Ao ver o homem negro entrar na mata com uma criança branca, moradores de Barbacena (MG) ligaram para a PM, que foi até o local, espancou o policial e atirou no seu cachorro. Apesar da violência e do racismo, Justiça Militar processou apenas a vítima, por crimes como desacato e resistência
O racismo transformou em pesadelo o que deveria ter sido um passeio num domingo de sol, por uma trilha pelas matas de Barbacena (MG), e que terminaria com o policial militar Anderson César da Silva, 32 anos, assando marshmallows, como nos filmes, ao lado da filha de quatro anos e do cachorro da família.
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Ao ver o homem negro caminhando na trilha com uma criança branca, moradores do bairro de Fátima ligaram para a polícia e denunciaram o que, na cabeça deles, só podia ser um estupro. Um trio de PMs foi até o local e, mesmo após Anderson explicar que estava fazendo um piquenique com a filha e mostrar sua carteira funcional de policial militar, os três exigiram que ele os acompanhasse para fora da mata e ainda dispararam tiros de bala de borracha no cachorro da família, que havia avançado contra os policiais.
Vídeos postados naquele dia nas redes sociais mostram o que parecem ser moradores do bairro ouvindo os disparos e comemorando que a polícia estava “matando um estuprador”. Um deles pede para a PM atirar mais e celebra: “Tem que matar mesmo, até que enfim eu vi Barbacena fazer alguma coisa”.
Passados quase dez meses, a filha de Anderson ainda não se recuperou dos traumas daquele domingo e nenhum dos PMs foi denunciado, nem pelo racismo, nem pela violência. A única pessoa processada é o próprio policial negro.
A Justiça Militar aceitou denúncia do promotor Fabiano Ferreira Furlan, em junho, que acusa Anderson dos crimes de desobediência, desacato a superior, ameaça, resistência mediante ameaça ou violência e lesão corporal leve. Para esses delitos, o Código Penal Militar prevê penas de três meses a dois anos.
Pai ferido, cão baleado, criança traumatizada
Naquele 14 de janeiro, Anderson havia resolvido fazer um piquenique na mata com a filha enquanto a esposa, que é professora, ficava em casa fazendo tarefas da escola onde trabalha. Ao final da trilha, o PM negro estava acendendo uma fogueira quando foi abordado por três colegas: o sargento Leonardo José do Carmo e os cabos Daniel da Silva Queiroz e Adriel Rodrigues Dantas.
Segundo Anderson, a abordagem foi violenta e racista. “Os policiais apareceram do nada e gritando. Eu peguei a minha filha no colo, falei que era militar e pai, para me resguardar, pois eles não abaixavam as armas. Minha filha estava sorridente comigo, catando folhas, antes deles chegarem. Fizeram um cerco em volta de nós, e eu como pai só queria proteger minha filha. Trataram minha filha igual gado, sem nenhuma noção do perigo”, conta. “Fui chamado de preto safado, tive a minha filha arrancada dos meus braços e os PMs me acusaram de estupro. Durante a abordagem, me enforcaram. Eu fiquei com medo, porque sei como eles agem.”
O pai conta que todo o procedimento de abordagem foi irregular. Os PMs não deram nenhuma ordem, apenas gritaram que eram polícia e começaram a falar no rádio, apontando a arma. Ainda segundo Anderson, os policiais chegaram a disparar 11 vezes contra seu cachorro, que latia contra os PMs na tentativa de defender a família. Segundo ele, o cachorro foi atingido por quatro tiros.
Anderson diz que um dos policiais, durante os ataques racistas, mandava ele olhar a própria cor e a cor da criança. Ele diz que tentou pegar o celular para gravar as ofensas racistas, mas recebeu um golpe de mata-leão (enforcamento). “Eu só queria ficar com minha filha e protegê-la nesse momento, que estava sendo enforcado por muitos PMs. Parecia uma tonelada em cima do meu coração. Eu queria respirar e não conseguia.”
O policial ficou preso por três semanas. A criança passou por exames médicos que comprovaram que ela não sofreu nenhum tipo de abuso sexual. Além da violência física e terror psicológico, Anderson afirma que sofreu nos dias posteriores porque a imprensa local noticiou o caso apontando-o como estuprador. “O que os militares fizeram atrapalhou nossas relações. Na verdade, invadiram nossa privacidade. Eu e minha esposa sempre fomos boas pessoas e ela sabe o pai que sou, e eu sei a mãe que ela é. Nossa filha é muito sortuda de ter nós como pais”, diz.
Na semana seguinte ao caso, a menina passou a ter acompanhamento psicológico. A família mostrou à reportagem a um relatório, datado de julho, em que a psicóloga relata que, após ver o pai sofrer a violência, a criança “passou a apresentar alguns comportamentos mais agressivos, ficou mais sensível, passou a apresentar enurese noturna [urinar na cama], e choro fácil”, melhorando apenas após ser medicada.
“Nos seus relatos, pude perceber que a menor é muito apegada ao pai, tendo ele como um ótimo relacionamento. Nos dias que está de folga, é ele quem traz na consulta psicológica. Nesses dias, posso constatar o bom convívio entre eles. Ela sente muita falta dele, pois ele tem passado a semana toda em Belo Horizonte, local de seu trabalho”, escreveu a psicóloga.
O que diz a polícia
Na versão dos PMs Leonardo, Daniel e Adriel, que consta da denúncia oferecida pelo Ministério Público, Anderson se recusou a ser revistado e se identificou jogando a carteira funcional no chão. Os PMs disseram que ele estava diante de dois superiores e exigiram que “ele pegasse a sua filha e os acompanhasse até a saída daquela mata”.
Anderson teria, então, xingado e ameaçado os colegas, dizendo “Assim que eu sair eu mato vocês”. Ao receber voz de prisão, teria resistido com socos e chutes, “tendo sido necessário o uso moderado de força por parte destes militares” para algemá-lo. Os PMs disseram, ainda, que foram atacados pelo cão da família e por isso atiraram no animal, que se afastou “depois de ter sido atingido por um dos disparos”.
A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais sobre a ocorrência, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.