Moradora que diz que casa foi invadida por PMs é ignorada na reconstituição da morte de Kathlen

Ela contou que, na época da morte, a sua casa teria sido ocupada por policiais que queriam realizar emboscada contra traficantes. Grávida de 4 meses, Kathlen foi morta por um tiro de fuzil em junho deste ano, no Lins, zona norte do Rio

Da esq. para q dir., Luciano Gonçalves, Jaqueline de Oliveira e Marcelo Ramos, pai, mãe e namorado de Kathlen, acompanham a reconstituição da morte da jovem | Foto: Matheus de Moura

A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro passou quatro horas da tarde desta quarta-feira (14/7) reconstituindo o assassinato de Kathlen Romeu e seu bebê, na favela do Cabuçu, no Complexo do Lins, zona norte do Rio de Janeiro, e ainda assim ignorou os relatos de uma moradora (cujo nome está sendo suprimido por segurança), que conta que teve a casa invadida para que os 12 policiais envolvidos na morte pudessem realizar uma “troia” (expressão usada no Rio de Janeiro para descrever uma tocaia cujo objetivo é atirar de surpresa, prática criminalizada por configurar execução sumária).

Em 8 de junho deste ano, Kathlen Romeu, de 24 anos, ia visitar uma tia que tinha acabado de abrir um salão de beleza. Junto da avó e do filho que esperava em seu ventre, de aproximadamente 4 meses, a jovem caminhava por uma comunidade no complexo Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio de Janeiro, por volta das 14h quando foi atingida por uma bala em seu braço que atravessou o tórax em uma ação de policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Lins. 

Leia também: Jovem negra grávida é morta durante ação da PM no Rio de Janeiro

Nem a moradora nem seu irmão estavam em casa durante o período onde teria ocorrido invasão policial, ambos souberam do ocorrido por vizinhos e pelo estado em que a casa se encontrava: toda revirada da cabeça aos pés, com documentos jogados no chão e o cadeado de entrada arrombado. Ela guarda este último artefato consigo até hoje.

“Ninguém me procurou. A polícia subiu até aqui perto e não veio na minha casa, que é de onde eles partiram”, reclama, sentada em seu sofá junto de uma das filhas. “Eu não durmo mais aqui, eu durmo na vizinha, vivo com medo. Os vizinhos dizem que não deveria ter deixado minha casa sozinha, como se eu fosse culpada pelo que aconteceu.” Ela relata que comprou o casebre por R$ 2.500, mas que só recentemente foi saber por meio de um vizinho que seu novo lar sempre serviu de ponto de tocaia para policiais, algo que não lhe foi informado na compra do imóvel.

Policiais mascarados

A reconstituição da cena do crime começou por volta das 12h50 e terminou perto das 16h50. Amigos e familiares, com exceção dos pais e da avó — que teve sua versão reconstituída —, tiveram que esperar atrás da faixa amarela que delimitava o campo de alcance da perícia. Em pé maior parte do tempo, eles discutiam as expectativas sobre o procedimento, cuja conclusão foi omitida pelos policiais.

Dos 11 policiais intimados, apenas seis compareceram. Eles tiveram de simular o ocorrido a partir das posições que ocuparam na hora da morte de Kathlen. Sua presença era perceptível pelo fato de estarem usando balaclavas e fardas sem identificação. Em determinado momento, um deles passou pelos amigos e parentes que esperavam distante da perícia. A vaia começou com um grito de “assassino! assassino” e evoluiu para o coro “polícia assassina! Chega de chacina”.

Leia também: ‘Os policiais desceram atirando’: família e moradores contestam versão da PM sobre morte de Kathlen

O grito incomodou uma inspetora da polícia, que se aproximou de alguns manifestantes e disse ser ilegal aquele tipo de manifestação, em especial ao chamar um suspeito de assassino. Isso logo foi desmentido pelo procurador da comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), Rodrigo Mondego, que indicou aos rapazes que fizessem o que tinham vontade de fazer.

Sem grandes novidades trazidas pela perícia, a organização Comunidade Black, formada por amigos de Kathlen, declamou uma nota sobre o ocorrido: “Citar eventos alheios à vontade da Kathlen, sua avó Sayonara e moradores da comunidade do Lins justifica a ação violenta e desmedida do Estado? Estado esse que não parece buscar a preservação de vidas quando se está em favelas e bairro predominantemente negros. Isso é RACISMO!”.

OAB contradiz versão de PMs

Os policiais responsáveis pela morte da Kathlen, segundo Rodrigo Mondego, afirmam que, ao contrário do que se popularizou pela imprensa, Kathlen não foi assassinada por uma bala vinda de cima, do Beco da 14. O projétil teria vindo de bandidos escondidos na rua em que Kathlen se encontrava, a Araújo Leitão, pela lateral.

Leia também: Caso Kathlen e a produção de mortes pelas polícias brasileiras

Contudo, na versão da avó, não havia traficantes naquela rua, mas sim policiais militares. Em outras palavras, o tiro teria vindo da polícia, em qualquer um dos ângulos em consideração. Rodrigo afirmou ainda que “pela versão da avó [Sayonara Fátima], se mantém aqui que não houve confronto no dia da morte da Kathlen. Pela forma que a Kathlen caiu, pela forma que a bala perfurou ela, não existe possibilidade de a bala ter vindo de outro lugar senão do beco, e de um beco onde tinha agentes públicos de segurança naquele exato momento.”

A Ponte apurou na ocasião da morte de Kathlen que, segundo moradores, a polícia teria ficado escondida na casa da moradora, que não se encontrava na hora; eles teriam passado a noite na residência para no amanhecer atacar uma boca de fumo antes que ela fosse instalada, e que, na hora da ação, os bandidos recuaram rapidamente e Kathlen foi atingida.

Ajude a Ponte!

De acordo com o laudo cadavérico, o tiro de fuzil que a matou transfixou seu tórax. Ainda segundo informações de inquérito, pelo menos dois dos doze PMs envolvidos admitiram que estavam atirando na hora do ocorrido. A Ponte procurou a assessoria da Polícia Civil do Rio de Janeiro para questionar sobre as diferentes versões e aguarda resposta. Nenhum policial quis conceder entrevista durante esta quarta (14).

ATUALIZAÇÃO: A pedido da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ) e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, por questões de segurança pessoal, esta reportagem foi atualizada às 22h do dia 16/7/2021 e o nome da moradora foi suprimido da reportagem.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas