Atrizes que denunciaram diretor pornô por estupro são investigadas pela polícia

    Diretor Binho TED, da produtora Hard Brazil, registrou queixa por calúnia e difamação contra três atrizes que relatam terem sido estupradas por ele

    Fábio Silva, o Binho TED, afirma que nunca abusou de atrizes e que sua esposa o acompanha nas filmagens | Foto: Reprodução | Facebook

    Era sábado, 2 de outubro, quando a atriz pornô Ágatha Ludovino, 21 anos, recebeu uma carta em sua casa. Era uma intimação para comparecer no 97º DP (Americanópolis), na zona sul da cidade de São Paulo. Ao se apresentar na delegacia, na última quinta-feira (7/10), Ágatha descobriu que havia se tornado alvo de um inquérito policial por ter denunciado, junto com duas colegas, supostos abusos sexuais de que teriam sido vítimas, todos praticados pelo diretor pornô Fábio Silva, 44, dono da produtora HardBrazil.

    O diretor, que usa o nome artístico de Binho TED (Terror das Empregadas Domésticas), nega os crimes e registrou queixa na Polícia Civil contra as três mulheres que o denunciaram: além de Agatha, a atriz pornô Stella de Abreu Rezende, 27 anos, e a ex-atriz Evelyn Carolina de Souza Buarque Lima, 23 anos, que deixou a carreira pornô por causa das violências que afirma ter sofrido.

    Por causa do boletim de ocorrência registrado pelo advogado de Binho, a Polícia Civil abriu inquérito para investigar as três jovens por suspeita de dois crimes: calúnia (atribuir a uma pessoa um crime que ela não cometeu), punida com seis meses a dois anos de detenção, e difamação (imputar fato ofensivo à reputação de alguém), que tem pena de três meses a um ano.

    As queixas de Binho foram uma resposta às denúncias das três atrizes, que vieram à tona em reportagem da Ponte publicada em abril deste ano. O diretor é ele próprio alvo de um inquérito pelas suspeitas de estupro, na 2ª Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher (2ª DDM Sul), aberto a partir de queixas registradas por Stella e Evelyn.

    O diretor nega todas as suspeitas e afirma que é inocente. Em entrevista à Ponte, Fábio Silva contou que sempre respeitou todas as mulheres com quem trabalhou. “Inclusive a minha esposa trabalha sempre ao meu lado, portanto todas as acusações foram feitas por alguma razão oculta, que está sendo investigada. Sou inocente de todas as acusações, jamais cometi qualquer conduta narrada em sua reportagem”, afirmou. Segundo Fábio, os relatos das atrizes são são muito graves e “sem fundamentos” e atingiram sua “honra e imagem”.

    Em julho deste ano, após a reportagem da Ponte, o portal Uol revelou que outras quatro atrizes também afirmam terem sido vítimas de violência sexual praticada pelo diretor da HardBrazil.

    “Não foi desacordo profissional, foi abuso”

    Apesar de ter contado sua história nas redes sociais, Ágatha não chegou a registrar um boletim de ocorrência, com suas colegas, por temer, segundo ela, os efeitos que uma queixa à polícia poderiam ter sobre sua carreira. Ela afirma que teria sido abusada por Fábio fora de uma gravação, durante uma viagem a trabalho no litoral paulista, em julho de 2019. Sobre a investigação da Polícia Civil por calúnia e difamação, afirma que são “um duro golpe” para ela.

    A atriz Ágatha Ludovino acusa Fábio de cometer abusos sexuais e psicológicos | Foto: Arquivo pessoal

    “Não esperava que ele tivesse a capacidade de se passar como vítima depois das inúmeras denúncias”, diz Ágatha. Ela se queixa da falta de apoio de outras mulheres. “A gente não tem um apoio, se fôssemos ‘mulheres de família’, casadas, com trabalhos convencionais, as pessoas ouviriam, mas, como somos trabalhadoras do ramo adulto, os homens nos julgam e as mulheres também.”

    A abertura do inquérito policial contra as atrizes foi feita pelo delegado Tulio Bueno de Alckmim Morais, do 97º DP, em 15 de junho, a partir de pedido do advogado do diretor, Fabio Santos Seles, feito em maio. Rosevan Nascimento, advogado de Ágatha, avalia que a ação do diretor foi uma “medida de contra-ataque” em relação às denúncias feitas pelas atrizes. “Existem três pessoas dizendo de uma forma muito condizente, e colocando um padrão na forma de agir de uma pessoa. Isso tem muito peso, daí isso ser considerado uma calúnia tem uma grande diferença. Foi uma tentativa dele tentar rebater as acusações, porque ele muito provavelmente vai responder aos atos que cometeu e está tentando se lançar como inocente”, afirma.

    No boletim de ocorrência que registrou contra Binho, Evelyn aponta que foi estuprada por Binho em seu camarim, antes das gravações, em 3 de maio de 2018, e que o diretor interrompeu o abuso quando foi surpreendido pelas chegada de um outro ator, Ed Júnior. O boletim foi registrado em maio deste ano, numa delegacia de Santa Catarina, onde ela morava na época, e encaminhado para São Paulo.

    Em print fornecido por Evelyn, a atriz se queixa do suposto abuso em conversa com o diretor | Foto: Arquivo pessoal

    No documento, a ex-atriz ainda frisou que Binho gravava o estupro com seu celular e que soube que o diretor já havia abusado de outras mulheres e publicado os vídeos na internet. Ainda segundo ela, quando Binho soube que ela havia registrado a ocorrência, ele a teria ameaçado dizendo que iria “queimar” a atriz em várias produtoras e que ela não conseguiria mais trabalhar no ramo. 

    Em entrevista recente a Ponte, Evelyn reiterou as acusações feitas anteriormente e afirma que tem provas e testemunhas do estupro. “Não havia nada no contrato apontando que tínhamos autorizado que o nosso corpo seria de livre acesso a hora que quisessem.”

    No caso de Evelyn, os danos físicos e psicológicos causados pelo trabalho na indústria pornô a fizeram trocar de área de trabalho. Sobre as acusações de Binho, ela acredita que a justiça no Brasil deixa muito a desejar, mas segue confiante. “Acredito em um mundo melhor e nunca perco a esperança no velho ditado ‘aqui se faz, aqui se paga’. Acho importante abordar o assunto para que alerte outras meninas que estão entrando na indústria pornô.”

    Evelyn conta que os danos físicos e psicológicos a fizeram deixar o ramo pornô | Foto: Arquivo pessoal

    Stella de Abreu Rezende, que usa o nome artístico de Teh Angel, afirma que Binho a forçou a fazer cenas que estavam fora do combinado para o filme Carona com TED, em 7 de fevereiro de 2020. A abertura do inquérito por calúnia e difamação, a pedido de Binho, não a espantou. “Já esperava que ele fosse fazer alguma coisa do tipo, então não foi novidade pra mim não”, conta. Ela afirma que se tornou mais exigente. “Não é qualquer trabalho que eu aceito mais. Queria apenas a resolução disso”, diz.

    Ao registrar o suposto abuso, na Delegacia da Mulher de Osasco (Grande SP), em maio deste ano, Stella afirma que foi mal atendida pela escrivã Renata Aparecida C. da Silva, que teria questionado se, em vez de estupro, o abuso não poderia ser considerado um desacordo profissional. “A escrivã não estava dando importância, eu falei ‘não foi desacordo profissional, foi abuso’, contei a história umas três vezes para ela, e ela deu uma resumida no boletim de ocorrência”, crítica. O texto do boletim, assinado pela delegada Luciana Bortolotto Mendes, informa apenas: “Comparece nesta Delegacia a vitima noticiando que foi abusada sexualmente pelo investigado”. 

    Questionada, a Secretaria da Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) disse que a Corregedoria da Polícia Civil “está à disposição para formalização da denúncia mencionada pela reportagem”. A reportagem também solicitou informações à pasta sobre o andamento do inquérito policial contra Binho, mas a Secretaria afirmou que a investigação é sigilosa.

    ‘Atuação ilibada e profissionalismo’

    O advogado Fabio Selles, que defende Binho, afirmou à Ponte que as investigações vão provar a inocência do diretor. “Meu cliente é inocente e a Polícia Civil vai ouvir todas as partes que estavam presentes nos locais onde foram feitas as denúncias e, ao final de tudo isso, o Poder Judiciário vai se manifestar sobre a conduta do Fábio e a conduta das senhoras atrizes que atuam e devem ser respeitadas, não só elas mas toda e qualquer mulher no ambiente corporativo”, diz.

    No documento protocolado pelo advogado de Binho, o defensor declara que o diretor atua no ramo pornográfico há mais de 20 anos “de forma ilibada e com muito profissionalismo”. Ressalta ainda que, com relação às três atrizes, as gravações com a HardBrazil ocorreram normalmente, “sem a ocorrência de qualquer fato relacionado às inverídicas denuncias”. O advogado ainda anexou uma publicação de Evelyn no Instagram em que a atriz elogia o trabalho da esposa de Binho, a produtora Lidy Silva, dois dias depois das gravações.

    Postagem de Evelyn sobre a esposa de Binho, usada pela defesa do diretor | Foto: Reprodução

    Segundo Evelyn, a postagem não fez qualquer elogio à empresa de Binho. “Nesse post, o texto que eu fiz foi para a esposa dele na gravação, que até então se identificou como uma pessoa que era vítima dele e que não sabia de nada.”

    Em seu depoimento à Polícia Civil, Binho garante que nunca forçou as atrizes a contracenarem nos filmes adultos de sua produtora, “tampouco procedido a assédio sexual ou psicológico”. Sobre as denúncias das atrizes, diz que “acabaram por macular o nome do declarante em seu meio profissional.” O diretor afirma que as calúnias e difamações contra ele têm origem na concorrência de outras produtoras e das próprias atrizes que possuem canais próprios na internet. 

    “Padrão e reincidência”

    A abertura de um inquérito policial baseado em supostos crimes contra a honra, quando vítimas de violência sexual levam os casos a público, são uma estratégia recorrentes no Brasil. É o que explica a advogada e pesquisadora Marina Ganzarolli, idealizadora do movimento #MeTooBrasil, que atua na proteção de mulheres vítimas de violência há cerca de 15 anos. 

    A advogada explica que os próprios autores de violência se valem da dinâmica de poder patriarcal para construir as suas defesas. “É uma forma de defesa típica, que vai desconstruir a moral, a índole, a história, a humanidade da vítima e nesse processo usar do argumento de que a vítima está destruindo a vida de um ‘cidadão de bem’, acabando com a moral. Então ele ataca, dizendo que está sendo caluniado, difamado, injuriado, silenciando essas mulheres.”

    Nesse processo, segundo a pesquisadora há um deslocamento do debate público, da violência sexual para a vitima. “Essa mulher é colocada no banco dos réus e a vida pregressa dela é investigada, ao invés da vida pregressa do réu”, diz Ganzarolli.

    Divulgada em junho, uma pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que mais de 26 milhões de mulheres relataram que sofreram assédio no trabalho e importunação sexual no último ano, nesses casos, um padrão de reincidência apontado pela advogada em relação a Binho. “Esse caso é extremamente típico de predador em série, de abusar em série, ele se usa das estruturas de poder e hierarquia e da dinâmica de poder colocada pelo ambiente profissional, mas também pela própria sociedade patriarcal para abusar de mulheres sistematicamente.”

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    Apesar de fundamental, registrar um boletim de ocorrência não basta na prática, segundo Ganzarolli, já que muitas vezes a própria vítima, acompanhada de uma advogada e de uma rede de apoio, precisa provar que sofreu a violência sexual. “Ela vai precisar de toda a sua condição mental, física e econômica, de mover montanhas, ou de contratar um especialista para produzir provas, para construir e controlar a narrativa na esfera pública, e muitas vezes auxiliada pelo jornalismo investigativo sério.”

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