Motorista da Uber xinga casal trans e ameaça bater em homem grávido

Como o preconceito dificulta a gravidez de um homem trans: após ser discriminado por serviços médicos em Sergipe, Lourenzo Gabriel foi atacado por motorista em São Paulo

Lourenzo e Isis são músicos: ela adiou o lançamento de um disco para acompanhar a gravides do marido | Foto: Reprodução / Twitter

Quando Apolo chegar ao mundo em meados do próximo mês, ouvirá dos seus pais, o casal transcentrado (configuração conjugal com duas pessoas trans, que tanto pode ser heterossexual ou homossexual) de músicos Lourenzo Gabriel, 23 anos, e Isis Broken, 27, várias histórias sobre o período em que estava na barriga do pai. Dentre demonstrações de carinho, afeto e acolhimento por parte de amigos e familiares, também estarão episódios de discriminação, transfobia e falta de respeito em um mundo que, apesar dos avanços, ainda não enxerga com bons olhos o seu núcleo familiar.

Em julho deste ano, época em que Apolo completava quatro meses no útero de Lourenzo, o casal conta que foi discriminado em unidades de saúde públicas e privadas em Aracaju (SE), onde vivia até então. Os dois se mudaram para São Paulo e, na noite desta sexta-feira (12/11), um mês antes do esperado parto do bebê, sofreram um novo ataque transfóbico, dessa vez praticado por um motorista do aplicativo de transporte Uber, que xingou e ameaçou o casal.

Após uma consulta de pré-natal na UBS (Unidade Básica de Saúde) Santa Cecília, região central da cidade de São Paulo, Lourenzo e Isis solicitaram um carro via aplicativo para voltar para sua casa, em Carapicuíba (Grande SP). Até então felizes com a expectativa pela chegada do filho e os cuidados que uma gestação na sua 35ª semana merecem, Lourenzo e Isis viram o dia se encerrar com tristeza, revolta e medo.

Lourenzo Gabriel e Isis Broken engravidaram sem planejar, mas adoraram a novidade | Foto: Reprodução / Twitter

Desde que entraram no veículo, Isis e Lourenzo perceberam que o motorista da Uber, identificado apenas como Silvio, não aparentava estar confortável com a presença dos dois. Ao perceber que era o pai quem estava gestando a criança, passou a atacá-los. “Passamos a maior parte da corrida calados porque percebemos que ele estava estranho, reclamando que o destino era longe”, conta Isis. “Ele perguntou quem estava grávida e eu respondi que era o Lourenzo que estava com o bebê na barriga. A partir desse momento ele ficou muito alterado, falando alto que era burrice dizer que um homem pode engravidar”, completa.

Perto do destino final, a discussão ficou mais acalorada e por pouco não terminou em violência física. “O Lourenzo se exaltou também, eu tentei acalmá-lo. Houve troca de xingamentos. O motorista ficou transtornado ameaçando nos agredir. Eu questionei se ele realmente iria bater numa pessoa gestante. Quando Lourenzo falou que o padrasto era policial, o motorista disse: ‘agora vocês vão ver o que eu vou fazer com vocês’”, explica Isis.

Segundo ela, o marido ficou tão preocupado que, mesmo grávido, chegou a tentar descer do veículo ainda em movimento. Quando desembarcaram, ainda tiveram que sair correndo pela rua até chegar a sua casa, ouvindo os xingamentos do motorista. “Lourenzo chegou em casa passando mal, chorando bastante e com muitas dores na barriga. A gente pensou que tinha acontecido alguma coisa com o bebê. Foi muito desesperador”, relembra Isis.

O pai de Apolo postou em suas redes sociais um vídeo que mostra os momentos de aflição que passaram dentro do carro, a chegada em casa e as queixas das dores, já em cima de uma cama, e escreveu um texto relatando o ocorrido. 

“Eu estou com 35 semanas de gestação, tentei pular de um carro, poderia ter acontecido algo muito pior. Fora o esforço que tive que fazer pra correr, descer uma ladeira enorme e agora estou aqui nem conseguindo andar de tanta dor por causa do trauma e do esforço que fiz”, escreveu Lourenzo.

O casal conta que pretende fazer um boletim de ocorrência sobre o que passou, na Polícia Civil, nesta terça feira (16/11). O bebê passa bem.

O que diz a Uber

Em nota, a Uber informou que a conta do motorista foi desativada assim que empresa tomou conhecimento do ocorrido e que está à disposição das autoridades para colaborar com as investigações. “A Uber defende o respeito à diversidade e reafirma o seu compromisso de promover o respeito, igualdade e justiça para todas as pessoas LGBTQIA+”, afirma a empresa na nota.

Segundo imagens do aplicativo enviadas pelo casal, o motorista Silvio atuava na empresa há 5 anos e meio, tinha alta pontuação (4.93 de 5) e recebia dos passageiros elogios como “muito simpático e excelente motorista”. A Ponte não conseguiu contato com ele.

Transfobia médica

Este não foi o primeiro episódio de discriminação da gestação de Apolo. O casal estava morando em Aracaju quando Lourenzo ficou grávido. Na capital de Sergipe, ao realizar consulta, agendamento de pré-natal e exames, ele não teve sua identidade de gênero respeitada em unidades de saúde públicas e privadas, sendo tratado por profissionais de saúde no feminino.

Na UBS Oswaldo de Souza, em Aracaju, de administração municipal, Lourenzo teve problemas para ser atendido mesmo apresentando o RG e o cartão nacional de saúde do SUS retificados com o nome social. “A gente ficou cerca de seis horas só para que na recepção corrigissem o nome porque ele entregou os documentos, mas diziam que no sistema do município não batia”, afirmou Lourenzo a Ponte em junho deste ano.

O casal passou pelos mesmos problemas em pelo menos mais três estabelecimentos de saúde de Sergipe. Esse foi um dos motivos que fizeram com que eles deixassem o Nordeste no final de setembro para ter a criança. “Lourenzo só começou a fazer o pré-natal no sétimo mês de gravidez, quando já estávamos aqui em São Paulo”, conta Isis. A mãe de Apolo diz que o tratamento que o filho vem recebendo na capital paulista é bem melhor, mas a questão do preconceito com pessoas trans no dia a dia não tem muita diferença em relação à capital sergipana.

Vai virar filme

Lourenzo estava morando no Guarujá, litoral paulista, quando conheceu Isis pela internet. Ambos são artistas e o relacionamento começou à distância. No início de 2020 ele foi passar um período com a namorada em Aracaju. Com a pandemia do coronavírus, resolveram passar a quarentena juntos.

Postagem de Lourenzo, o Aqualien: “admirem a beleza de um homem gestante” | Reprodução / Twitter

“Nós achávamos que, por conta do tratamento de harmonização que Lourenzo fez, à base de muita testosterona, ele estava infértil. Foi uma grande surpresa para nós essa gravidez”, revela Isis, que teve que adiar o lançamento de um disco por conta da gravidez do marido. Ela também pretende começar um tratamento com hormônios femininos e lactação induzida para que possam amamentar Apolo assim que ele nascer. 

Apoie a Ponte!

A trajetória da gravidez do casal está sendo acompanhada por um equipe de cinema, que pretende lançar um documentário contando a história da chegada de Apolo, nome escolhido pelo casal em referência ao deus da mitologia grega que representa o sol e também é a figura divina das artes, poesia, música e cura.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas