelos criminosos.
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Assim como ocorreu com Bruno e Yan, a jovem foi levada para uma localidade conhecida como Boqueirão, onde foi submetida a mais outra sessão de tortura, teve o braço cortado com uma faca, o corpo perfurado com um ferro, foi fotografada e exposta nas redes sociais para servir de exemplo.
Mesmo gravemente ferida, conseguiu fugir após aproveitar um vacilo do bando, que tinha aproximadamente dez pessoas, número semelhante ao relatado por uma testemunha que viu Bruno e Yan serem levados da área externa do Atakarejo do bairro Amaralina.
Moradora do Nordeste de Amaralina, região que abriga bairros pobres em meio uma área valorizada da capital baiana, a garota foi socorrida para o Hospital Geral do Estado, onde ficou internada e, depois de receber alta médica, diz ter passado a conviver com o medo de circular pelo bairro.
A jovem alegou que não registrou ocorrência da tentativa de homicídio por medo de sofrer represálias. Procurada, a Polícia Civil da Bahia informou que, até o presente momento, o caso da garota continua sem registro nas unidades da instituição.
Comando Vermelho
Fontes policiais informaram à Ponte que os membros do tribunal do crime que teriam executado os dois seriam ligados ao Comando Vermelho (CV), facção fluminense criada na década de 1970, que teria aportado na Bahia no segundo semestre de 2020, o que é negado oficialmente.
Em Salvador, encontrou guarida na região do Nordeste de Amaralina, que abriga os bairros Santa Cruz, Vale das Padrinhas e Chapada do Rio Vermelho, antes controlada somente pela agora associada Comissão (às vezes, Comando) da Paz, conhecida pelas iniciais CP.
De fornecedor de armas e drogas, o Comando passou dominar a região, ao lado da CP, na disputa territorial contra os antigos desafetos locais Bonde do Maluco (BDM) e Ordem e Progresso (OP), além de atrair novos membros com “vantagens” como assistência jurídica e preços competitivos.
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Ao circular pela região, tem se tornado comum avistar pichações com as iniciais CV e CP pelos bairros, em aberto desafio às autoridades do Estado, apesar de haver uma Base Comunitária de Segurança da Polícia Militar no local.
Dez dias antes dos assassinatos, o jornal Correio publicou reportagem sobre a perseguição de homens armados, em plena luz do dia, ao carro do Google Street View, na rua Emídio Pinto, com imagens registradas em 2019 que se tornaram públicas no mês passado.
Investigações
A Polícia Civil informou nesta quarta-feira (5/5) já ter indicativos da autoria dos assassinatos de Bruno e Yan, assim como a motivação que teria levado ao duplo homicídio. As investigações já estariam avançadas, com análises de novas imagens de câmeras e laudos periciais, diz nota.
Mais de dez pessoas já foram ouvidas no inquérito policial, segundo informou a diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), delegada-geral Heloísa Campos de Brito. “Todos serão responsabilizados, sejam quem forem, no rigor da lei”.
No mesmo comunicado, o titular da Secretaria da Segurança Pública da Bahia, Ricardo Mandarino, afirmou que a atitude tomada tanto pelos funcionários do supermercado quanto pelos traficantes são reflexo de uma concepção errônea sobre justiça que tomou conta de parte da sociedade.
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“Trata-se de um delito resultado desse conceito vil, tosco, desumano, deturpado de que ‘bandido bom é bandido morto’”, disse. “É uma gente perversa, desprovida de qualquer sentimento de empatia e que demonstra claramente que o trabalho da Polícia não satisfaz”, completa.
O secretário aponta que “se alguém se valeu de milicianos, de integrantes do crime organizado para obter o resultado infame que obteve, é co-autor do delito”. “A polícia prende em flagrante, ou com ordem judicial, e entrega o infrator à justiça. É assim em todas as sociedades civilizadas”, afirma.
Na avaliação do secretário, os fatores racial e social pesaram em desvantagem contra os dois familiares mortos. “Há, nessa ação abjeta, um componente forte de racismo estrutural e ódio aos pobres. Na cabeça dessa gente torpe todo pobre e preto é bandido”, cravou o secretário.
Dois pesos, duas medidas
Um indicativo de que a carne mais barata do mercado é a carne negra, como canta Elza Soares, é o tratamento dispensado quando uma pessoa de pele clara – afinal não haveria brancos no Brasil, segundo o conceito supremacista de pureza da raça – é flagrada no mesmo delito que os dois rapazes mortos.
Na mesma Salvador com maior população negra fora do continente africano, poucos dias depois dos assassinatos de Bruno e Yan, foi divulgado um vídeo no qual uma mulher furta uma barra de queijo numa delicatessen no bairro de Piatã, a 13 quilômetros de onde os dois foram levados.
Em comum, os produtos furtados passaram a ser os objetos de consumo da população, tamanha a inflação dos derivados de leite e da carne bovina. Com a diferença de que, no primeiro caso, dois jovens negros, de origem pobre, sem renda, acabaram mortos no porta-malas de um carro.
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No segundo caso, a mulher chega à loja a bordo de um Jeep Compass, veículo que custa a partir de R$ 100 mil. Em seguida, ela entra no estabelecimento, vai à seção de frios, pega uma barra de queijo, circula pela loja até sair da vista dos funcionários e coloca o produto na bolsa.
Numa entrevista à imprensa local, o dono da loja argumentou que, apesar dos funcionários terem percebido a movimentação suspeita, a mulher não foi abordada “para não gerar constrangimento”, já que ele ainda não havia assistido às imagens do circuito interno de câmeras.
Ainda segundo o empresário, seria comum pessoas que chegam de carro furtarem produtos no estabelecimento, “não por necessidade, mas por outras questões”. Questões estas, não esclarecidas, que não costumam ser aplicadas quando a cor da pele é preta.
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Diferentes na forma, mas não no desfecho de Bruno e Yan, nos últimos anos, vários foram os casos de violência com resultado em morte contra suspeitos negros em mercados por todo o Brasil. Antes de tio e sobrinho, o de maior repercussão nacional ocorreu em Porto Alegre, às vésperas do Dia da Consciência Negra.
Na ocasião, João Alberto Freitas, o Beto, um homem negro de 40 anos, foi asfixiado até a morte, em 19 de novembro de 2020, por dois seguranças do Carrefour, ambos brancos, após um suposto desentendimento com uma funcionária que atuava como caixa do estabelecimento.
Atakarejo afasta seguranças
A rede de supermercados Atakadão Atakarejo pertence ao empresário Teobaldo Costa, que foi candidato a prefeito de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, no último pleito municipal, pelo partido Democratas, quando declarou patrimônio de R$ 341 milhões.
Por meio de nota, o Atakadão Atakarejo informou que foi aberta uma sindicância interna, na qual ficou decidido o afastamento dos seguranças da loja, “até que os fatos sejam devidamente esclarecidos pelas autoridades competentes”.
No comunicado, a empresa ressalta, ainda, que repudia o fato ocorrido e manifesta total solidariedade às famílias das vítimas de violência no Nordeste de Amaralina, em Salvador, e diz reafirmar que os códigos de ética e conduta não toleram violência.
Em relação aos fatos ocorridos em 26 de abril, o texto informa que “o grupo está colaborando integralmente com a investigação policial e já entregou todos os documentos e imagens do sistema de segurança aos órgãos competentes”.
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O comunicado reforça, ainda, que “o Atakadão Atakarejo reitera o seu comprometimento com a observância dos direitos humanos e com a defesa da vida humana digna, não compactuando com qualquer tipo de violência”.
Sobre o recente caso denunciado pela adolescente, o grupo Atakadão Atakarejo informa que aguardará ser notificado pelas autoridades competentes, para tomar conhecimento sobre o assunto.
Desde que o caso foi revelado, unidades do Atakarejo têm sido alvos de manifestações por parte de entidades ligadas aos direitos humanos, como o Movimento Negro Unificado e o Coletivo de Entidades Negras.
O caso também é acompanhado pelo Ministério Público da Bahia, pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia, que esta semana ouviu as mães das vítimas, e também pela seccional local da Ordem dos Advogados do Brasil.
O advogado das duas famílias, Andrey Sudsilowsky, disse ainda não ter tido acesso ao inquérito, que corre sob segredo de Justiça. No entanto, afirmou que, comprovada a participação dos funcionários nos crimes, buscará a reparação para as mães das vítimas.