Ação pede que Estado não imponha cortes compulsórios; durante inspeções órgão recebeu denúncias de que mulheres trans tiveram o cabelo comprido raspado em prisões masculinas e detentos ficaram em cela solitária após recusa
É com a comparação ao campo de extermínio de Auschwitz, durante a Alemanha nazista, que a Defensoria Pública do Estado de São de Paulo cita diversas denúncias de detentos de unidades prisionais ao impetrar, em 18 de maio, uma ação civil pública solicitando que governo paulista proíba cortes compulsórios de cabelo e barba e de punir os que se recusem a seguir a norma.
O Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) do órgão elencou 28 inspeções que realizou, entre 2019 e 2021, e três ofícios em que presos e presas denunciaram a prática. Segundo os documentos juntados, que a Ponte teve acesso, uma mulher trans desenvolveu depressão após ter tido o cabelo comprido cortado quando ingressou no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Itatinga, que é masculino. Outra, que estava Penitenciária Masculina de Serra Azul II, pediu transferência para uma feminina em uma das inspeções da Defensoria e revelou que não lhe permitiam ficar com cabelo grande, usar pinça e nem usar roupas femininas.
Mulheres cisgêneras (que se identificam com o gênero de nascimento) também se queixaram de que no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Feminino do Butantã as presas não podem pintar os seus cabelos e são proibidas de raspá-los e, caso retornem da saída temporária com o cabelo de outra cor, sofrem falta disciplinar.
Os homens também relataram as imposições e sanções que se diferenciavam em cada local, indo da restrição de acesso a alimentação e itens básicos de higiene a faltas disciplinares, como o isolamento. Em uma das inspeções realizadas, em 2019, o Nesc teve contato com um detento que estava no setor disciplinar, isolado há 10 dias, na Penitenciária de Tremembé II. No procedimento disciplinar, a direção da unidade disse que ele apresentava “quadro aparente de depressão”, houve atendimento de psiquiatra e houve novo pedido para ele cortar o cabelo e a barba. Com a negativa, alegando que o preso estava ferindo “princípios de higiene pessoal”, recebeu falta disciplinar. Outro que relatou punição pela recusa de raspar a cabeça foi um detento da Penitenciária de Presidente Prudente que, por ser gay, já havia denunciado estar sendo agredido na unidade por outros presos e não se sentir seguro no local, mas nada havia sido feito.
A Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP) estabeleceu, desde 2018, em resolução administrativa, que a higienização da pessoa que está ingressando na unidade prisional deve ocorrer, obrigatoriamente, pelo: a) o corte de cabelo, utilizando-se, como padrão, o pente número “2” da máquina de corte nas laterais e, na parte superior do cabelo, o pente número “4”; b) raspar barba e bigode”.
Para a Defensoria Pública, porém, a resolução é “inconstitucional”, por ferir a dignidade da pessoa presa, e, ao mesmo tempo, incumbir ao próprio detento essa “higienização” sem oferecer os materiais básicos em unidades prisionais insalubres e superlotadas, fazendo com que sofram uma dupla punição. “Essa norma viola claramente o direito à imagem da pessoa, desconfigura completamente a identidade da pessoa presa, colocando nessa situação forçada, ferindo o princípio da dignidade humana, e sob essa desculpa, que para a gente não faz o menor sentido, que é da higiene”, explica o coordenador do Nesc e um dos autores da ação civil pública Leonardo Biagioni de Lima.
Além disso, Biagioni aponta que a SAP também não segue regras mínimas básicas de tratamento de pessoas privadas de liberdade. “É totalmente desproporcional essa desculpa porque o próprio Estado sequer fornece produtos necessários para o corte de cabelo e também para que haja higiene das pessoas presas: sabonete, pasta de dente, xampu não são fornecidos e estão na resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária“.
Em abril, o Nesc divulgou relatório sobre inspeções realizadas entre 2020 e 2021 em 27 das 179 unidades prisionais paulistas nas quais constatou que 70% tinham racionamento de água. “Como a secretaria diz que faz isso [corte de cabelo e barba compulsório] como política de higiene sendo que sequer o principal, que é o fornecimento de água e itens básicos como sabonete, fornece?”, critica o defensor.
Na ação civil pública, a Defensoria solicita que os cortes compulsórios sejam proibidos com urgência (liminar) e que a secretaria forneça os itens básicos para os que querem raspar ou cortar cabelo e barba, sob o pagamento de multa de R$ 10 mil por preso em caso de descumprimento; que a pasta siga os parâmetros mínimos de itens básicos a serem oferecidos às pessoas presas, conforme a resolução de 2017 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, e que a Promotoria de Direitos Humanos e Inclusão Social do Ministério Público de São Paulo (MPSP) seja notificada da ação. A expectativa, segundo o coordenador do Nesc, é de que o Tribunal de Justiça tome uma decisão ainda nesta semana.
O que diz o governo
A Ponte procurou a SAP e a Procuradoria-Geral do Estado, que é responsável por fazer a defesa do governo paulista. A pasta encaminhou a seguinte nota:
A Procuradoria Geral do Estado informa que não foi citada na ação em questão.
A Secretaria de Administração Penitenciária está permanentemente aberta ao diálogo com a sociedade civil para aprimoramento do sistema carcerário e ressocialização de todos os presos do estado de São Paulo. O tratamento aos custodiados no sistema penitenciário é pautado pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pelo cumprimento da legislação de execução penal. Os presídios paulistas recebem constantemente inspeções de inúmeros órgãos e entidades e todas as denúncias recebidas são apuradas dentro dos critérios legais.
Todos os presídios seguem o que determina a Organização Mundial da Saúde, que estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água por pessoa por dia. O corte de cabelo e barba faz parte da higienização dos custodiados no sistema prisional e itens como sabonete e aparelho de barbear fazem parte do kit higiene que é entregue às pessoas presas.
A população trans sob custódia da SAP tem seus direitos reconhecidos pela legislação, inclusive Resolução própria da Pasta. Entre esses direitos, está o uso de corte de cabelo e de roupa íntima de acordo com a identidade de gênero, uso de nome social em documentos e, quando requisitado pelos próprios interessados, cela ou ala específica para os (as) presos (as) transexuais nos presídios, de forma a garantir sua dignidade, individualidade e adequado alojamento. Qualquer denúncia de infração a esses direitos é objeto de rigorosa apuração. Sendo comprovada a acusação, o infrator está sujeito às penalidades previstas na legislação.
O conhecimento sobre direitos humanos, incluindo os da população LGBTQIA+, está dentro da grade do curso de formação dos agentes e em capacitações oferecidas aos funcionários da Pasta.
O que diz o Ministério Público
A reportagem também entrou em contato com a assessoria do órgão que disse que “o MPSP ainda não tomou ciência dessa ação”.
(*) Reportagem atualizada às 19h35, de 23/5/2022, para incluir resposta da SAP e da PGE.