Prefeitura de Itacaré veste negros como escravizados para comemorar o 2 de julho na Bahia

Fotos publicadas na redes da gestão municipal foram apagadas após críticas; “foi ridículo”, diz moradora

Imagem postada no Instagram pela prefeitura de Itacaré, na Bahia | Foto: Reprodução

O professor de capoeira Ronivon Nascimento abriu o celular no último final de semana e tomou um susto ao ver a postagem da prefeitura de Itacaré. Morando em São Paulo há mais de uma década, ele não entendeu o motivo da gestão do município onde nasceu postar imagens de pessoas negras, assim como ele, vestidas como escravizados em comemoração ao 2 de julho, data que lembra a expulsão das tropas portuguesas e a declaração de independência da Bahia em 1823.

Durante o desfile que rememorava o episódio histórico, a organização do evento utilizou trajes do período colonial para caracterizar os participantes, colocando os negros em roupas que remetem à escravidão, enquanto os brancos foram retratados como pessoas da corte portuguesa.

A foto de um garoto negro e uma mulher negra com as feições sérias e em trajes de pessoas escravizados, ao lado de uma de uma mulher branca sorridente que segura um bebê loiro ao centro, foi publicada na conta de Instagram da prefeitura de Itacaré. Na mesma postagem, um retrato com várias mulheres brancas vestidas como baianas, utilizando um traje típico do candomblé também pode ser vista.

Segundo os dados do IBGE, a população da cidade do litoral sul da Bahia é estimada em 29.051 habitantes. Desses, 71,26% com mais de 18 anos se declaram pretos ou pardos. 

“Eu fiquei sem reação na hora que eu vi isso. Não é possível que nos dias de hoje a gente tenha que presenciar esse tipo de coisa. É algo que não cabe mais. Na mesma hora eu comentei que não estava acreditando naquilo que foi postado e passei a compartilhar com amigos comentando a minha revolta”, conta Ronivon, conhecido no meio da capoeira como mestre Bico Duro.

Postagens incluíam mulheres brancas fantasiadas de “baianas” | Foto: Reprodução

Após uma série de críticas ao conteúdo da postagem, a prefeitura de Itacaré tirou as fotos do ar. No site da gestão do município uma das imagens permanece no ar. “Com saída da Praça do Canhão, onde fica o Monumento do Dois de Julho, o desfile percorreu as principais ruas e avenidas. Após o percurso concluído, o encerramento também foi na praça do Canhão, onde algumas autoridades agradeceram e parabenizaram os organizadores, a banda e todos que colaboraram para a realização deste ato histórico”, diz um trecho da matéria no página oficial da cidade.

Mestre Bico Duro relembra que a festa é muito tradicional em Itacaré e que ele mesmo, quando criança, participou do evento e foi vestido da mesma forma como o garoto que apareceu na postagem da prefeitura. “A gente tinha que fazer esses papéis por conta da nossa cor. Eu não quero criticar o evento ou quem fez ele, mas é preciso alertar o quanto isso é ofensivo. Acho que a prefeitura deve, no mínimo, vir a público e fazer um pedido de desculpas a toda população negra da cidade.”

A administradora de empresas Elen de Assis afirma que há muito tempo deixou de acompanhar as comemorações do 2 de julho na cidade justamente pela forma caricata e preconceituosa que os negros são retratados durante o evento. Para ela, é preciso um grande trabalho de conscientização na cidade para mostrar que em pleno século XXI o negro não pode ser mais mostrado desta forma.

“É uma das formas que as pessoas brancas têm para tentar inferiorizar os negros. Foi ridículo o que foi postado. Eu já militei muito e briguei bastante aqui na cidade para mostrar o quão grave é isso, mas confesso que estou cansada. Itacaré tem muitas marcas ainda do período colonial. Não só pela sua arquitetura, mas pela postura das pessoas. A gente tem aqui o Quilombo do Porto de Trás, que é um dos poucos quilombos urbanos do Brasil, mas mesmo assim ainda é uma cidade muito segregada e com uma discrepância social enorme. É visível os lugares dos brancos e dos negros na cidade”, desabafa.

Para o educador e pesquisador do patrimônio cultural afro-brasieliro André Leitão, as imagens postadas pela prefeitura da cidade baiana são um insulto racista. “Por trás dessa suposta homenagem, temos o reforço do estereótipo que até hoje interfere na compreensão do corpo negro aqui no Brasil, que é a ideia do negro subalterno”, avalia o pesquisador.

Leitão ainda enfatiza que a imagem de mulheres brancas vestidas como baianas é uma forma escancarada de apropriação cultural. “É um embranquecimento como forma de tirar o protagonismo da mulher negra de algo que é muito forte. Essa imagem das baianas vai além do mero ofício da venda do acarajé, por exemplo. Tem uma dimensão social e religiosa que não pode ser apartada da questão estética”, avalia André Leitão.

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“A gente ainda está vivendo um período de escravização onde o poder está nas mãos das pessoas brancas. Não houve abolição no Brasil. Foi há muito pouco tempo que os negros começaram a ter alguns dos seus diretos. Isso é quase nada quando colocamos em um contexto histórico”, declara Ellen de Assis

Outro lado

A prefeitura de Itacaré foi questionada pela reportagem, através de email, sobre o desfile de 2 de julho e a caracterização de pessoas negras como escravizadas e a retirada do post do Instagram. Até o momento da publicação deste texto, a Ponte não teve nenhum retorno da gestão municipal.

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