Paulo Rangel reverteu decisão que condenou por injúria racial taxista branco que salvou contato de guarda municipal negro como “Azulão” no RJ; para especialista, decisão desqualifica luta de movimentos antirracistas
“É lamentável, mas o mundo está chato. Essa gente é muito chata”. Foi com essa frase que o relator desembargador Paulo Sergio Rangel do Nascimento, da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sintetizou seu voto para absolver um taxista branco acusado de injúria racial contra um guarda municipal negro. O entendimento dele foi acompanhado de forma unânime pelos demais magistrados em acórdão (decisão do grupo) publicado nesta terça-feira (21/6).
Oscar Rabello Correa havia sido condenado em dezembro de 2021 a um ano de prestação de serviços à comunidade e pagamento de 10 dias-multa e recorreu à Terceira Câmara para reverter o resultado. Em 2019, a vítima denunciou que é presidente da comissão de transporte da cidade de Valença, a aproximadamente 150 quilômetros da capital fluminense, e que recebe muitos processos para análise de irregularidades, inclusive do acusado. Em um dos processos do réu, viu que o taxista tinha juntado um print de WhatsApp onde constava sua foto e o nome “Azulão” salvo como contato. Também relatou que já havia sido chamado dessa forma por ele em outras ocasiões e que nunca tinha aceitado “esta brincadeira”. Além disso, denunciou que o homem já chamou seu pai de “macaco” e que “apanhou por isso”, “mas mesmo assim não mudou o jeito de tratar as pessoas”, por isso resolveu não confrontá-lo e prestar queixa em delegacia.
Já o acusado se defendeu dizendo que “nunca teve a intenção de injuriar” o guarda e que desde a infância tinha a atitude de usar apelidos. Oscar declarou durante o processo que já chamou a vítima de “Macaco da bunda branca” em outras oportunidades por exemplo e ela nunca reclamou. Também disse que os dois são “amigos de longa data” e que “acredita que a vítima está fazendo isso por puro interesse político”, pois enquanto presidente da comissão de transporte teria arquivado “as várias reclamações que dava entrada lá” e que nunca recebia resposta por elas.
O juiz Fellippe Bastos Silva Alves, que condenou Oscar, entendeu que ficou comprovada “a ofensa com palavras que desvalorizam a vítima em decorrência de sua raça e afetam a sua honra subjetiva”. O desembargador Paulo Rangel, no entanto, ao acolher a apelação do acusado, apresentou uma visão completamente diferente.
Rangel argumenta que a injúria racial foi confundida com “falta de educação” e que não valia a pena gerar gasto ao sistema judiciário por uma “desavença puramente profissional”. “Não há dúvida de que o racismo existe no Brasil, bem como, o preconceito social. Isto é indiscutível, mas nem tudo é racismo. Muitas vezes o que aparenta ser um comportamento racista é uma grande falta de educação, uma falta grande de urbanidade”, argumentou.
Também escreveu que, se a própria vítima descreveu o termo “Azulão” como “brincadeira” que ela não aceitava, não poderia se configurar como uma ofensa, assim como salvar contato com o termo como intenção de injuriar. O magistrado afirma que o crime de injúria racial, por ser considerado mais grave do que omissão de socorro e abandono de incapaz pelo tempo de pena, é uma “loucura” de uma sociedade que busca “leis mais severas”. “A sociedade enlouqueceu por completo e os profissionais que deveriam colocar um freio na loucura aceleraram ainda mais esse processo. Jogaram gasolina para apagar o incêndio.”
Rangel também utiliza de outros exemplos para afastar a injúria, citando o humorista e sambista falecido Mussum, a jornalista Gloria Maria e também colocando a si mesmo enquanto pessoa negra. “Imagine-se hoje em dia um programa humorístico como os famosos ‘OS TRAPALHÕES’ que divertiram gerações e gerações de famílias. Em que DEDÉ, DIDI, MUSSUM e ZACARIAS se misturavam e MUSSUM era chamado de crioulo e DIDI de nordestino, dentre outras brincadeiras. Mussum é o nome de um peixe cuja origem do nome é tupi que em português significa ‘escorregadio’, difícil de pegar. Chamar um homem de Mussum é dizer que ele é ágil, difícil de ser pego, escorregadio. Nada tem a ver com racismo. Mas hoje em dia se chamarem um homem negro de Mussum pronto. Vai dar cadeia”, escreveu.
Também releva gordofobia, homofobia e transfobia ao citar artistas como Ney Matogrosso, Rogeria e Jô Soares e dizer que nunca teriam sido vítimas de discriminação para serem respeitados, e outros humoristas como Jorge Lafon, conhecido pela personagem Vera Verão e homossexual negro assumido, e Chico Anísio. “Imagine-se o grande e melhor de todos os humoristas do Brasil, CHICO ANISIO, se vivo estivesse e fizesse seus personagens homossexuais, alcoólatras, Pai de Santo, dentre centenas de personagens brilhantes que criou. CHICO sairia preso do estúdio. Por quê? Porque o mundo enlouqueceu. As pessoas estão vendo chifre na cabeça de burro. Tudo é crime de homofobia. Tudo é crime de racismo. Tudo é crime de assédio sexual e moral. A paquera elegante de um homem para com uma mulher, virou crime de assédio. E não vão parar por aí. É um projeto político de destruição da sociedade. De separação social. De segregação racial”.
Os crimes de racismo e de injúria racial são diferentes. O primeiro se configura como uma discriminação à coletividade e está previsto na Lei 7.716/1989, com penas mais duras que podem chegar a cinco anos de prisão, sem possibilidade de fiança quando ocorre uma prisão em flagrante, e é imprescritível. Já a injúria está associada aos crimes contra a honra, sendo de caráter individual, elencada no artigo 140 do Código Penal, com pena que varia de seis meses a um ano de reclusão. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal equiparou a injúria ao crime de racismo, no sentido de que agora não pode mais prescrever.
Ao analisar o acórdão a pedido da Ponte, o coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da ONG Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, aponta que o desembargador utilizou de argumentos de uma visão de mundo particular sem analisar a ofensa à honra que foi denunciada pela vítima. “O desembargador usa a ideia de que seria socialmente aceita a conduta de usar o termo ‘azulão’ e, portanto, ali não haveria uma conotação negativa ou algo que pudesse ser interpretado judicialmente como uma ofensa à honra subjetiva passível de constatação de injúria racial”, explica. “O caso tem que estar baseado em uma ofensa de honra da vítima, então independe da minha visão de mundo, eu como julgador, como pessoa física, porque a vítima não é o Mussum, não é o Jorge Lafon, não é a Glória Maria, que ele cita.”
Além disso, apesar de apontar que a legislação penal brasileira tem muitos problemas, especialmente em relação ao punitivismo, Sampaio analisa que a crítica de Rangel pende para um lado perigoso que pode deslegitimar denúncias quando compara o tempo de pena da injúria racial com outros crimes. “É muito importante que a gente faça uma análise crítica ao populismo penal frente ao excesso de normas penais na nossa legislação, é um ponto a ser observado por toda a nossa sociedade”, pondera. “Agora, é preciso observar que há uma luta histórica da nossa sociedade, do movimento negro, por reconhecer a estrutura racista da nossa sociedade. O Brasil tem um déficit de praticamente cinco séculos sem enfrentar institucionalmente o racismo estrutural com o modelo escravocrata até que a Constituição de 1988 incluísse de maneira mais assertiva o tema como importante da nossa formação como país e até que outras políticas públicas fossem criadas de forma mais assertiva”.
Para ele, a fundamentação da decisão também é um retrocesso. “É preciso tomar muito cuidado com esse tipo de argumento nessa decisão porque acaba desqualificando a luta por reconhecimento do racismo estrutural do nosso país e, sobretudo, uma visão que o tipo penal nesse caso não se coloca na mesma prateleira dos outros tipos penais que fazem, sim, inflação legislativa. Os tipos penais da injúria racial e do racismo têm uma relevância conectada a um papel que a Constituição atribui para que as instituições combatam o racismo estrutural da nossa sociedade”.
“Ditadura sanitária”
O desembargador Paulo Rangel também redigiu outras decisões de repercussão. Uma delas é de setembro do ano passado, ao suspender em caráter liminar (urgência), a exigência de apresentação de comprovante de vacinação na cidade do Rio de Janeiro, argumentando que a medida é uma “ditadura sanitária” que cerceia o direito de locomoção, fazendo referência à escravidão e a Adolf Hitler.
“Se no passado existiu a marcação a ferro e fogo dos escravos e gados através do ferrete ou ferro em brasas hoje é a carteira da vacinação que separa a sociedade. O tempo passa, mas as práticas abusivas, ilegais e retrógradas são as mesmas. O que muda são os personagens e o tempo”, escreveu na ocasião. “Outro que sabia bem incutir no povo o medo dos inimigos foi Hitler, que através da propaganda nazista, incutiu na população o medo dos judeus e dos ciganos. Era preciso aniquilá-los para se defender”, prosseguiu.
Outro episódio foi o voto que deu que desempatou o julgamento e atendeu o pedido de foro especial ao senador Flavio Bolsonaro no caso da investigação das “rachadinhas”, em junho de 2020, apesar de ter escrito um livro em que criticava a garantia de foro privilegiado a autoridades.
Em agosto de 2020, o desembargador passou a ser investigado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por supostas irregularidades em um negócio firmado com empresário Leandro Braga de Souza, preso em maio daquele ano durante a Operação Favorito, que investiga desvios na saúde pública do Rio de Janeiro. A revista Crusoé publicou reportagem apontando que Rangel era dono de parte das ações da empresa LPS Corretora de Seguros, que realizava a intermediação de planos e seguros voltados à assistência de saúde. A Ponte tentou pesquisar o procedimento administrativo disciplinar (PAD), mas não encontrou resultados. Também procuramos o CNJ sobre o andamento da apuração cuja assessoria disse que “o caso tramitou em sigilo, por isso não é possível mais detalhes. De toda forma, o processo foi arquivado em 1º/10/2020”.
O que diz o magistrado
A Ponte procurou a assessoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e solicitou entrevista com o desembargador. Até a publicação, não houve resposta.
Reportagem atualizada às 14h30, de 23/6/2022, para incluir resposta do CNJ.