A administração que inverte as prioridades e torna explícita sua aversão aos estudantes pobres
No ano de 2021, na maior universidade pública do país, a Universidade de São Paulo (USP), metade das vagas passou finalmente a ser distribuída entre alunos de escolas públicas autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. Entretanto, na contramão do estabelecimento de direitos, não houve a criação de meios que garantam sua execução, é o que mostram os dados do Censo da Educação Superior de 2020. A colação de grau nas universidades públicas do país teve queda de 18,8% no ano de 2019 — números ainda maiores são aguardados para os anos impactados pela pandemia. A criação de direitos sem a garantia de meios para sua execução não só fragiliza a conquista, como penaliza a quem se busca beneficiar.
Na contramão do crescente número de vagas direcionadas aos alunos cotistas, as políticas de permanência da USP não acompanharam o evidente aumento da demanda por seus programas. As vagas existentes no Conjunto Residencial da USP (Crusp) sofreram redução de aproximadamente 180 vagas com o fechamento de um dos seus blocos para uma reforma sem tempo determinado para terminar, sem garantias de novas instalações no Crusp ou auxílios que custeassem a mudança dos estudantes residentes do bloco, que foram retirados neste em meio à pandemia.
Segundo dados apresentados pelo anuário estatístico da USP, entre 2015 e 2020 a universidade viu sua receita aumentar em aproximadamente R$ 1 bilhão. Contudo, a universidade cortou investimentos em áreas vulneráveis no ano de 2020. Para se ter uma ideia, no ano de 2017, o valor destinado ao subsídio alimentar dos alunos foi de aproximadamente R$ 60 milhões (R$59.832.360), já no ano de 2020, o repasse foi de R$22.403.545, uma queda de 63% do repasse direcionado à alimentação dos estudantes mais vulneráveis da universidade.
É em meio a um quadro grave de vulnerabilidade alimentar que a USP não ficou atrás como exemplo de má gestão da crise sanitária instalada com a Covid-19. Logo no início da pandemia, os moradores do Crusp foram instados pela Superintendência de Assistência Social (SAS) a deixarem as habitações com a justificativa de que a universidade não teria como garantir condições sanitárias mínimas para permanência dos mesmos.
No entanto, as atividades de ensino e pesquisa rapidamente foram retomadas através da internet sem que houvesse um plano estratégico para garantir a adaptação dos estudantes que dependem da infraestrutura universitária, majoritariamente os estudantes cotistas. No Crusp não há sinal de internet, e mesmo que houvesse sinal suficiente, grande parte dos moradores ou não possuem computadores aptos para acompanhar o ensino remoto, ou sequer possuem computadores. Metade dos alunos que entraram na Universidade de São Paulo é cotista, e são eles majoritariamente que fazem uso das políticas e dos equipamentos de permanência estudantil.
O que se observa é uma negligência deliberada no que diz respeito à gestão dos recursos e das políticas de permanência, justamente para com os estudantes que têm desde a sua origem o acesso negado aos seus direitos. É comum que o Crusp seja chamado de periferia da USP e assim como qualquer outro espaço periférico, as reivindicações do Crusp são reivindicações de vida: alimentação de qualidade, saúde física e mental, moradia digna, dentre outros.
Desde o início, e com o recrudescimento da situação sanitária, ficou evidente que as condições de insalubridade que a moradia estudantil apresentava seriam agudizadas: os corredores da moradia universitária não têm iluminação, os tetos das habitações apresentam infiltrações de água e de esgoto, a rede elétrica é precária, não existem lavanderias e as cozinhas encontram-se sem fogões, e um longo etcétera. Vale destacar que, em pleno ano de 2022, ainda não há acesso à rede de internet estabelecida nas dependências do Crusp. Questione-se: como esses estudantes, que moram num espaço universitário, realizaram suas tarefas no ensino remoto entre 2020 e 2022?
Quem já estudava nessas circunstâncias antes da pandemia viu como suas condições ficaram ainda piores quando, com o início da emergência sanitária, as bibliotecas e salas de estudo fecharam, assim como os restaurantes universitários. A alimentação dos alunos que fazem uso das políticas de permanência universitária passou a ser feita através do fornecimento de marmitas de baixa qualidade e que, não raro, apresentaram insetos e outros tantos tipos de inconvenientes. A falta de rede de internet retardou a qualidade de ensino e pesquisa de muitos estudantes, isso quando não inviabilizou-a por completo.
Diante deste cenário: aumento de alunos ingressantes por cotas e as tristes consequências da pandemia, que no dia 25 de maio de 2021, um estudante da USP e morador do Conjunto Residencial da USP tirou sua própria vida. Ricardo Lima da Silva era estudante do curso de Geografia e morreu em meio a esse cenário que oprime e que adoece. Como não adoecer? A resposta a isso, inclusive, foi mobilizada por ex-moradores do Crusp e atuais estudantes moradores, pois as mobilizações da SAS e da universidade foram e continuam sendo nulas.
Em décadas de universidade, os recursos nunca sobraram para requalificar, garantir, tão pouco expandir o acesso à universidade pública a quem lhe é de direito. Há sempre uma nova prioridade que não a desses estudantes, como foi o caso da reforma completa do prédio que abriga os escritórios da Superintendência de Assistência Social. A prioridade a que foi destinada o aumento do repasse orçamentário às políticas de permanência estudantil foi a completa requalificação do prédio da SAS, para quando da próxima oportunidade, atender as necessidades dos mais vulneráveis.
A Universidade de São Paulo desenvolve uma política que não contempla os estudantes vulneráveis, pelo contrário: adotam políticas de exclusão, especialmente aos cotistas, mesmo existindo recursos para garantir o exercício do ensino superior em estrutura digna e saudável. Esses não são fatos isolados, não são simples coincidências, a permanência estudantil é negada deliberadamente há anos.
(*) Ana Paula Salviatti, Angela Sabrina Márquez Acero, Dafné Martins do Prado, Erika Guetti Suca, Juan Manuel Vidal Garcia e Lucas Antônio dos Anjos Nascimento são parte do Comunal, coletivo de moradores e ex-moradores do Crusp