‘Os policiais desceram atirando’: família e moradores contestam versão da PM sobre morte de Kathlen

PMs teriam invadido casa para fazer emboscada e acabaram matando jovem negra grávida na tarde desta terça (8). Polícia alegou confronto com traficantes, mas tio nega: “não apreenderam nada, foi tudo mentira”

A morte de Kathlen foi motivo de manifestações no complexo do Lins, na zona norte do RJ | Foto: Matheus de Moura / Ponte Jornalismo

Na tarde desta terça-feira (8/6) Kathlen Romeu, de 24 anos, ia visitar uma tia que tinha acabado de abrir um salão de beleza. Junto da avó e do filho que esperava em seu ventre, de aproximadamente 4 meses, a jovem caminhava por uma comunidade no complexo Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio de Janeiro, por volta das 14h quando foi atingida por uma bala em seu braço que atravessou o tórax em uma ação de policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Lins. Logo, o momento de união familiar se transformou em tragédia, a modelo caiu no chão e ensanguentada permaneceu no local por 10 minutos enquanto sua avó gritava e pedia ajuda de outros moradores e dos próprios policiais do governo de Claudio Castro (PSC).

Mesmo com os gritos da avó e uma aglomeração de pessoas que já se formava, os policiais não queriam ajudar a moça, lembra o tio de Kathlen, Flávio da Silva Lopes, 46 anos, que conviveu com ela desde o seu nascimento em entrevista à Ponte que esteve no local. “Eles não queriam levar ela para o hospital. Quando chegaram ao hospital constataram que ela foi morta, eles sumiram, voltaram para cá e recolheram as cápsulas de bala que estavam no chão”.

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Flávio relata o pesadelo que foi desscobrir sobre a morte da sobrinha. “Foi horrível, saber da circunstância, escutar o porta voz da polícia falando que o tiro partiu de bandido. Não foi bandido, os policiais desceram a rua dando tiros, não apreenderam nada, foi tudo mentira”. 

Buracos dos dois tiros na parede, um deles atingiu atravessou o corpo da Kathlen | Foto: Matheus de Moura | Ponte Jornalismo/

Assim como o tio de Kathlen, uma moradora que não quis se identificar com medo de represálias dos policiais e que diz ter visto a ação também afirma que os tiros partiram dos policiais militares, que estavam em um local alto da favela. “Eu estava na rua comendo, do nada começaram a dar tiros para o alto, foram dois. Os bandidos não deram tiros nos policiais, os PMs queriam atirar nos bandidos e atiraram nela, eram tiros de fuzil. A avó dela gritou pedindo: ‘Pelo amor de Deus ajuda a minha neta’, mas eles iam continuar dando tiros. Eu vi, eu estava lá”. 

Kathlen foi levada pela viatura dos policiais até o Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, zona norte do Rio, onde sua morte foi constatada. O laudo do Instituto Médico Legal (IML) constatou que ela e o filho morreram por causa de um tiro de fuzil no peito. Nesta quarta-feira (9/6), a jovem foi velada no Cemitério do Catumbi.

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Por volta das 16h desta terça-feira (8/6), moradores da comunidade Vila Cabuçu, uma das favelas que compõem o complexo, se manifestaram em protesto à morte de Kathlen e fecharam parte da Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá, que liga as zonas oeste e norte da cidade. Já nesta quarta-feira (9/6) eles voltaram a protestar no complexo do Lins, pedindo paz e justiça pela jovem. Os manifestantes ergueram bandeiras e faixas contra o genocídio da população negra.

Policiais escondidos

Segundo relato de moradores, os policiais que teriam atirado em Kathlen estavam escondidos desde a manhã da terça-feira na casa de uma moradora da comunidade. Segundo relatos da moradora que vive no local com o irmão, os policiais teriam arrombado a porta da casa, onde reviraram documentos e demais pertences. “Eles reviraram tudo, os documentos do meu irmão. Se ele tivesse aqui sozinho, negro, tinham matado ele. Estou sem dormir, em choque, dormi na casa da minha vizinha essa noite”.

Moradora mostra o cadeado da casa que teria sido destruído por policiais | Foto: Matheus de Moura / Ponte Jornalismo

Foi então por volta das 13h da tarde de terça-feira que os policiais saíram da casa e tentaram atacar traficantes da comunidade que fugiram, segundo moradores, que excluem a hipótese do confronto relatado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. 

A violência na comunidade é constante, conforme mostrou à reportagem um morador que teve sua casa alvejada e também não quis se identificar. “Está vendo as janelas aqui? Eu já troquei ela, não é a primeira vez, nem a primeira janela que eu tive”.

Inspiração na comunidade 

Maya ou Zayon eram os nomes que seriam escolhidos pelo casal a depender do sexo do bebê que Kathlen esperava. A gravidez era motivo de felicidade dentro da família, exibida cotidianamente nas redes sociais junto a outras fotos que retratavam parte da vida de uma jovem que trabalhava como modelo e vendedora. Além do trabalho, Kathlen tinha acabado a graduação de designer de interiores na faculdade Estácio de Sá, onde se formou junto ao namorado Marcelo Ramos, tatuador com quem tinha um relacionamento há cerca de dois anos e com quem pretendia viver em um apartamento em Piedade, zona norte do RJ. 

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O sonho de viver em um bairro com uma estrutura melhor se tornava realidade após seis anos em que trabalhou como modelo e vendedora na rede Farm. Kathlen saiu do complexo do Lins junto com a mãe há dois meses para viver em uma parte considerada mais tranquila da comunidade, depois disso ela iria morar em um apartamento com o namorado comprado por ela mesma. Pelo tio, ela é lembrada como uma moça tranquila e muito ligada à família. “A mãe dela ficou totalmente contente com a gravidez, ela é filha única da mãe. Gostava de viajar bastante, no carnaval ela acampava com os amigos, viajou pela Farm também, em março fomos para Paraty”, diz Flávio.

Querida na comunidade, a jovem não frequentava muito as festas de funk do complexo do Lins: os bailes eram evitados por Kathlen a mando da mãe que tinha medo da violência no local, conta o tio. “Ela nunca teve problema com vizinho com nada. A mãe dela nunca deixou ela sair na noitada, sempre que tinha baile funk aqui, ver ela era a coisa mais incomum, lembro de uma vez que ela foi e a mãe dela ficou sabendo, porque a madrinha dela viu, depois disso ela nunca mais foi, a mãe brigou.”

Ainda assim, as idas à comunidade eram frequentes em festas da família. “No final de semana ela vinha para cá, fazíamos churrasco, ano passado ela fez o aniversário dela aqui com toda a família”, lembra o tio.

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Em meio às lembranças da vizinha jovem e alegre de um lado e das cenas de violência de outro, uma das moradoras pede apenas paz na comunidade. “Isso é triste para nós que moramos na favela, nem todo mundo que mora na favela é bandido. Eu defendo o trabalhador, a gente que mora na comunidade sofre. O Lins pede paz”.

Outro lado

Na noite desta terça-feira (8/6), a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro informou à Ponte que a Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) investiga a morte de Kathlen de Oliveira Romeu. “Segundo os agentes, a mulher foi baleada durante um confronto entre traficantes e policiais militares, socorrida ao Hospital Salgado Filho, no Méier, mas não resistiu e faleceu. Testemunhas serão ouvidas e diligências realizadas para esclarecer todos os fatos e identificar de onde partiu o tiro que atingiu a vítima”.

Em nota, a assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informou que, na tarde desta terça-feira (8/6) policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Lins “foram atacados a tiros por criminosos na localidade conhecida como ‘Beco da 14’. Houve confronto na ação, sendo apreendidos um carregador de fuzil, munições de calibre 9mm e material entorpecente a ser contabilizado. Após cessarem os disparos, os militares encontraram uma mulher ferida e a socorreram ao Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, onde  – infelizmente – não resistiu. O local está preservado e a perícia foi acionada”.

A pasta ainda disse que a Delegacia de Homicídios da Capital investiga o caso. “Em paralelo às investigações da Polícia Civil, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) vai instaurar um procedimento apuratório para averiguar as circunstâncias do fato”.

Segundo reportagem do G1, cinco policiais militares que se envolveram no suposto confronto já prestaram depoimento na Delegacia de Homicídios (DH) da capital.

O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), disse à Ponte nesta terça-feira (8/6) que o plantão institucional recebeu denúncias sobre o fato, somente após o incidente e que não foi avisado pela UPP sobre uma operação no local. “As informações colhidas serão remetidas para a Promotoria de Justiça de Investigação Penal com atribuição. Não houve comunicação pela autoridade policial sobre operação na localidade”.

O órgão informou que o plantão é um serviço de atendimento 24 horas do MPRJ para receber denúncias urgentes de possíveis casos de violência e abusos de autoridade cometidos durante operações policiais em comunidades no Estado do Rio de Janeiro.

Em nova nota, enviada nesta quinta-feira (10/6), a PM do Rio de Janeiro diz que “não havia operação no momento do incidente. Policiais Militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Lins foram atacados a tiros por criminosos armados de maneira inesperada e inconsequente”. A nota também informa que “houve confronto na ação, sendo apreendidos um carregador de fuzil, munições de calibre 9mm e material entorpecente a ser contabilizado. Após cessarem os disparos, os militares encontraram uma mulher ferida e a socorreram ao Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, onde – infelizmente – a vítima não resistiu. O local foi preservado e a perícia foi acionada”. A corporação não respondeu perguntas sobre a tocaia policial e sobre o recolhimento de cápsulas, testemunhadas por moradores.

Esta reportagem foi atualizada às 14h25 do dia 10/6/2021 para acrescentar nova nota da PMRJ

A pedido da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ) e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, por questões de segurança pessoal, esta reportagem foi atualizada às 18h10 h do dia 19/7/2021 e o nome de uma moradora foi suprimido da reportagem.

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