Entidade quer impedir a exclusão de obras do acervo que fazem parte da história da Fundação e da população negra e estão sendo censuradas pelo tuiteiro e presidente do órgão, Sérgio Camargo. Censura “é uma afronta à Constituição”, diz advogada
Nesta quarta-feira (16/6) a Coalizão Negra por Direitos ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça Federal de São Paulo contra o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo. A entidade, que reúne mais de 200 organizações do movimento negro, quer impedir a exclusão de obras do Acervo da Biblioteca da Fundação.
O expurgo de Camargo deve excluir mais de de 9.000 títulos do acervo literário da Fundação Cultural Palmares, 95% do total de livros segundo a ação. Na última sexta-feira (11/6), a Fundação Palmares divulgou o relatório “Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista”. Em sua conta no Twitter Camargo afirmou que “todas as obras que corrompem a missão cultural da Palmares” seriam excluídas. “Um livramento!”, escreveu.
A ação defende a preservação do patrimônio cultural, social e histórico da população negra e da história de luta do movimento negro brasileiro, alegando que a censura promovida pelo presidente da fundação é inconstitucional, como explica uma das advogadas que protocolou a ação, Sheila Santana de Carvalho. “Um dos artigos da Constituição é a proteção do nosso patrimônio histórico e cultural brasileiro. Esses livros, esses acervos, tudo que está ali dentro daquele acervo faz parte da nossa história, faz parte da nossa cultura e a Constituição protege eles. Um dos objetivos legais da criação da Fundação é proteger esse legado, garantir a existência desse legado. Então, não é possível a gente aceitar que um gestor público em uma discricionariedade ideológica coloque em risco esse patrimônio histórico. É uma afronta à Constituição e à legislação que regula o funcionamento da Fundação Cultural Palmares”.
A advogada explica que é preciso que a decisão em caráter de urgência ocorra logo, para que Sérgio Camargo seja proibido de jogar essas obras no lixo. “Para que vede qualquer possibilidade de descarte desse acervo. Aí a partir disso, segue a ação normal, que vai fazer uma análise, do que é esse acervo, do que são essas obras, quais são as condições e como essa decisão e porque essa decisão foi tomada”, diz Sheila.
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Os critérios que fundamentam a intenção de Sérgio Camargo em excluir os títulos do acervo da biblioteca da Fundação Palmares não possuem quaisquer fundamentos técnicos, diz o texto da ação: “o relatório que dá base a tal proposta em nenhum momento faz referência a parâmetros específicos de biblioteconomia”.
A ação assinada pela Coalizão menciona que o presidente da Fundação, ao apontar “curso de militância” e “clássicos de delinquência” ao se referir a obras de referência como Ho Chi Min, Carlos Marighella, Karl Marx e James Baldwin, por exemplo, é ignorar a literatura é construída por referências diversas. “E, sobretudo nega que a luta emancipatória do povo negro no Brasil se constrói a partir de teorias e experiências pautadas em disputas no campo teórico e prático que defendem a igualdade entre as pessoas independente de sua classe, credo ou discriminações de qualquer natureza.”
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No documento, a Coalizão declara o presidente da Fundação, “promove ações deliberadas que podem ensejar a perda irreversível e imensurável do patrimônio cultural e histórico da população negra” e “que a honra e a dignidade da população afro-brasileira e também de patrimônio público e social serão violados caso obras sejam retiradas do acervo”.
Segundo a Coalizão, Sérgio Camargo já desqualificou a luta do movimento negro reiteradas vezes e deminui os reflexos do racismo na vida do povo negro no Brasil, “reforçando o discurso do Governo Federal de que as denúncias e lutas contra o racismo representam ‘vitimismo’. A tentativa de eliminar obras e arquivos de importantes corresponde à forte tendência que o atual presidente da instituição tem de deslegimitar a importância da resistência da luta popular do movimento negro no país”.
Douglas Belchior, membro do movimento de educação popular Uneafro Brasil, lembra que a Fundação Palmares é uma conquista da sociedade brasileira, em especial do movimento negro organizado, que demandou do Estado brasileiro que se constituísse em nível federal uma instituição que fosse voltada para a promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira. “É um espaço de defesa dos direitos da população negra e da sua criação, da sua contribuição para a formação da sociedade brasileira do país.”
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Para Belchior, Camargo vem cometendo o crime de prevaricação no cargo de presidente da Fundação Palmares. “Ele deixa de cumprir suas funções, promove uma ação deliberada que pode nos levar a perder de maneira irreversível, imensurável, um patrimônio cultural histórico da população negra, que tem lei que protege”, diz. “Nós temos que exigir que o Estado e o Judiciário não permitam que o Sérgio Camargo dê sequência a o que vem fazendo, porque ele tem colocado em prática políticas que são contraditórias com uma missão, com os princípios e com o motivo de existir da própria fundação.”
Como resposta à ACP, Camargo chamou os integrantes de movimentos negros de “afromimizentos” em sua conta no Twitter. “Exceto afromimizentos, nenhum negro honrado e trabalhador do Brasil é representado por esse tal de Coalizão Negra. As obras CORROMPEM uma missão da Palmares, da mesma forma que o movimento negro corrompe os valores e a cultura do negro – é inútil, deletério, degradante e VITIMISTA!”
Em seu site, a Fundação Palmares afirma ser “voltada para promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” e ainda que “que contribua para a valorização da história e das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios nacionais”. É papel da Fundação apoiar “a difusão da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da História da África e Afro-Brasileira nas escolas”.
A ação destaca por fim que “apenas quem conhece o passado é capaz de construir o futuro, ou seja, é preciso que a sociedade garanta o direito à memória coletiva a fim de assegurar e preservar o direito de continuidade de sua história”.
Outro lado
A Ponte questionou a Fundação Palmares, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal sobre as acusações contra Sérgio Camargo, mas não obteve respostas até o momento.