Chacina da Gamboa: mãe de um dos jovens mortos conta como agiu a PM da Bahia, do governador Rui Costa (PT)

“Eu tentei, pedi, implorei, mas apontaram a arma para minha cabeça. Tive medo. Cheguei a ouvir meu filho dizer: ‘Socorro, vão me matar”, conta Silvana dos Santos. Vítimas serão homenageadas em ato ecumênico nesta segunda-feira (7/3)

A dona de casa Silvana dos Santos, 48 anos, pariu oito filhos e, o segundo deles, tentou em vão livrar da morte. Alexandre dos Santos, 20, gritou por socorro momentos antes de ser assassinado a tiros pela Polícia Militar da Bahia, na comunidade da Gamboa, no Centro de Salvador. O mesmo fim tiveram os amigos Cleverson Guimarães Cruz, 22, e Patrick Souza Sapucaia,16, na madrugada de terça-feira, 1º de março. Os três foram mortos em um imóvel abandonado a metros de suas casas, na Rua Barbosa Leal.

“Eu tentei, pedi, implorei, mas apontaram a arma para minha cabeça. Tive medo. Cheguei a ouvir meu filho dizer: ‘Socorro, vão me matar”, conta Silvana à Ponte. Ela não recorda a quantidade de policiais que participaram ativamente do que chama de chacina, mas lembra o tom intimidador com que lhes ordenaram a deixar o local, por volta das 2h30.

Mãe solo, foi em busca de ajuda. “Comecei a gritar”, diz. Chamou a madrinha do filho e uma outra vizinha, mas, no fundo sabia, não veria o jovem novamente. “Eu poderia ser mais uma vítima”, relata, ao recordar os momentos que antecederam a madrugada que descreve como a pior de sua vida.

“Não houve troca de tiros. Que troca de tiros é essa que eles lavam o chão? Que eles [policiais] não ficam feridos? Que tiram os corpos do lugar?”, indaga Silvana.

A Polícia Militar da Bahia, comandada pelo governador Rui Costa (PT), não diz quantos militares atuaram na ação – nem se havia uma operação que justificasse a entrada à espreita –, apenas que nenhum deles foi afastado, que um inquérito policial militar foi instaurado “a fim de apurar as circunstâncias dos fatos”, e que os armamentos utilizados foram encaminhados à perícia, “como de praxe”.

O Ministério Público Estadual também acompanha o caso, assim como a Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia. Entidades que atuam em defesa dos direitos humanos e a militância negra organizada cobram que o Estado explique o porquê dos mortos na Gamboa. Um ato ecumênico organizado pela associação dos moradores da comunidade vai homenagear os jovens nesta segunda-feira (07/03), ao meio-dia.

Os três jovens da Gamboa foram enterrados na quarta-feira (02/07), no Cemitério Campo Santo, no bairro da Federação – com parte dos caixões e velórios custeados pela administração do Museu de Arte Moderna (MAM), vizinho à comunidade –, mas continuam na memória das 400 famílias que se estabeleceram na região. 

A comunidade segue em luto e o comércio só voltou a funcionar no domingo (06/03). A  Ponte esteve, na sexta-feira (04/03), a poucos metros do local onde os rapazes foram mortos e pôde observar que o clima de comoção prevalece nos rostos que circulam nas descidas e subidas dos becos da Gamboa, às margens dos prédios de luxo que também despertaram em meio aos tiros.

Silvana dos Santos, mãe de um dos três jovens assassinados pela PM da Bahia na Gamboa, em Salvador (BA) | Foto: Tailane Muniz/Ponte Jornalismo

O despertar dos prédios

À beira dos edifícios do metro quadrado mais caro de Salvador, o Corredor da Vitória, a Gamboa parecia tranquila naquela madrugada. Na Avenida Contorno, acesso de saída, nenhum barulho além do mar à frente, nem mesmo de som – havia acabado de acontecer um evento privado de carnaval ao lado, no MAM, e, na comunidade, as pessoas se divertiam entre elas. Às 2h, contudo, o silêncio foi interrompido pelos primeiros estampidos. “Parecia que estavam jogando bombas no meu telhado”, relata a comerciante Helena Maria, 50, que chegou a esconder as crianças nos fundos da casa.

Silvana acordou neste momento e deu falta do filho. Alcançou o celular e, por meio de uma mensagem deixada pela vizinha, soube que a PM havia levado Alexandre.

“Ela disse: ‘corre, Silvana, que a polícia levou seu filho’ E foi o momento em que chamei as meninas [madrinha e vizinha], mas não conseguimos”. Os moradores dos apartamentos da Vitória, àquela altura já acordados, acendiam as luzes na proporção em que os barulhos dos tiros aumentavam.

À reportagem, uma testemunha diz que, não fosse o despertar dos ricos, mais gente teria morrido. “A salvação foi que eles notaram que as pessoas dos prédios também se assustaram. Todo mundo começou a aparecer, porque teria sido pior, com certeza”, relata a mulher, ao lado de Silvana.

Silvana Santos, mãe de Alexandre, em protesto pela morte do filho | Imagem: Felipe Iruatã

Hipertensa, a dona de casa lembra o quanto precisou, a todo momento, conter o desespero. “Outra mãe se ajoelhou aos pés deles e também não conseguiu”, lamenta ela, em referência à do mais jovem entre os mortos, Patrick Sapucaia  – que, ao que parece uma curiosa ironia, era filho de um sargento aposentado da mesma Polícia Militar, e membro de uma das famílias pioneiras da Gamboa, presentes na comunidade desde o primeiro acesso, na década de 60.

Lá, os PMs não retornaram, comenta Silvana, ao dar mais detalhes do pós-ataque. “Meu filho já estava morto quando pegaram o corpo e jogaram na viatura. Os três corpos”. Mas foi no  Hospital Geral do Estado (HGE), onde Alexandre, Cleverson e Patrick deram entrada, que ela recebeu a confirmação. “A assistente social me disse: ‘Eles já chegaram mortos’”. Oficialmente, não foram divulgados detalhes quanto aos ferimentos dos jovens, mas a família e a comunidade garantem que eles foram atravessados por “muitos, muitos tiros”.

Silvana descreve o filho como um “menino querido por todos, ligado à família” e fã do rapper pernambucano Matuê. Diz com pesar o quanto fará falta para a sobrinha, uma menina de 3 anos, que o tratava como pai, e todos os irmãos que ficam órfãos de “Matuê”, como o rapaz era chamado pelos amigos, em razão do fanatismo pelo músico.

Passados poucos dias desde aquela madrugada, a versão da Polícia Militar – de que os três jovens portavam duas pistolas, um revólver calibre 38, além de pedras de crack, cocaína embalada, uma balança de precisão e celulares – não tem vez na Gamboa. As mães negam veementemente a relação dos filhos com o material mas, mais que isso, consideram: ainda que houvesse envolvimento das vítimas com o tráfico de drogas, por uma questão de direito humano, eles deveriam ter sido presos, jamais mortos.

Outro lado

A Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) informou por meio de nota que “foi instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM) a fim de apurar as circunstâncias do caso. O fato se encontra em estágio preliminar de apuração pela Corregedoria da PM, conforme legislação. Os policiais militares não foram afastados das atividades e os armamentos utilizados nas ocorrências que resultam em morte são de praxe encaminhados para perícia“.

Reportagem atualizada às 20h04 do dia 7/3/2022 para incluir posicionamento da SSP-BA

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas