Militante voltava para a casa após 10 dias hospedado em ONG, onde colaborava como auxiliar de cozinha e na organização de ações culturais e entregas de cestas básicas a famílias de baixa renda da região
Um ativista negro, de 56 anos, foi baleado na madrugada de domingo (24/10), às 2h54, quando retornava para a sua residência, na cidade de São Bernardo do Campo (SP).
Durante o trajeto, na Avenida Doutor José Fornari, no bairro de Ferrazópolis, ele foi ferido na nuca. A bala da arma ricocheteou no boné que estava usando, com a aba virada para trás, explica a vítima sob condição de anonimato.
Ele voltava para a casa após 10 dias hospedado na ONG Meninos e Meninas de Rua, na região central de São Bernardo, onde colaborava como auxiliar de cozinha e na organização de ações culturais e entregas de cestas básicas a famílias de baixa renda da região.
Populares que passavam pelo local socorreram o militante. Ninguém identificou de onde partiu o disparo. Ele foi socorrido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Jardim Silvina e transferido para o Hospital das Clínicas, no bairro Alvarenga, submetido a uma cirurgia para retirar o projétil. O fato foi registrado no 1º DP de São Bernardo do Campo.
“Eu moro no Ferrazópolis há 15 anos e nunca vi isso acontecer. Eu estava hospedado no projeto desde o dia 14 de outubro, ajudando a cozinhar e organizar ações que a ONG vem desenvolvendo, como distribuição de cestas básicas e apresentações culturais. Fui para casa descansar após alguns dias de trabalho solidário e fui atingido perto de casa, achei que era uma pedrada, mas foi um tiro no meio da minha nuca”, relata o ativista.
De acordo com ele, o tiro aconteceu quando cumprimentava duas pessoas conhecidas, em frente a um bar, durante o trajeto para sua casa. Ele também explica que não houve tentativa de roubo e a rua por onde passava estava tranquila no momento. “Eu senti um choque no corpo. Minha vista começou a escurecer, senti fraqueza e comecei a cair”, detalha. Em recuperação neste momento, o militante deve se submeter a novos exames.
Desdobramentos
Cleiton Coutinho, advogado que acompanha o caso, comenta em nota sobre os próximos passos a serem dados.
“Para apoiar a investigação, a defesa está solicitando à Justiça as imagens das câmeras de segurança, a perícia técnica do local do disparo, a oitiva das testemunhas, que terão igualmente suas identidades protegidas como aponta a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas, e o prontuário médico completo da vítima”, salienta.
Procurada, a direção do projeto ONG Meninos e Meninas de Rua afirma que acompanha de perto a situação, que tem como principal preocupação o bem-estar do militante, mas que também cobra dos órgãos responsáveis a apuração do caso.
Nota enviada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) informa que “o caso foi registrado como tentativa de homicídio pelo 1º DP de São Bernardo do Campo e encaminhado ao 6º DP do município, área dos fatos, que instaurou inquérito policial. Agentes da unidade realizam a oitiva de testemunhas e buscam por imagens de câmeras de monitoramento que auxiliem na identificação dos autores do crime e esclarecimento dos fatos”.
ONG corre risco de despejo
A vítima atingida auxiliava na cozinha do projeto Meninos e Meninas de Rua, que corre o risco de ser despejado da sede onde está instalado desde a década de 1980, na região central da cidade de São Bernardo do Campo.
Desde 2019, a prefeitura retirou a permissão de uso precário (sem estabilidade garantida, a depender da decisão do prefeito). Em outubro de 2020, o prefeito Orlando Morando (PSDB) entrou com ação de despejo, suspendida pela juíza Ida Inês Del Cid, que decidiu pela manutenção da sede até o fim da pandemia.
Em outubro deste ano, o projeto foi surpreendido com uma nova notificação de despejo, entregue por um funcionário público, com prazo de 15 dias para o despejo, mas até agora a desocupação não ocorreu.
A prefeitura alega problemas na documentação. A direção repudia ação do prefeito e argumenta que pedidos de negociação e diálogo foram solicitados junto ao Executivo, mas foram negados por e-mail.
Nessa terça-feira (26/10), chegou à direção do projeto nova decisão da magistrada, dando prazo de cinco dias para a desocupação do imóvel. O documento é datado de 22 de outubro de 2021.
Na sentença, a juíza adere à justificativa da Prefeitura, de que o projeto não apresentou “nenhuma informação sobre as atividades praticadas” no local, bem como atua com práticas de “ideologia política” nas ações junto às crianças atendidas.
A coordenadora do projeto, Néia Bueno, contesta as alegações.
“A justificativa da Prefeitura que foi assinalada na sentença desrespeita todo um trabalho realizado há quase quatro décadas em São Bernardo do Campo, que tem reconhecimento da população. Nunca omitimos nenhuma informação, sempre apresentamos com transparência as ações realizadas no espaço, inclusive nossos canais de comunicação também demonstram isso com fotos e vídeos das atividades. Em um momento tão delicado pelo qual estamos passando, de pandemia e mortes, a Prefeitura opta por despejar o projeto ao invés de assegurar e fortalecer programas para jovens e adolescentes”, avalia a socióloga.
“Estamos buscando contato com o prefeito. Temos feito inúmeros pedidos de negociação oficialmente e via parlamentares e nada avançou. Ao contrário, recebemos a negativa por e-mail para que possamos sentar e conversar sobre a manutenção do projeto, inclusive apresentando o resultado dos trabalhos que realizamos na cidade”, completa o coordenador da ONG, Markinhus Souza, que atua no projeto desde seu nascimento, em 1983.
Apoio amplo
Nesta semana, personalidades artísticas como Daniela Mercury e Lucélia Santos, além de parlamentares e lideranças políticas nacionais e internacionais se manifestaram nas redes sociais em apoio à manutenção do projeto que atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no ABC paulista.