Policial que participou da morte de jovem que segurava marmita é investigado por suspeita de estelionato

Transportadora denunciou pagamentos indevidos e superfaturados a empresa de segurança privada em que agente Gilmar Guilon Silva é sócio; Sombra Pronta Resposta não tem autorização da Polícia Federal para exercer atividade

Postagem de 19 de outubro de 2019 em que Gilmar Guilon Silva aparece representando a empresa com funcionários em evento | Foto: Reprodução/Instagram

Um dos policiais civis que participou da ação que resultou na morte do engraxate Gabriel Augusto Hoytil Araújo, que segurava uma marmita quando foi atingido por um tiro no rosto, segundo testemunhas, tem uma empresa de segurança privada sem autorização da Polícia Federal para exercer atividade e é investigado por suspeita de estelionato contra uma transportadora.

O agente policial Gilmar Guilon Silva, 40, está na corporação desde 2015 e é sócio da Sombra Serviço Ostensivo de Monitoramento na BR Armada Ltda., empresa aberta em 2016 que tem como atividade econômica vigilância e segurança privada. A sociedade é dividida com Paulo César de Moura, que é seu padrasto e detém a maior parte das cotas, apontado nos documentos da Junta Comercial de São Paulo como administrador. A reportagem consultou o CNPJ no site da Polícia Federal, que é órgão responsável pela autorização e fiscalização do setor de segurança privada, e a empresa não consta como registrada. Também consultamos o Diário Oficial da União, onde pedidos de autorização, autorizações ou suspensão delas são publicadas e a empresa não consta.

A Lei Orgânica da Polícia de São Paulo, em seu artigo 63, permite que policiais sejam acionistas de empresas, mas veda “exercer, mesmo nas horas de folga, qualquer outro emprego ou função, exceto atividade relativa ao ensino e à difusão cultural, quando compatível com a atividade policial”.

O portal da empresa, que se apresenta como Sombra Pronta Resposta, informa que a atuação é de âmbito nacional e que proporciona serviços de “assessoramento, preservação e acompanhamento do veículo e sua carga, proporcionando segurança, prevenindo roubos, furtos e apropriações indevidas, aumentando desta forma o melhor gerenciamento nas operações e maior lucro para os nossos clientes”. Na página do Instagram, uma postagem de 18 de outubro diz que tem mais de 1500 funcionários e mantém parceria com empresas de segurança “legalizadas” e com “agentes da área de segurança pública”.

Postagem de 18 de outubro de 2021 na qual a Sombra Pronta Resposta informa ter parceria com empresas legalizadas | Foto: reprodução/Instagram

Não há informação sobre endereço da sede ou de filiais. Tanto na Junta Comercial quanto na Receita Federal, a localização informada como sendo da empresa é de um edifício residencial na capital paulista. A reportagem ligou para o prédio cujo porteiro disse que não há empresas no local. O site informa que a empresa presta serviço para ao menos 16 transportadoras. Uma delas fez uma representação, em janeiro deste ano, ao 1º Distrito Policial da cidade de Itaquaquecetuba (Grande SP) para que a empresa, bem como Gilmar, sua ex-esposa e o padrasto Paulo Moura fossem investigados por suspeita de estelionato.

De acordo com os documentos e a petição da JSL S/A, que a Ponte teve acesso, a Sombra Pronta Resposta foi contratada para monitorar transporte de cargas, seja por rastreamento ou escolta armada, e que o serviço é acionado quando tem perda de sinal dos veículos ou alguma ocorrência “que torne a viagem divergente do plano de viagem”. A transportadora informa que recebeu denúncias anônimas sobre repasses indevidos e, em uma auditoria interna, identificou que um funcionário emitiu pagamentos superfaturados entre fevereiro e março de 2020, na qual a Sombra teria cobrado R$ 45.878,00 e recebeu R$ 59.853,20, e que havia notas sobre prestação de serviços que não teriam sido realizados.

Postagem de empresa, de 18 de novembro de 2019, aponta detenção de suspeito de roubo de carga | Foto: reprodução/Instagram

Além disso, as notas do serviço eram emitidas para serem depositadas em outro CNPJ, a Sombra Monitoramento Ltda., que foi aberta em 2018, tem o mesmo endereço e atividade da outra empresa e atualmente tem apenas Paulo César de Moura como sócio. Também não tem registro junto à Polícia Federal. Em troca de e-mails com funcionário da JSL, em que Gilmar é identificado como diretor da Sombra, ele justifica o uso desse CNPJ por causa de pagamento de impostos. Já no LinkedIn, ele informa ser consultor da empresa.

Reprodução de e-mail escrito por Gilmar à funcionário da transportadora sobre a emissão de notas fiscais

Nos autos do inquérito que a Ponte acessou, constam pedidos de intimação de funcionários da JSL e comunicação à Corregedoria da Polícia Civil, além de um pedido de dilação do prazo das investigações por 60 dias do qual o Ministério Público se manifestou de forma favorável em agosto.

Quem atirou em Gabriel?

Foram registrados dois boletins de ocorrência: um na Divisão de Homicídios do DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa) para apurar a morte de Gabriel e outro no 96º DP (Monções) que descrevia sobre a ação dos policiais dessa delegacia sobre “repressão a tráfico de drogas”.

Os agentes Gilmar Guilon Silva e Sergio Augusto Tolomei Teixeira de Monteiro Palmeira, 34, aparecem no boletim de ocorrência do DHPP como autores e vítimas no caso da morte do engraxate. O documento não especifica quem atirou no jovem no mês passado, já que os dois não prestaram depoimento, com base no artigo 14-A do Código de Processo Penal, que prevê que agentes públicos que se envolverem em mortes podem constituir um advogado ou defensor público em 48h antes de se manifestarem. Esse foi um dos mecanismos criados pela Lei Anticrime do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro e sancionada em 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Porém, o delegado Fernando Moyses Elian, responsável pela investigação do homicídio, emitiu pedido de exame de corpo de delito apenas para Gilmar, “considerando o depoimento do condutor” – no caso, o policial civil Maurício da Costa Pereira, que se apresenta como chefe no 96º DP.

No documento do 96º DP, Gilmar é o condutor, ou seja, o que relatou a ocorrência, e os demais são testemunhas: Thiago de Almeida Fonseca Albuquerque, Sergio Augusto Tolomei Teixeira de Monteiro Palmeira e André Ricardo Hernandes. Segundo os policiais, Gabriel estaria traficando e carregava 499 porções de entorpecentes, entre maconha, cocaína e crack, sem especificar o peso total das drogas encontradas. Os policiais também afirmam que ele estaria com uma arma de brinquedo. De acordo com o BO, policiais “avistaram um indivíduo (vítima) em atividade de mercância de drogas. Em seguida, os policiais tentaram abordá-lo, ocasião em que esse reagiu, exibindo uma pistola preta, sendo efetuado disparos pelo polícias, bem como sendo ouvidos outros disparos oriundos da comunidade. No local foram localizados entorpecentes e um simulacro de arma de fogo”. A arma de brinquedo, assim como as armas dos policiais, foi apreendida pelo DHPP, responsável pela investigação do homicídio.

Um jovem de 21 anos foi detido na ocasião e, segundo o documento, teria dito que o engraxate teria envolvimento com o tráfico, o que testemunhas ouvidas pela Ponte, na ocasião, negaram. Segundo os moradores, Gabriel não vendia drogas e estava apenas com seu almoço nas mãos. “Entraram dois policiais disfarçados no beco gritando ‘perdeu!’, só que o pessoal do tráfico não estava nesse local. Só tinha gente que não tinha nada a ver e correram assustados. O Gabriel estava com um marmitex na mão e o policial atirou na cara dele. Nós escutamos um policial falar para o outro: ‘não era para você atirar nele’”, relatou um morador que não quis ser identificado no dia.

No último domingo (31/10), moradores, familiares e movimentos sociais fizeram um protesto e criaram um memorial na Comunidade do Piolho em homenagem ao rapaz de 19 anos, uma semana depois de um enterro cheio de pessoas indignadas.

O que diz a polícia

A Ponte procurou o delegado Fernando Moyses Elian, do DHPP sobre as investigações, mas ele disse que não poderia fazer esclarecimentos ou dar informações sem passar pela assessoria da Secretaria de Segurança Pública.

A reportagem entrou em contato com a pasta sobre o caso bem como sobre os policiais envolvidos e o inquérito contra Gilmar e sua empresa. A In Press, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:

O caso de estelionato é investigado pela Delegacia de Itaquaquecetuba, que instaurou inquérito policial para investigação dos fatos. A Corregedoria da Polícia Civil foi comunicada, tendo a 11ª Corregedoria Auxiliar instaurado apuração preliminar, que está em andamento.

Em relação à ação policial ocorrida em 20 de outubro, o caso é investigado por meio de inquérito policial instaurado pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). A equipe de investigação ouviu os policiais civis envolvidos na ocorrência e aguarda os laudos periciais que serão entregues à autoridade responsável, assim que finalizados. A Corregedoria da Polícia Civil também apura todas as circunstâncias da ocorrência e, se constatadas irregularidades, medidas cabíveis serão tomadas.

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Também tentamos, por ligação e mensagem, contato com a empresa Sombra Pronta Resposta e Gilmar, mas não tivemos resposta. Não conseguimos localizar Paulo César de Moura.

A Ponte procurou a assessoria da Polícia Federal, que confirmou recebimento de e-mail, mas não respondeu aos questionamentos sobre as empresas.

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