Com dinheiro público, evento de cosplay dissemina racismo, criticam ativistas

    Em evento financiado pelo governo de SP, debatedores disseram que negros foram escravizados pois são mais fortes e que morrem mais pois são maioria no Brasil; advogado participante insistiu na tese de “racismo reverso”

    O evento foi rechaçado por cosplayers negros nas redes sociais | Foto: Reprodução Youtube

    Na última sexta-feira (23/4) o festival Oîkosplay, evento virtual sobre a cultura cosplay, promoveu um debate para falar sobre “representatividade e racismo”. O produtor cultural Benedito Nicolau e o cartunista e cosplayer Maxx Figueiredo foram os organizadores do evento e do bate papo que contou com a expressão de conceitos considerados racistas, como o de que negros “viraram uma engrenagem de máquina” durante a escravidão, que eram escravizados por conta do “físico forte”, além de terem uma “durabilidade maior” para suportar o trabalho braçal. 

    O festival, que teve duração de seis dias, recebeu R$200 mil da Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, do governo João Doria (PSDB), a partir de um edital de cultura do Programa de Ação Cultural (ProAC) e também teve apoio do Ministério do Turismo, do Governo Federal.  

    Entre os debatedores estava o cosplayer negro Emerson de Jesus, 23 anos, o advogado João Antonio Wiegerinck, Maxx Figueiredo e a cosplayer e estudante de pedagogia Thaynara Caroline, 21 anos, também negra. No evento, que durou cerca de uma hora e meia, os cosplayers convidados iriam contar histórias particulares sobre ser negro no meio cosplay, o que praticamente não aconteceu. 

    Parte da conversa girou em torno de divulgar desinformações sobre a condição dos negros no Brasil, como acusaram ativistas nas redes sociais. Meritocracia, cotas nas universidades, blackface (quando uma pessoa branca se pinta o rosto e braços para escurecer a pele) e a maior incidência de mortes entre negros foram alguns dos temas tratados no bate papo.

    No início da live, os participantes debateram formas de combater o racismo estrutural de maneira objetiva e subjetiva no meio cosplay como quando pessoas negras são recusadas em trabalhos de eventos e festas por se caracterizarem de personagens brancos.

    Durante o evento, a tese do racismo reverso foi trazida pelo advogado João Antonio Wiegerinck, que disse já ter sofrido racismo quando criança na escola por ser o único branco da sala de aula. “Eu estudei em escola municipal e a maior parte dos alunos eram negros e eu apanhava porque eu era branco. Levei três meses apanhando porque eu era branco. Eu me senti vítima de racismo por ser branco”, contou. 

    Ele revelou outra situação na qual em uma viagem a Salvador (BA) não conseguiu visitar um bairro por ser branco. “A hora que ele entrou comigo na comunidade, ele teve que dar tanta explicação do porque um branco estava lá dentro que eu falei ‘mano estou indo embora, esquece’”, disse. 

    Nesse momento a estudante Thaynara que tentou contestar diversos argumentos dos homens que debatiam, disse: “Podemos ver isso como um preconceito, não existe racismo reverso”. 

    Os convidados também conversaram sobre uma suposta falta de preparo dos alunos cotistas que ingressam nas universidades por conta das deficiências no ensino básico, conforme apontou o advogado João Antonio Wiegerinck: “O cara cai na faculdade de paraquedas sem saber escrever direito, você piora a situação”. O discurso foi reiterado pelo cosplayer Emerson que argumentou que “não adianta empurrar uma pessoa por cota, sendo que ela não tem capacidade intelectual de estar em uma universidade”. 

    Nessa linha, Maxx disse que a meritocracia deve ser levada em consideração no processo de cotas e que as pesquisas que apontam que negros morrem mais são tendenciosas. “Se na pesquisa a maioria é de negros, é claro que vão morrer mais negros. É manipulação de pesquisa, tem que prestar muita atenção nesses dados”. 

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    Apesar disso, o argumento de Maxx é facilmente contestado. Segundo o Atlas da Violência de 2020, a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%, de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%. Dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, revelados pelo Uol, mostram que as mortes de negros causadas por violência física cresceram 59% no Brasil em oito anos, uma incidência 45 vezes maior que a taxa medida em relação a cidadãos brancos entre 2011 e 2018. 

    Pouco tempo após a fala sobre as pesquisas, a cosplayer Thaynara decidiu sair da live, restando apenas os três homens.

    Ao final, o tema do debate foi a escravidão no Brasil, que para o cosplayer Emerson de Jesus teve colaboração dos próprios negros escravizados, o que foi corroborado pelos outros dois participantes. “As pessoas negras elas são preconceituosas com elas mesmas, quem foi que vendeu os negros para os navios? Foram os próprios negros que tinham poder aquisitivo muito maior, ou seriam eles que estariam lá no navio, ou não, ‘eu tenho mais dinheiro, mais poder então vou mandar quem não tem condições’”, disse.

    Para seguir com a justificativa de Emerson, Maxx Figueiredo reiterou alegando que o negro é mais forte geneticamente e por isso “acabou sendo colocado para guerrear, para puxar máquinas pesadas e virou motor de máquina”. Para ele, a consequência é a demora para a situação do negro mudar pois sempre esteve na posição do trabalho braçal. “Então para sair da engrenagem demorou um tempo, [quando] você tira a peça da engrenagem vai fazer o que?”.

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    Entre risadas e sinais de concordância dos participantes, Emerson continuou com seu raciocínio. “Você vendo isso na história da escravidão, você vê que os índios foram usados como escravos, sofreram, mas eles não tinham essa força, então morriam muito”, disse. “Os negros tinham um prazo de validade maior, é um tema gigantesco a gente vai entrar em várias raízes e aflorando cada vez mais”, finalizou no bate papo.

    O advogado encerra a fala dizendo que concorda com o Emerson. “Que cabeça fantástica, que visão legal. Me lembra muito o Morgan Freeman, que contribui muito com ONGs, etc e tal, ele se nega a falar sobre compensação, ele defende o seguinte: que para o racismo acabar ele tem que não ser mais assunto, é o que você falou, a raça humana. Ele lida com as pessoas como raça humana, exatamente o que você falou”. 

    Apesar de dizer que o racismo não deve mais ser debatido, o advogado defendeu a punição da prática. “Mas eu gostaria de deixar claro o seguinte, é fundamental a educação, o livro, você ir atrás, estudar, mas quero deixar uma mensagem clara: não cale a boca, não fique quieto, se sentiu ofendido, vai faz o BO [boletim de ocorrência], vai atrás do nome da pessoa, pega testemunha, porque a educação às vezes também se dá pela punição.” 

    Cosplayers negros criticam falas do evento

    O debate gerou desconforto entre cosplayers negros, ativistas e simpatizantes do universo do cosplay. A participante da live Thaynara Caroline, 21 anos, que tentou refutar os argumentos dos demais convidados a todo instante, disse à Ponte que o mal estar começou um dia antes, quando o apresentador Maxx Figueiredo fez um grupo no WhatsApp. “Tentei por minha visão e foi futilizada como na live, mas como profissional dei minha palavra e decidi continuar, mesmo com o conteúdo dito pelo apresentador e o advogado.”

    Durante a live ela tentou relatar situações de racismo que sofreu em sua vida. “Onde duas pessoas brancas não me deram lugar de fala e julgaram minhas situações como se fosse nada, acredito que mediante todas situações de preconceito a do dia da live foi a pior, pois não pude me defender”, lamentou.

    Thaynara está inserida na cultura cosplay há cinco anos e nunca presenciou cenas de racismo. “Mas tenho absoluta certeza que pessoas que estão nesse meio a mais tempo devem ter vivido algo assim”, diz. 

    Segundo a jovem, o meio cosplay sempre foi um lugar acolhedor, porque quem começa precisa ter alguém como referência. “Onde é visto o traje e o que a pessoa sente interpretando tal personagem. Quando alguém vai se caracterizar tem que saber o que o personagem representa para sociedade e para si mesmo, para a caracterização passar uma mensagem, foi por isso que quando decidi interpretar o Pantera Negra pensei em tudo isso, quis mostrar uma representação dele para crianças que nunca viram uma Pantera Negra Mulher.”

    Thaynara Caroline ainda chama a atenção para a importância de se debater o tema. “Precisamos ver pessoas no meio cosplay falando sobre racismo para conscientizar e não trazer isso como uma forma de ganhar dinheiro, porque isso joga toda uma luta de séculos no lixo”, critica.

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    Assim como Thaynara, o cosplayer negro Wellington Silva, 33 anos, se sentiu desrespeitado. “Essa live foi um desrespeito a nós negros. Menosprezaram nossa luta, fizeram diversos comentários racistas e preconceituosos. Eu chorei enquanto assistia, dói ver que existem pessoas assim. Sofremos racismo todos os dias: no trabalho, na escola, faculdade, em locais públicos, muitas vezes pagamos com a vida, só por conta da cor da nossa pele”, diz. 

    Segundo ele, o racismo é presente no cenário do cosplay no Brasil, mas há oportunidades de se discutir. “Estamos lutando todos os dias. Tem eventos que nos dão oportunidades de falarmos sobre. Participei de um bate papo sobre representatividade e diversidade, na CCXP (Comic Con Experience) e no CarnaGeek, e foi ótimo. Essa é a diferença, quando nos dão voz, oportunidade. Isso ajuda na luta contra o preconceito e à favor da igualdade.” 

    Nesta semana, Wellington e Emerson de Jesus conversaram em uma nova live no Instagram. Para Wellington o espaço foi importante para dar chance à Emerson, que é negro, conhecer suas origens. “A nossa luta não é para excluir, e sim instruir. Mas no caso dos outros dois participantes brancos, que foram racistas e ainda defendem seu preconceito, não tem retratação que mude o que fizeram e falaram.” 

    Em entrevista à Ponte, Emerson de Jesus, 23 anos, diz não ser dono da verdade absoluta. “Estavam me colocando como se o que eu disse fosse a única que existisse. Vários haters estão me crucificando por expressar minha opinião, em momento algum ataquei alguém ou tive a intenção de atacar ou causar constrangimento a alguém como eu fui atacado diretamente”. 

    O cosplayer não concorda com as acusações. “Estão me acusando de racismo, isso é muito sério, não é verdade, eu não sou racista e nem sou a favor disso. Então se eu disse algo que aparentou ser ato racista da minha parte fiz minha retratação na live do Well sobre isso e por ter me expressado mal sobre o real motivo da escravidão. Além disso, negros não foram escravizados por demonstrarem ser geneticamente mais fortes que os índios. Como disse, é um tema extremamente vasto, quis colocar um exemplo mas me expressei mal”.

    Para o ciberativista, colunista no Mundo Negro e engenheiro civil, Levi Kaique Ferreira, 26 anos, é grave dizer que negros escravizaram negros para tentar justificar o racismo. “Esse discurso parte do desconhecimento histórico da história dos países africanos. Primeiro que é importante lembrar que a África é um continente complexo, cheio de países com povos diversos, com culturas diversas e pensamentos diversos”. 

    Levi explica que os povos que guerrearam entre eles eram diferentes uns dos outros, tal qual povos europeus que durante séculos guerrearam entre si. “O que foi a Primeira e Segunda Guerra Mundial senão brancos matando os próprios brancos? As pessoas conseguem ver a individualidade de povos europeus, conseguem distinguir Portugal de Espanha, França e Inglaterra, mas quando falamos de África parece que estamos falando de uma grande nação unificada e não é bem assim”. 

    Para o ativista é preciso reconhecer o processo colonialista nas Américas. “Além disso desconhecer o funcionamento da expansão imperialista e do colonialismo na África faz com que frases de efeito racistas sejam repetidas para sustentar argumentos que justifiquem a escravidão de povos africanos nas Américas, desinformação e racismo”.

    Por e-mail, o apresentador do evento Maxx Figueiredo disse que “qualquer comentário em meio ao momento que nos encontramos, será transformado em mais interpretações erradas, afoitas, sem embasamento técnico ou jurídico, gerando consequências ainda mais graves para nosso projeto ou pessoas envolvidas. Estamos tratando esse assunto com a menor exposição possível até chegarmos ao objeto que desencadeou tal interpretação e tomar a devida providência, evitando prejuízo para ambas as partes”.

    Procurado pela Ponte, o advogado João Antonio Wiegerinck não respondeu às questões enviadas até a publicação da reportagem.

    Em nota a Secretaria de Cultura e Economia Criativa de SP, afirmou que repudia veementemente qualquer manifestação racista. “Tão logo a pasta foi informada sobre a referida mesa de debates, chamou os autores a se manifestarem e, no momento, aguarda um pronunciamento”.

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    A pasta disse que caso seja confirmado que a Oikosplay tinha ciência do “conteúdo racista do evento online”, sofrerá as sanções previstas. “Como suspensão de participação em futuros editais da pasta. É necessário esclarecer que o projeto aprovado por esta Secretaria continha a seguinte proposta: ‘…um festival online, que se dispõe a apresentar de forma correta, sem preconceito, a cultura Cosplay, que tem sido disseminada em todo o planeta de forma rápida e vigorosa.’” 

    E que “cabe ao proponente, que é o responsável legal, não se afastar da proposta aprovada por esta Secretaria”. A Secretaria Especial da Cultura, do Ministério do Turismo, não respondeu às perguntas enviadas até a publicação da reportagem.

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