Em áudio divulgado nas redes sociais, Henrique Soares, do curso de medicina legal, diz que negros e indígenas eram “culturalmente atrasados”; universidade afirma que comissão analisa o caso. Ideia de que negros são “raça inferior” vem do século XIX e não tem mais respaldo científico, apontam especialistas
Há tempos que os alunos do curso de medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na capital paulista, se deparam com falas racistas do professor de medicina legal, Henrique Soares. O incômodo se tornou público recentemente quando um dos estudantes divulgou um áudio em redes sociais no qual o professor dizia que os colonizadores do Brasil se depararam com pretos e povos indígenas “culturalmente atrasados”, ao explicar a noção de “raça pura”.
No áudio Soares também diz que no Brasil “nós somos o que tinha de pior na Península Ibérica, bandido, assassino, miserável”. Em relação aos povos indígenas, o docente afirma: “Índio atrasado. Aqui não tinha inca, não tinha os índios do México. Não tinha asteca. Nossos índios eram culturalmente atrasados. Ainda ‘importamos’ pretos que também eram atrasados, ou seja, que se permitiam escravizar”.
Soares ainda afirma que, graças a isso, houve a miscigenação do povo brasileiro que resultou em “mulatos” e “mamelucos”, termos considerados racistas e já debatidos pelo movimento negro e pesquisadores. Alunos que preferiram não se identificar alegaram em postagens nas redes sociais que não é a primeira vez que o professor se manifesta de forma racista, e também dizem que o docente já proferiu frases machistas e LGBTfóbicas em sala de aula.
O racismo utilizado academicamente dentro do curso de Medicina Legal não é um caso isolado. Em abril deste ano, estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) se mobilizaram contra homenagens a Amâncio de Carvalho, Catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Direito de São Paulo, professor racista que mumificou Jacinta Maria de Santana. O corpo mumificado de Jacinta foi utilizado em trotes estudantis no Largo São Francisco, por quase 30 anos, de 1900 a 1929.
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Para pesquisadores ouvidos pela reportagem, as falas do professor Henrique Soares expressam o chamado “racismo científico” O conceito surgiu na segunda metade do século XIX, influenciado pelo desenvolvimento e especialização das ciências naturais, quando as diferenças fenotípicas eram consideradas manifestações das desigualdades humanas no contexto colonial, explica Luciano Góes, advogado negro e doutorando em direito pela Universidade de Brasília (Unb), que estuda o racismo científico no campo da criminologia e o abolicionismo penal.
Para a historiadora Pietra Diwan membra do comitê de bioética na Universidade do Kentucky nos EUA e autora do livro Raça pura: Uma história da eugenia no Brasil e no mundo, a visão do professor Henrique Soares é extremamente colonialista. “É uma visão completamente eurocentrista que já tem sido desbancada há muitos anos, pelo menos há quase duas décadas. É quase impensável ver um profissional de uma instituição respeitada no Brasil, uma das maiores instituições de ensino da ciências médicas, fazer afirmações dessa natureza, esse professor deve receber a consequência criminal pela sua fala”, critica.
Nesse sentido, a historiadora argumenta que o tempo atual é de celebração diversidade. “Um tempo de celebração das potencialidades, em que quando a gente vai observar as comunidades originárias notamos a quantidade de tecnologias locais, não falo de computador, celular, mas tecnologias de formas como lidar com o clima, de como lidar com doenças, são formas sofisticadas”.
Para ela, a instituição deveria afastar um profissional com essa postura por ele fazer afirmações que são “contrárias ao senso comum não somente das áreas médicas, mas, das ciências exatas, das ciências humanas, principalmente na pesquisa científica”.
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Pietra Diwan aponta que o racismo científico se fundamenta, segundo ela, a partir do filósofo francês Arthur de Gobineau, autor de um ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. “Ele é consolidado com a distorção da Origem das Espécies, de Charles Darwin, de que havia uma diferenciação entre raças e que dentro dessa diferenciação existiria uma hierarquização racial”.
Góes esclarece que as ciências naquela época, em seus diversos campos, comprovaram e certificaram a suposta primitividade e inferioridade dos povos africanos e indígenas estabelecidas pelos brancos. “Autointitulados como superiores através da hierarquização das raças que eles mesmos criaram e pela qual justificaram e promoveram genocídios, sequestros, estupros e destruição de sociedades e cosmologias que não resguardavam semelhança com sua aparência, conhecimento e modelo de sociedade, não só universalizados, mas definidos como únicos verdadeiros e evoluídos”. Segundo o pesquisador, isso tornou-se um parâmetro a ser alcançado por todos os demais povos, em uma perspectiva evolucionista.
Essa tendência que percorreu todo o final do século XIX não estava baseada em nenhuma teoria científica consolidada, afirma Diwan. “Ou seja, não era possível ainda provar através da ciência, no que a gente conhece hoje como genética, mas na biologia da época, a transmissão de caracteres de pais para filhos e como esses caracteres funcionavam”.
Por isso, Diwan explica que o racismo científico, de certa forma, estava muito associado à antropologia. “É o que se chama de uma antropologia física, dos viajantes que iam para a África, os viajantes europeus tinham para a África ou vinham inclusive pro Brasil como as Missões francesas”.
Institucionalização do racismo científico
Nesse sentido, o doutorando da Unb expõe que o racismo cientifizado se institucionalizou no Brasil através de todas as áreas do saber que tinham como premissa e referências as ciências europeias e seus autores, “construindo as bases da própria instituição acadêmica brasileira, principalmente após a chegada da família real em 1808, manifestando, assim, o racismo institucional, que se expressa nos conhecimentos que colocam o branco como superior, hierarquizam as raças, exterminam e apagam seus conhecimentos, o chamado epistemicídio”.
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O racismo estruturou, desenvolveu e enriqueceu a Europa e a própria branquitude, e os conhecimentos que foram reproduzidos e aplicados nas colônias serviram para legitimar e legalizar a supremacia branca, diz Luciano Góes. “Seu domínio, violência e exploração dos povos ‘primitivos’, inclusive para o seu ‘bem’, pois eles não tinham capacidade intelectual para saírem do atraso social, econômico, político e jurídico, uma postura salvacionista que estendia a mão para esses povos e indivíduos alcançarem a civilidade.”
Esse pensamento é “traduzido” no Brasil pelo médico maranhense Nina Rodrigues (que foi professor da Faculdade de Medicina da Bahia), no final do século XIX. “Exatamente quando o sistema de controle racial brasileiro entra em colapso com a Lei Áurea, perdendo sua legalidade já que a ‘liberdade’ representa, juridicamente, a conquista da ‘cidadania’. O racismo científico também instituído pela criminologia legitimou uma série de políticas criminais orientadas ao povo negro no pós abolição, alinhadas aos crimes racializados tipificados pelo Código Penal de 1890”.
O racismo científico orientou inclusive a “guerra contra as drogas” diz, “ao justificar a neutralização do criminoso nato, o negro enquanto inimigo e perigoso, e a criminalização do uso e comércio do ‘fumo de negro’ (maconha)”.
Eugenia e racismo científico
No final do século XIX, o racismo científico ganha um novo estímulo, a eugenia, uma teoria desenvolvida na Inglaterra em 1883 que se espalhou no começo do século XX em diversos países, sobretudo nos Estados Unidos e na Alemanha com a eclosão do nazismo, mas também nas Américas e no Brasil, como aponta Diwan. “A eugenia vai surgir através do estudo do primo do Charles Darwin, Francis Galton, que vai dizer que, se é possível fazer a seleção de cavalos para cavalos mais puros, mais rápidos e mais robustos, por que não fazer isso com as pessoas?”
A eugenia se popularizou em um período em que a sociedade inglesa estava em pleno caos, esclarece a historiadora. “Por causa da rápida industrialização e da ida de pessoas para os centros urbanos, a eugenia pensa que é possível selecionar os casamentos e os nascimentos e a reprodução dos humanos. Essa ciência da hereditariedade vai dar suporte teórico para o racismo científico e então a questão vai ser não somente a hierarquia das raças, mas a hierarquia social dentro das raças. Paralelamente ao racismo científico, a eugenia vai tentar selecionar dentro de cada grupo étnico, que eles chamavam naquela época de raça, os melhores indivíduos.”
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A eugenia controlava casamentos, nascimentos e mortes na forma da proibição, por exemplo, na reprodução de pessoas que eram consideradas fora da norma, como diz Diwan. “Como pessoas com qualquer tipo de problema de saúde mental, que na época eles chamavam doentes mentais, pessoas com doenças consideradas crônicas. O pensamento eugenista vai encontrar bastante adesão nos centros urbanos, principalmente São Paulo, Rio de Janeiro, na Bahia com Nina Rodrigues.”
Além de excluir portadores de hanseníase e doentes mentais da sociedade, a eugenia motivou leis anti-imigração de povos não-europeus e colaborou com o racismo. A queda da eugenia ocorre depois de 1945, quando ele deixa de ser aceito, não somente na academia, mas pela sociedade global, com o desvelamento do que aconteceu no Holocausto. “Acabou trazendo à tona o debate sobre o racismo científico, ele passou a ser inaceitável”, explica Diwan.
Comprovar a superioridade branca, legitimando os genocídios dos povos negros e indígenas, é apenas um dos impactos do racismo científico, afirma Góes. “Há também o epistemicídio de suas ancestralidades, conhecimentos e comportamentos cosmológicos, promovendo o embranquecimento e a eugenia, isto é, a limpeza racial que foi estabelecida como princípio constitucional em 1934 no Brasil.”
Não por acaso, foi com base no racismo cientifizado que Hitler concretizou seu projeto de purificação ariana, explica o advogado. “O que significa que foi o racismo que gestou o nazismo e o fascismo, com reflexos jurídicos no Brasil com a Constituição Brasileira de 1937 (a Polaca), outorgada por Getúlio Vargas, que abre caminhos para a reprodução do Código Penal italiano fascista, conhecido como ‘Rocco’, aqui em 1940, que é a base do nosso Código Penal atual”.
Medicina legal, racismo e criminologia
A imbricação entre os saberes médicos e o poder policial e criminal, é a fonte originária da criminologia enquanto ciência, construída pelo médico italiano Cesare Lombroso, na segunda metade do século XIX, diz Góes. “Com base no positivismo (também expressão do racismo científico), por isso chamada de ‘criminologia positivista’, Cesare Lombroso vai ‘comprovar’ não apenas a primitividade do negro, mas sua animalidade e periculosidade, conceito fundamental para compreendermos o genocídio perpetrado em nome da ‘segurança pública’.”
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Assim, Lombroso criou o “direito penal do autor” que, num geral, determina a prisão de alguém não pelo que ele fez, mas pelo que ele fará no futuro, elucida o doutorando da Unb. “pois o crime seria uma manifestação da natureza biológica de corpos negros”.
Por isso, a suspeição e morte de jovens negros, etiquetados como traficantes pelas agências policiais, comprova a presença e funcionalidade do direito penal do autor, aponta Góes. “Autor racialmente construído em nossa conjuntura política que naturaliza a morte, demonstrando que corpos negros, longe de terem o direito constitucional de presunção de inocência, têm a garantia da presunção da periculosidade que assegura a continuidade do genocídio negro e a inquestionalidade da presença e influência do racismo científico no campo jurídico, da política criminal e segurança pública.”
Unifesp se manifesta
A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) confirmou que recebeu denúncias, por meio de sua Ouvidoria, mencionando fala de conteúdo racista e preconceituosa envolvendo professor da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp). A universidade disse em publicação das redes sociais que “está acionando os mecanismos institucionais de averiguação, para abertura de sindicância e/ou Processo Administrativo. A Unifesp salienta, ainda, que não compactua com qualquer forma de discriminação ou preconceito de gênero, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, que deve ser devidamente apurada”.
Procurada pela reportagem, a Unifesp afirmou que, de forma célere, as denúncias foram analisadas pela Ouvidoria da Unifesp, e encaminhadas à Comissão de Juízo e Admissibilidade (CJA) no dia 17 de junho, com instauração de processo e indicação de relatoria. “Em reunião, no dia 18 de junho, a CJA realizou discussão inicial do caso e iniciará o processo de solicitação e coleta de documentos, além de manifestações dos(as) envolvidos(as), para permitir a análise de autoria e materialidade do caso”.
Ainda de acordo com a universidade o Conselho Universitário da Universidade Federal de São Paulo (Consu/Unifesp) aprovou a Resolução 194/2021, que trata das diretrizes, princípios e fundamentos para a construção da Política de Promoção da Equidade e Igualdade Étnico-racial, Prevenção e Combate ao Racismo da Unifesp.