É visível para todos a violência das águas, menos o silêncio opressor das margens do rio
A vida social exige regramento pela limitação de direitos individuais em benefício da coletividade e para isso o “Estado” cria seu braço armado que tem como missões principais SERVIR e PROTEGER. São instituições que se arrastam pelos séculos trabalhando e tendo como missão principal atender a todos, sobretudo os menos abastados. Porém, é desse ambiente de menos favorecidos que a instituição policial recruta seus quadros e onde residem aqueles a quem, como regra, a polícia combate ou reprime.
Embora a Constituição Federal garanta que todos são iguais perante a lei, esses trabalhadores não têm direito à sindicalização e à greve. Sua liberdade política e de pensamento também é limitada pela Carta Magna que ainda lhes tolhe direitos trabalhistas, concedendo-lhes, de um total de 34, apenas 3 direitos. Diante desse “espírito de renúncia”, esses trabalhadores cerram fileira por vocação. O sonho de sucesso profissional os move rumo à carreira policial. Porém, não é apenas idealismo que encanta esses homens e mulheres. Eles sonham com salário digno para que possam viver a plenitude da lealdade e suprir suas necessidades básicas e de suas famílias.
Guiados pelo lema LEALDADE E CONSTÂNCIA, esses profissionais têm seus passos calcados nos pilares da HIERARQUIA e DISCIPLINA que fundeiam rigoroso sistema de controle interno, cujo expoente é o Regulamento Disciplinar. Um código usado, como regra, para dissuadir condutas dissonantes do proceder institucional e que, por vezes, serve como base para inibir o exercício de direito pleno.
Governantes inescrupulosos se têm valido desse poder regimental e da aparente obediência cega para praticarem atos desrespeitosos em relação à dignidade de tais trabalhadores e trabalhadoras. Esses governantes ineptos desconhecem a fluência da LEALDADE, caracterizada como via de duas mãos e resumida pela palavra RECIPROCIDADE.
Nesse ponto, cria-se o problema de gerência: como é possível proteger sem ter proteção? Como é possível ser leal diante de escandalosa deslealdade? A esses profissionais não foi dado o direito do embate político, apenas o trabalho. Porém, pra tudo há um limite. Inclusive para indivíduos que doam suas vidas por um parco salário que lhes permite apenas comprar alimentos, aproximando-os de uma condição análoga à de escravos.
Há tempos, venho alertando o Comandante-em-Chefe da Polícia Militar de São Paulo, governador João Agripino Doria (PSDB), do risco à segurança nacional que sua forma alheia e inconsequente na condução da segurança pública pode causar. Toda vez que um animal tem a sua existência ameaçada, o instinto de sobrevivência toma o lugar da razão. Com o ser humano não é diferente.
A cada dia é possível sentir a desmotivação dos trabalhadores da segurança pública desiludidos pelas juras de “pés juntos” feitas pelo mandatário, em campanha ou no exercício do mandato, sem o menor compromisso em cumpri-las. Já vai longe a promessa de transformar a Polícia de São Paulo no segundo melhor salário do Brasil que permanece estagnada como segundo pior.
Não bastasse isso, vai criando “agrados” ou vantagens temporárias que excluem inativos e pensionistas ao arrepio da lei.
“Tudo posso naquele que me fortalece”, afinal, a qualquer ato de indisciplina, o sistema punitivo se erguerá contra os recalcitrantes. E nesse escoramento, administradores inconsequentes se esbaldam.
Tal qual a alegoria da enxurrada acima, esses trabalhadores seguem sua sina como cordeiros a serem imolados, passivos, espremidos que estão pelo silêncio obsequioso que lhes brinda a norma coatora. Em meio a tantos, há os que aceitam a submissão, há os que se rebelam e enveredam para a indisciplina e há alguns que se rebelam em silêncio e explodem em violência contra si, aumentando o número de suicídios na PM de São Paulo.
A desmotivação, em tempo de redes sociais, se transforma em descontentamento contagioso que se espraia pelas camadas mais subalternas desses trabalhadores. Essas bases começam a ser insufladas por ex-policiais demitidos ou expulsos que veem a possibilidade de revanche na sonhada luta de classes entre Praças e Oficiais. Nessa empreitada, buscam o esboroamento dos pilares institucionais de hierarquia e disciplina.
A inépcia governamental não traz como consequência apenas a desmotivação. A ausência de liderança abriu espaço para o risco maior à disciplina nos quartéis: o BOLSONARISMO que, semelhante a sereias, tem encantado significativa parcela do efetivo na ilusão de um grande projeto político. Todavia, esse “pensar”, na sua consecução, se mostra um projeto vazio e danoso para os que o seguem, um mergulho sem volta em um rio de intolerância e de ignorância, cujo canoeiro é um moderno Flautista de Hamelin, travestido de mito.
Já vimos exemplos de descontentamentos nas Polícias: São Paulo em 1988 com amotinamento de policiais militares e, recentemente, no Ceará e na Paraíba. Outros mais hão de vir. Contudo, São Paulo não pode mais sucumbir em benefício de uma ambição política porque aqui repousa a Polícia referência das outras Polícias brasileiras.
Por fim, vale lembrar que quem desconhece o passado está condenado a repetir erros.
Outro lado
Por meio de nota, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo respondeu ao artigo dizendo:
O Governo de São Paulo finaliza os estudos técnicos e financeiros para definir o percentual de aumento salarial para as forças de segurança. Em breve, o Projeto de Lei Complementar com essa finalidade será encaminhado à Assembleia Legislativa (Alesp).Até o último dia 31 de dezembro, por força da LC 173/2020, sancionada pelo Presidente da República, os aumentos aos servidores públicos estavam proibidos. Apesar disso, São Paulo pagou às forças de segurança mais de R$ 1 bilhão em bônus por resultados desde 2019. A atual gestão também já contratou 10,7 mil novos policiais, com 4,2 mil em cursos de formação e outras 5,6 mil vagas previstas em concursos já iniciados.Além disso, o Governo de São Paulo tem investido na capacitação dos policiais, estimulando e custeando cursos de especialização em outros estados e fora do país, e em tecnologia, infraestrutura e equipamentos, novas armas, viaturas blindadas, para as forças de segurança, para dar mais dignidade aos profissionais.
* Paulo José Ribeiro da Silva é tenente coronel da reserva da PMESP e mestre em Ciências Policiais de Ordem e Segurança Pública.
Artigo atualizado às 19h35 do dia 26/1/2022 para incluir nota da SSP