O lavador de carros Pedro Medeiros foi preso após ter sido acusado por vítima de um assalto ocorrido em dezembro de 2020 com base em foto de seu perfil no Facebook. Depois de passar quase uma semana preso ele quer provar a inocência
A família do lavador de carros Pedro Antonio Louzeiro de Medeiros, 19 anos, comemorava o aniversário de 62 anos da avó dele quando soube de repente que o jovem havia sido preso. Naquele dia ele trabalhava no Rio de Janeiro. Pego de surpresa em seu local de trabalho com um mandado de prisão, Pedro foi encaminhado a 19ª Delegacia de Polícia da Tijuca, zona sul do da capital carioca, no dia 30 de agosto, por volta das 17h. Ele foi informado que era denunciado por um roubo ocorrido em dezembro de 2020, ocorrido enquanto ele em casa trocando mensagens com amigos via WhatsApp.
Ainda que a prisão tenha ocorrido somente em agosto, Pedro já havia sido denunciado no dia 19 de março pela Promotora de Justiça do Ministério Público do RJ, Renata de Vasconcellos Araújo Bressan. À Ponte, Pedro conta como foi o momento da detenção: “quando os policiais civis chegaram no meu trabalho, em nenhum momento falaram porque eu estava sendo preso, eles chegaram me algemando, colocaram a minha foto que ele tinha no papel, do lado do meu rosto, disse o meu nome e me prendeu, já me colocaram no carro, falando que eu já sabia o que eu tinha feito, me acusando”.
Na viatura ele descobriu que estava sendo acusado com base em sua fotografia de perfil no Facebook e que os próprios policiais suspeitaram que poderia ser um engano. “O delegado acreditou em mim, falou que tentou me ajudar ainda em alguma coisa mas não conseguiu. Na prisão ficamos três dias sem água, eram 135 pessoas em uma cela, todo mundo era tratado que nem bicho, não tinha colchão para ninguém. Eu não aconselho aquele lugar nem pro meu pior inimigo”, lembra dos momentos vividos no presídio de Benfica, na zona central do Rio.
No dia do roubo, ele lembra que estava dentro do condomínio onde mora. “Uma hora antes, por volta das 22h eu estava conversando com meus amigos fora de casa, depois entrei em casa e fiquei conversando com uma menina pelo celular, tenho prints da tela. Eu pensei em pegar imagens da câmera do condomínio mas de 20 em 20 dias as imagens são descartadas.”
A mãe de Pedro, Franquerlene de Jesus Araújo Louzeiro, 42 anos, lembra do momento em que soube que seu filho estava sendo preso, no meio o aniversário da sogra. “Larguei tudo lá imediatamente quando me ligaram falando o que estava acontecendo com ele, nosso dia estava sendo agradável de comemoração pela idade da avó dele e aconteceu isso.” Ela soube da prisão pelo chefe de Pedro, que comunicou a família por telefone.
Além de Pedro, Franquerlene é mãe de uma adolescente com necessidades especiais e cuida dos filhos sozinha depois que o marido veio a falecer recentemente. Por conta da morte do companheiro, ela parou de trabalhar como recepcionista em posto de saúde e passou a dar assistência emocional e psicológica aos filhos, que ficaram muito abalados. “O Pedro virou a figura paterna da minha filha, o que dá segurança a ela, minha filha passa mal é ele que socorre porque ela tem crises de convulsão, é ele que brinca com ela.”
Ela agora critica o sistema de justiça brasileiro, depois do que aconteceu com o filho. “Diante das coisas que todo dia passa na TV, em sites, em publicações de outros jornais, a gente vê que a nossa Justiça infelizmente é falha, não funciona, não vê funcionar direito para muitas pessoas que são negras, que são pobres, que fazem parte da camada baixa da sociedade e a gente também não vê auxílio, ajuda do governo, para auxiliar a gente.”
O crime pelo qual pedro foi preso ocorreu no dia 8 de dezembro de 2020, por volta das 23h, na Rua Laureano Rosa. O suspeito robou o aparelho celular Xiaomi/Redmi 9 de uma mulher dentro do ônibus da linha 40, da Viação Expresso Tanguá.
Depois disso, o suspeito teria fugido. Poucos dias depois, a vítima teria visto um anúncio de venda de aparelhos celulares na página do Facebook, de um perfil com o nome de “Pedro Alves”. Na pesquisa às fotos ali publicadas, a vítima teria reconhecido Pedro como a pessoa que teria lhe assaltado.
Um mês depois, em 8 janeiro de 2021, ela foi até a 74ª Delegacia de Polícia abrir um registro de ocorrência, onde também fez o reconhecimento de Pedro. O documento foi assinado pelo delegado Lauro Cesar Lethier Rangel. No dia primeiro de março deste ano, um inquérito acusando Pedro do crime de roubo com o emprego de arma de fogo foi encaminhado ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), sendo denunciado também no mesmo mês. Em maio, a juíza Myriam Therezinha Simen Rangel Cury decretou a prisão preventiva de Pedro, que meses depois foi preso e encaminhado à penitenciária de Benfica.
Logo após a prisão de Pedro, os advogados Marco Antonio Augusto dos Santos e Charlene Tatiane Alves da Silva se depararam com diversas inconsistências no inquérito policial. Com isso, no dia 1 de setembro, ambos solicitaram a revogação de prisão preventiva, que teve como resposta na última sexta-feira (3/9), um posicionamento da promotora de Justiça Clarisse Lagoeiro de Magalhães Lourenço, que pediu a soltura de Pedro.
Na manifestação a promotora disse que a liberdade do jovem não colocaria em risco a ordem pública ou a aplicação da lei. Ela ainda ressaltou que “ é forçoso reconhecer que os fatos ocorreram há mais de nove meses e que a vítima, em sede policial, apontou o acusado por fotos de redes sociais, afirmando não ter dúvidas, de modo que, em tese, não há risco iminente à ordem pública ou instrução criminal.”
No mesmo dia, a juíza Myriam Therezinha Simen Rangel Cury (que antes tinha decretado a prisão preventiva de Pedro) revogou a prisão e estabeleceu medidas cautelares. O jovem não pode sair da cidade por mais de 15 dias e deve comparecer bimestralmente em Juízo para informar e justificar suas atividades, além de se recolher em seu domicílio no período noturno e nos dias de folga.
Em entrevista à Ponte, Marco Antonio apontou que as incoerências ocorreram desde que o procedimento investigatório foi iniciado, bem como no pedido de prisão preventiva. “A vítima alega que foi roubada dentro de um ônibus, no dia 08/12/2020, às 23h, numa rua que fica a menos de 500 metros da Delegacia Policial, e após exatamente um mês, essa vítima comparece à Delegacia Policial, informando que viu o Pedro anunciando um aparelho telefônico à venda, pelo Facebook, aparelho que nem era o que foi supostamente roubado.”
Diante disso, a polícia indiciou Pedro e requereu a prisão preventiva, sem se atentar ao fato de que, se o roubo foi dentro de um ônibus, o veículo possui câmeras de segurança e é dirigido por uma pessoa, o motorista, diz Marco. “Em momento nenhum foi solicitada as filmagens do veículo, bem como a oitiva do motorista do ônibus. De igual maneira, não foi solicitado que o Pedro comparecesse à Delegacia Policial para prestar qualquer esclarecimento, momento ao qual o mesmo poderia arrolar testemunhas, mostrar a sua localização daquele dia e momento através do seu aparelho telefônico”.
O advogado aponta ainda que, de acordo com o celular de Pedro, ele estava em casa, conversando através de um aplicativo de mensagens com três amigos, tendo inclusive enviado a sua localização para um deles. “No aparelho telefônico existe ainda um vídeo do mesmo, gravado momentos antes das 23h, brincando com o seu cachorro. O telefone de Pedro é um iPhone, dotado do sistema iCloud, que fornece todas as movimentações e registra tudo do aparelho. Durante todo processo investigatório, foi negado o direito de defesa, foi negado o princípio da inocência, insculpido na Constituição Federal e na Carta de Direitos Humanos”, critica o advogado.
Reconhecimento irregular
Na visão de Marco Antônio, a forma como o reconhecimento de Pedro foi feito reflete inúmeros problemas. “A memória humana, por mais que existam pessoas com o QI acima da média, não consegue gravar todos os fatos e rostos por muito tempo. Um assalto demora em média, de acordo com o relatado pela vítima, uns 45 segundos, dar crédito que uma pessoa foi reconhecida por foto um mês após, depois de ter passado todas as festas natalinas e de final de ano, tanta coisa, é complicado. Não é crível, não é aceitável, ou pelo menos deve ser amplamente questionado”.
Além disso, durante o momento do assalto todos deveriam estar utilizando máscara de proteção ao ingressar nos ônibus, diz o advogado. “Para o acusado ,que não estava no local, ser reconhecido, ele estaria sem máscara no ônibus, ou seja, não poderia ingressar. Acreditar que uma pessoa tire a máscara para cometer um delito foge a qualquer padrão criminal.”
Dessa forma, para ele, a Justiça pode cometer erros. “Erros que já nascem no procedimento investigatório, que na verdade sequer existiu, ouviu-se a vítima, qualificou o acusado, requisitou a prisão preventiva e chegamos a tal ponto. É notório que a polícia errou na forma de efetuar o procedimento, vindo tal fato gerar a prisão indevida do acusado.”
Para o advogado criminalista Bruno Salles o caso revela equívocos no reconhecimento, que segundo ele, é uma prova muito importante em qualquer processo penal. “Qualquer investigação vai procurar, antes de tudo, uma testemunha ocular, uma testemunha direta dos acontecimentos. Isso é natural. Ocorre que, ao contrário do que se pode intuir, a memória humana, mesmo a recente, não é perfeita e pode ser modificada, por vários fatores, ainda que não intencionais.”
Salles explica que um desses fatores é a indução de uma memória. “É possível criar falsas memórias mediante a criação de vieses de confirmação, que acabam fazendo com que pessoas que jamais estiveram no local de um delito sejam reconhecidas, muitas vezes, sem margem de dúvidas pelas vítimas. Isso acontece muito quando se utiliza o método chamado show up, quando se apresenta à vítima uma pessoa, ou mesmo uma foto de uma pessoa.”
Por isso a prática de reconhecimento moderna, segundo o criminalista, “tende a utilizar o método line-up quando se enfileiram pessoas com perfis parecidos para que a vítima reconheça o autor do delito. Esse método é muito mais confiável pois não se apresenta a vítima nenhum suspeito.”
O Código de Processo Penal já traz a previsão no artigo 226 de que é dessa forma que deve ser feito o reconhecimento, esclarece Salles. “Infelizmente, ainda há uma forte jurisprudência no sentido de que o método line-up não é mandatório e que outros métodos podem ser utilizados sem que se gere qualquer nulidade ao processo. O que faz com que, na prática, a maioria dos reconhecimentos seja feito por esse método extremamente falho.”
Isso demonstra que há uma tendência na Justiça Criminal de se querer mais resolver os casos do que encontrar os culpados, na opinião de Salles. “Uma vez obtido o reconhecimento, o caso já está praticamente encerrado e com sucesso, não importando se é culpado ou inocente. Até porque, até muito recentemente, pouco se tratou das condenações injustas no Brasil.”
“Só quero provar minha inocência”
Apesar do pesadelo vivenciado, Pedro conta animado que em nenhum momento parou de acreditar que seria solto. “Minha família estava do meu lado, o advogado me acalmou bastante, os presos também me acalmaram bastante, o principal [é que] eu sou inocente e sabia que ia ficar pouco tempo. Achei que ia ficar um pouquinho mais, mas graças a Deus saí bem antes”, celebra.
Agora a única vontade do jovem é provar que não cometeu crime algum. “Eu só quero provar minha inocência logo, deixar meu nome limpo, porque tenho que aguardar a audiência até janeiro, tenho que andar na ‘encolha’, como se eu fosse culpado, como se eu fosse um criminoso”, diz.
Mesmo fora da prisão, as medidas cautelares limitam a liberdade do jovem. “Eu não poder passar das 22h da noite na rua é um pouco complicado, estou sofrendo por um negócio que eu não cometi. Fui muito julgado por pessoas, amigos e muitas pessoas conhecidas. A polícia chegar e ir prendendo e você não ser culpado, é difícil. Dificulta muito a convivência onde eu moro.”
Outro lado
Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Civil disse que de acordo com a 74ª DP (Alcântara), Pedro foi identificado e indiciado no inquérito depois que “a vítima do assalto localizou o próprio celular sendo anunciado em uma página de vendas de uma rede social, cujo perfil era do acusado pelo roubo, sendo reconhecido pela vítima”.
Ainda segundo a unidade, os agentes tentaram fazer contato com o suspeito para prestar esclarecimento, mas não houve retorno. O inquérito foi concluído e enviado para o Ministério Público.
A 3ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Territorial/Núcleo São Gonçalo informou somente que ofereceu denúncia, com requerimento de prisão preventiva, decretada por decisão do Juízo da 5ª Vara Criminal de São Gonçalo, dia 3 de maio. “O mandado de prisão foi cumprido no dia 30/08. Informa, ainda, que o réu foi apresentado para audiência de custódia no dia 01/09, tendo sido a prisão mantida pelo Juízo responsável.”
Questionada, Myriam Therezinha Simen Rangel Cury do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ainda não respondeu aos questionamentos enviados até o momento. A reportagem está aberta às respostas dos órgãos mencionados.