PM acusado de estupro é absolvido: ‘Não adianta mexer na lei se judiciário duvida da palavra da mulher’, diz professora

Justiça Militar entendeu que jovem de 19 anos não sofreu ameaça e que consentiu ato sexual por não ter resistido quando estava em viatura com policiais armados, no litoral de SP; “depoimento da vítima que diz ter sido forçada tem que ser levado em consideração”, critica Maíra Zapater, da Unifesp

De acordo com vítima, estupro aconteceu dentro da viatura no trajeto até o terminal rodoviário | Foto: Divulgação

A Justiça Militar de São Paulo absolveu os soldados Danilo de Freitas Silva e Anderson Silva da Conceição da acusação de estupro de uma jovem de 19 anos que relatou ter sido obrigada a fazer sexo dentro da viatura quando pediu uma carona em Praia Grande, litoral paulista, em 2019.

De acordo com o portal G1, o juiz Ronald Roth entendeu que a vítima consentiu ter realizado sexo oral em Danilo porque “ela não ofereceu nenhum resistência física, também nada falou, nem pediu ajuda ou socorro ao motorista [Anderson] da viatura policial”. O magistrado também argumentou que não houve ameaça nem violência e que, pelo fato de ela ter dito que se sentiu intimidada pelo policial estar armado, “ela poderia dizer não à intenção do corréu Danilo, ela poderia resistir”, escreveu.

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Laudos da perícia indicaram presença de sêmen na roupa do PM e o celular da vítima foi encontrado dentro do viatura. Danilo, que estava no banco de trás do veículo com a vítima, foi condenado por libidinagem ou pederastia em ambiente militar, crime previsto no artigo 253 do Código Penal Militar, cuja pena é de detenção de seis meses a um ano. Porém, ainda segundo o G1, o soldado não será preso porque Roth suspendeu o cumprimento da pena, que é em regime aberto. Já Anderson, que estava na direção do veículo, foi absolvido porque o juiz entendeu que a relação sexual foi consentida. O processo está em segredo de justiça, sendo que a decisão foi proferida no dia 8 de junho e foi lida aos acusados na semana passada. Cabe recurso à sentença.

Para a professora de Direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Maíra Zapater, com base no trecho da sentença divulgado pelo G1, o magistrado não reconheceu que houve um caso de violência contra a mulher e sim um crime contra a instituição militar pelo ato sexual ter acontecido dentro de uma viatura em movimento com a sirene ligada. “O crime de estupro, seja no Código Penal civil seja no Código Penal Militar, é constranger alguém, constranger uma mulher a praticar um ato sexual mediante violência ou grave ameaça e portanto não existe uma previsão legal de que a vítima tem que reagir ou que tentou reagir para manifestar o seu dissenso [falta de consentimento]”, explica.

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De acordo com Zapater, a falta de consentimento é demonstrada pela palavra da vítima, que realizou a denúncia, porque o depoimento dela é elemento de um conjunto de provas previstas no Código Penal. “Além de que não tem como não considerar todo o contexto dessa cena que é descrita na própria sentença, ou seja, uma moça sozinha em face de dois policiais armados dentro de um carro, então a verossimilhança de ela se sentir forçada tem que ser levado em consideração, ainda que não exista prova, porque ninguém estava lá além dos acusados e da vítima, de que uma arma foi apontada para a cabeça dela”, enfatiza.

Para a professora, esse tipo de argumentação expressa uma mentalidade do judiciário de descredibilizar as vítimas e inibir denúncias. “Não adianta mexer na lei, mexer na pena, pedir mais punição se a gente tem toda uma estrutura cultural que coloca em dúvida a palavra das mulheres quando se fala em crimes de violência de gênero”, critica.

Relembre o caso

O caso aconteceu em 12 de junho de 2019 e a vítima conta que tinha perdido ponto de desembarque de um ônibus intermunicipal, de onde voltava de uma festa na região de Campinas. Ela tinha que ter descido em São Vicente e quando notou estava em Praia Grande. Desceu do ônibus e avistou uma viatura, onde foi buscar informações sobre a melhor forma de fazer o trajeto de volta. Na viatura estavam os soldados Anderson e Danilo, que ofereceram uma carona para a vítima até o terminal rodoviário Tude Bastos.

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Em entrevista à Ponte alguns dias após o ocorrido, a jovem contou que aceitou a oferta de carona, por pensar estar mais segura com a PM do que aguardando um ônibus passar na avenida, já que o relógio marcava quase meia-noite. “Assim que a viatura começou a andar, ele pegou a minha mão e colocou no pênis dele. Aí eu puxei e ele colocou de novo. Aí eu falei não, não. Mas ele pegou o meu braço com mais força. Ele abriu a calça e abaixou a minha cabeça, para eu fazer sexo oral nele. Aí ele pegou, levantou a minha cabeça e me deitou. Aí ele tirou a minha calça e me penetrou. Por último ele segurou a minha cabeça e ejaculou na minha boca. Isso tudo foi com a viatura em movimento. Quando chegou, ele desceu, se limpou e sentou no banco da frente. Aí eles foram e me deixaram no terminal”, relatou a vítima na época.

Os policiais foram presos preventivamente na época e foram denunciados por estupro pelo Ministério Público Militar. Em dezembro de 2019, porém, os soldados foram soltos e respondem o processo em liberdade.

Em nota*, a Secretaria de Segurança Pública declarou que os policiais “respondem a processo disciplinar demissionário pela instituição e seguem afastados do trabalho operacional”, que é “independente do processo penal-militar”. “Em que pese a decisão do TJM, ainda há graves infrações sendo apuradas em Processo Regular”, diz a assessoria.

Já o Ministério Público** informou que teve ciência da sentença na quarta-feira (23) e está analisando, “inclusive em relação à pena imposta”

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A Ponte procurou a Defensoria Pública, que tem acompanhando a vítima, cuja assessoria disse que ainda não recebeu a sentença.

Também procuramos as defesas dos policiais, mas não tivemos respostas.

*Reportagem atualizada às 20h50, de 23/6/2021, após recebimento de resposta da SSP.

**Atualização às 13h53, de 24/6/2021, após resposta do MP.

Correções

*Reportagem atualizada às 20h50, de 23/6/2021, após recebimento de resposta da SSP. **Atualização às 13h53, de 24/6/2021, após resposta do MP.

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