Artigo | Racismo jurídico e religiões afrobrasileiras: do caso Evandro ao caso Lázaro

Não se pode alimentar ilusões confortáveis de que é possível à justiça criminal operar de forma racialmente neutra, argumenta a professora Aline Passos, da Coluna Abolição

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

Um discurso muito comum sobre a justiça criminal nos informa que ela se dirige sempre aos mesmos alvos, ou seja, pessoas negras, pobres e periféricas. O diagnóstico está correto e a isso chamamos de seletividade penal. No entanto, esse discurso não é exclusividade de setores políticos e sociais mais ou menos de esquerda. Ele também serve aos conservadores e reacionários que buscam expandir a repressão e o controle penal sob o argumento de atingir a todos, independente de raça ou classe social. Com frequência, é assim que surgem as operações megalomaníacas de “combate à corrupção” e suas falsas promessas. 

A ideia de que é possível criminalizar pessoas brancas, ricas e poderosas sempre acaba se mostrando falaciosa, seja por ocorrer de forma excepcionalíssima, seja porque exige em troca uma retirada de direitos que revitimiza os alvos já habituais da polícia, dos tribunais e das prisões e, assim, conserva a hierarquia branco sai, preto fica.

É fácil, portanto, repetir que a justiça criminal é seletiva, porque isso é praticamente um consenso. Uma das demonstrações mais recorrentes do caráter racista da justiça criminal, por exemplo, é apontar a proporção de pessoas negras presas em relação ao percentual de pessoas negras no total da população. Mas nem precisa disso. O mero contraste visual das prisões não deixa dúvidas sobre qual é a cor do encarceramento no Brasil. Essa constatação, no entanto, é insuficiente para que possamos falar do racismo como chave de decifração da justiça criminal. Melhor dizendo, como sua lógica de funcionamento. 

Angela Davis, em Estarão as prisões obsoletas?, analisou como, em determinado momento da história nos EUA, o aprisionamento de mulheres negras estava relacionado à idade reprodutiva, de maneira que mal se disfarçava ali uma finalidade eugênica. No Brasil, Ana Flauzina apontou que a criminalização da vadiagem no início do período republicano era a criminalização da liberdade de ex-escravos. Uma forma de abolir a escravidão sem abolir a escravidão, digamos. 

O que chama atenção nas análises das duas intelectuais negras é que elas não se limitam a constatar que pessoas negras são maioria na população carcerária e não se dão por satisfeitas em apontar o racismo do sistema de justiça a partir dessa constatação. O que Angela Davis e Ana Flauzina fazem é mostrar como o sistema de justiça criminal produz racismo (e não apenas reproduz) para além dos seus próprios limites jurídicos, administrativos, institucionais e mesmo criminológicos, a partir do momento em que atua sobre a natalidade e a mortalidade da população negra ou restringe sua circulação na cidade. 

Pensar a lógica racista de funcionamento da justiça criminal é tão ou mais importante do que atestar seus resultados. Quem acompanha atentamente os relatórios do Ministério da Justiça e Segurança Pública, por exemplo, sabe que muita coisa mudou a partir de 2018. Dentre as mudanças, está o silencioso desaparecimento da categoria negro (pretos + pardos) dos dados sobre raça relativos à população carcerária. Embora essa nunca tenha sido uma categoria consensual entre os movimentos sociais, a descontinuidade da forma como eram apresentados os dados até 2016/2017, sem qualquer explicação, sugere uma tentativa de dificultar a afirmação sobre o caráter racista da justiça criminal. É por isso que entender o funcionamento se torna preponderante em relação à aferição do resultado.

Essa compreensão também evita ilusões confortáveis de que é possível à justiça criminal operar de forma racialmente neutra, seja lá o que isso queira dizer. Não é. Nem mesmo quando pessoas brancas são criminalizadas é possível afastar a lógica racista desse funcionamento. Podemos tomar como exemplo o Caso Evandro, que voltou a ser debatido quase 30 anos depois do assassinato do garoto paranaense de apenas 6 anos, devido ao podcast do jornalista Ivan Mizanzuk (Projeto Humanos – O Caso Evandro) e que virou também série na Globoplay. 

À época do fato, a justiça criminal, com destaque para a Polícia Militar e o Ministério Público, bem como a grande mídia, construíram a versão de que o menino, que era uma criança branca, foi morto em um ritual de magia negra, forma como se referiam, sem qualquer constrangimento, à umbanda. Como mostraram o podcast e a série, a história contada na TV e nos tribunais foi toda elaborada a partir de sessões de tortura de sete réus, dentre os quais, as mais famosas eram duas mulheres brancas, uma delas praticante ou simpatizante da religião afro-brasileira. 

Também conhecido como o caso das “bruxas de Guaratuba”, em referência a essas duas mulheres brancas e à cidade onde ocorreu o assassinato, um dos aspectos menos explorados pela produção audiovisual recente, no entanto, foi o efeito político daquela criminalização. Afinal, enquanto processualmente é possível apontar que o único dos réus a morrer na prisão sem conseguir reverter o julgamento falacioso que o condenou apresentava fenótipo não branco, o caso tornado célebre transformou praticantes de religiões afro-brasileiras em alvos de perseguição penal e extrapenal, no Paraná e no Brasil inteiro. 

Imaginem ligar a televisão ou o rádio nos anos que se seguiram ao caso e ouvir que sua religião mata crianças em rituais de sacrifício para obter dinheiro e vitórias nas eleições. O caso Evandro ultrapassou os trâmites processuais e se conectou com a estratégia de varrer do mapa tradições e cultos do povo negro. Não é demasiado lembrar que, cinco anos após o caso, Edir Macedo publicou um livro cujo título literalmente demonizava religiões de matriz africana. 

Estamos falando, portanto, não apenas de um crime. Mas de um processo de criminalização que torturou e condenou injustamente “até mesmo” pessoas brancas e que nem eram pobres, em favor de uma estratégia política de banimento, silenciamento e, portanto, de extermínio de tradições religiosas e culturais que se confundem com a própria existência desses povos. 

Recentemente, no caso Lázaro Barbosa, no qual a polícia perseguia um acusado de matar uma família inteira no Distrito Federal, algo semelhante se esboçou. A polícia, em conluio com a grande mídia, divulgou imagens que remetiam a assentamentos de entidades religiosas de ritos afro-brasileiros para associá-las a Lázaro. Não fosse o fato de que a grande mídia perdeu o monopólio da mentira com a chegada das redes sociais e passou a ser fiscalizada pelos usuários destas mesmas redes, talvez, hoje, teríamos todo um roteiro macabro montado em cima das mortes no Distrito Federal associando religiões afro-brasileiras ao assassinato de uma família, mobilizando o pânico moral do ataque a esta ilibada instituição social.

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É somente quando se junta o diagnóstico dessa lógica de funcionamento da justiça criminal com a constatação de que a maioria das pessoas encarceradas é preta, pobre e periférica que o quebra-cabeças, enfim, completa-se. Afinal, há um nome para um conjunto de práticas de extermínio, tortura, sequestro e banimento de tradições culturais e religiosas de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Chama-se genocídio.

* Aline Passos é mãe de Benjamin, sergipana, doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. Professora de Direito Penal e Processo Penal. Pesquisa gestão privada de unidades carcerárias.

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