Gabriel Soldo, 19, foi baleado por escrivão na zona leste da capital na segunda-feira (3); familiar contesta versão de troca de tiros já que única arma apreendida foi a do policial
“Nunca pensei que enterraria meu caçula”. O desabafo triste é de Ligia*, 24, irmã de Gabriel Soldo dos Santos Silva, 19, morto por um policial civil na região de Cidade Tiradentes, na zona leste da cidade de São Paulo, na segunda-feira (3/1).
Com medo de represálias, ela pediu para não se identificar, mas conta que está entalada na garganta a revolta de ter visto a forma como o rapaz foi retratado em redes sociais. “Chamaram meu irmão de lixo, de bandidinho, de que ele merecia morrer, foi uma covardia o que fizeram com ele”, lamenta. “Ele era um menino bom, eu era muito apegada, tudo o que você precisasse dele, ele ajudava, meu irmão não era esse lixo que estão falando”.
Gabriel era o mais novo de sete irmãos. “Ele estava muito feliz porque viajamos para a praia no final de ano, ele estava trabalhando com meu marido numa oficina de moto, o que ele devia para a justiça, ele já tinha pagado”, diz Ligia.
Naquela segunda-feira, ela afirma que a mãe, que está muito abalada, foi a última a vê-lo. “Ela estava estendendo roupa no varal e ele disse que ia sair”, afirma. “Horas depois eu recebi a ligação de que ele foi baleado, eu fui a primeira a chegar no local, meu irmão estava no chão”, diz com a voz embargada. “Eu peguei nele, ele estava frio, com os olhos revirados para o céu, já estava morto”.
“Ele foi morto com um tiro nas costas quando estava correndo, sem reagir, não tinha arma com ele, como que teve troca de tiro?”, contesta indignada a versão policial. “Se meu irmão fez alguma coisa, ele tinha que responder na Justiça, não no caixão”.
No boletim de ocorrência, o caso é narrado pelos policiais civis Celso dos Santos e Carlos Eduardo Capeto, mas não fica claro se ambos participaram ou não da ação. Informam que, por volta das 12h25, souberam que dois indivíduos armados haviam roubado pertences e um carro Gol branco de uma pessoa na Rua Bernardino Luin e as equipes do 44º DP (Guaianases) passaram a fazer diligências para encontrar os assaltantes.
Diz o documento que a viatura dirigida pelo escrivão William Cervantes dos Santos se deparou com o veículo roubado na altura do número 59 da Rua dos Pedreiros e que ele “acionou os sinais luminosos e a sirene, pedindo para os ocupantes parassem”. No entanto, a dupla teria fugido e, em determinado momento, “estava passando um ônibus” e, “como a rua é estreita”, o Gol não teria conseguido passar e os dois desceram do carro correndo. Um deles teria apontado um revólver para Cervantes, que diz ter efetuado três disparos em direção a eles. Gabriel foi atingido, mas o registro não detalha em que região do corpo nem por quantos tiros. Sobre ele, é apenas descrito que tinha passagens anteriores por roubo e furto. O outro suspeito teria fugido. Com Gabriel, foram apreendidos seu celular e um boné.
A vítima do roubo, um funcionário de uma empresa de tecnologia, disse que os assaltantes chegaram dizendo “perdeu, perdeu, passa o celular e a chave do carro” e um deles ainda teria pressionado um revólver preto contra seu peito. Ele reconheceu Gabriel por fotografia como o que pressionou a arma com violência e que o outro ficava simulando ter uma arma por baixo da camiseta. O boletim de ocorrência não detalha as características físicas dos suspeitos.
A única arma que consta como apreendida no registro é a do escrivão, uma pistola .40, com 14 cartuchos íntegros. O Gol branco foi devolvido. A Secretaria Municipal de Saúde informou que o Samu fez o atendimento a Gabriel e o levou ao Hospital Municipal de Cidade Tiradentes.
A Lei 13.060/2014 considera que não é legítimo o uso de arma de fogo “contra a pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros”.
Ligia afirma que o irmão era ameaçado. “Eu já presenciei policiais enquadrando ele, enquadrando a gente por nada, chamando minha mãe de vagabunda e que a qualquer hora ia pegar ele”, denuncia. “A gente não conseguiu fazer denúncias por medo porque eles sabem onde a gente mora”, afirma. Ela espera que justiça seja feita. “Existem policiais bons, mas também existem policiais ruins”.
O que diz a polícia
A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública sobre o caso. A In Press, assessoria terceirizada da pasta, encaminhou a seguinte nota:
O caso foi registrado pelo 44° DP e encaminhado à 2a Delegacia de Polícia de Repressão a Homicídios, do Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP). As investigações prosseguem pela unidade sob sigilo.
*O nome foi trocado a pedido da entrevistada por temer represálias.
Reportagem atualizada às 10h20, de 10/1/2022, para incluir posicionamento da SSP.