Longa-metragem conta a trajetória da UnB, primeira faculdade brasileira fechada na ditadura militar
Um instituto superior que integrava diferentes universidades num mesmo campus, tudo articulado num projeto pioneiro de educação que congregava professores brasileiros de renome internacional. Estamos falando de um projeto revolucionário de educação: a Universidade de Brasília, a UnB dos anos 1960. “Não acredito que um projeto desses se repita”, observa o cineasta e fotógrafo Jorge Bodanzky. Ele foi aluno da instituição no período.
Inspirado em suas memórias afetivas e nas de contemporâneos, ele elaborou o documentário de longa-metragem Utopia Distopia, que foi exibido de maneira hors concurs no Festival É Tudo Verdade de 2020 e recebeu o prêmio especial do júri no Festival de Brasília do mesmo ano. O filme aborda o planejamento e os anos iniciais da instituição. A UnB mudou completamente após o golpe militar de 1964. “Foi chocante. A primeira coisa que os militares fizeram foi fechar a instituição”.
A Universidade de Brasília foi concebida originalmente como um projeto inovador dos educadores Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Já o arquiteto Lúcio Costa planejou a cidade universitária que ficaria na nova capital do país. Bodanzky afirma que o grande articulador político para a inauguração da instituição foi mesmo Darcy Ribeiro. “Ele era muito articulado politicamente e era muito ligado ao presidente João Goulart. Foi num ato de distração da Câmara que acabaram aprovando o projeto de uma instituição como essa. A verdade é que a proposta original da UnB era tão revolucionária que até hoje nenhuma universidade brasileira foi a sombra do que ela foi.”
Utopia Distopia apresenta diversos aspectos revolucionários da instituição. Desde o início do projeto, o campus era aberto e integrado na cidade. A UnB também tinha a primeira biblioteca 24 horas do Brasil e apresentava uma integração marcante entre os diferentes cursos. Bodanzky afirma que não havia isolamento na instituição no período.
Outro aspecto destacado pela película é o corpo docente da universidade. Darcy Ribeiro dava aulas de Antropologia e Etnologia. Jean-Claude Bernardet e Paulo Emílio Salles Gomes eram os professores de Cinema. Roberto Salmeron era o responsável pela Física. Já o escritor Ciro dos Anjos dava aulas de Letras. “Eram professores de nível internacional. Uma coisa inesquecível eram os concertos de música clássica que eram promovidos sábado de manhã. Você tinha que acordar cedo para não perder.”
O paulista Jorge Bodanzky chegou bastante jovem à nova capital do país. Ele foi da segunda turma do bacharelado de arquitetura da Universidade de Brasília, mas não concluiu o curso. “A proposta original da instituição durou somente um ano e meio. Eu fiz dois anos no Instituto Central de Artes, que era a primeira etapa para a formação. Mas nesse momento logo me desinteressei pela arquitetura e passei a gostar de cinema e fotografia”.
Mesmo assim, a UnB parece que marcou definitivamente a trajetória do realizador. Utopia Distopia é um filme de afetos repleto de histórias de um projeto que poderia ter continuado por mais tempo. “Acabou sendo um filme bastante autobiográfico porque é parte da minha história pessoal e também da universidade”.
Ao longo dos 72 minutos da película vamos entendendo a Universidade de Brasília que Bodanzky e seus contemporâneos encontraram naquele início da década de 1960. O filme é apoiado por um extenso arquivo fotográfico realizado pelo próprio diretor e por seus amigos da época. Isso acabou despertando um fato inusitado enquanto ele realizava pesquisas para a elaboração da produção. “Eu sempre me interessei por fotografia. Mas o curioso foi quando fui no arquivo da UnB e só achei fotos minhas”, diz rindo.
O longa-metragem é bastante enfático ao mostrar como a ditadura militar interferiu diretamente no funcionamento da instituição. Os militares saquearam a biblioteca em busca de livros subversivos. Depois, mais de 200 funcionários da UnB pediram demissão coletiva.
“A maioria foram professores. Logo após o golpe eles colocaram um reitor e docentes deles. Era um projeto para tomar tudo”, recorda Bodanzky. “Os militares interferiram em outras universidades e em organizações estudantis como a UNE. Mas nunca com a mesma violência e rapidez com que fizeram com a UnB. Essa foi a única instituição de ensino superior fechada por eles.”
Utopia Distopia é um retrato de um projeto revolucionário da educação brasileira. O resultado final é bastante satisfatório. Bodanzky consegue armar o documentário sendo informativo e dinâmico ao mesmo tempo. O cineasta explica que começou a pensar no projeto do filme há quinze anos. Desde então, ele vem entrevistando pessoas que tiveram alguma relação com a instituição.
Bodanzky confidencia que não teve grandes dificuldades para a produção do longa-metragem. “Tive mais para a finalização”, explica. “Porque fiz as imagens com as minhas câmeras e com meu celular. Precisei mais para dar um acabamento”. Isso acabou sendo solucionado com um produtor de Brasília que ganhou um pequeno edital e ajudou na parte da conclusão do filme.
Um aspecto interessante é que um veterano como Bodanzky não teve nenhum problema em fazer imagens para o filme com o celular. “Olha, eu já tinha trabalhado com meu telefone móvel em outros projetos e hoje ele é a minha principal câmera”. O diretor diz que o celular serve muito para fazer documentários quando a equipe técnica é mínima, como no caso de Utopia Distopia. “É um instrumento perfeito. Documentário é um gênero que pode ser feito com qualquer câmera.”
O cineasta afirma que os sistemas de streaming acabam sendo vantajosos para os filmes de não-ficção. “Quando eu comecei só existiam as salas de cinema. Depois veio a televisão. Eu trabalhei muito na televisão alemã e mesmo na francesa, mas aqui no Brasil parece que as emissoras locais sempre foram refratárias ao documentário. Já no streaming todos eles precisam de não-ficção: Netflix, PlugTV, Now…”
Bodanzky está trabalhando num outro projeto de um novo longa-metragem que está em finalização chamado Amazônia: a Nova Minamata?. A produção aborda a presença de mercúrio nos rios da Amazônia. O diretor elabora no filme uma comparação do que vem acontecendo no norte do Brasil com o que aconteceu com uma indústria no Japão na década de 1950. “As pessoas comeram peixes e começaram a ter problemas por conta do mercúrio. Fecharam as fábricas, mas ficaram as sequelas em milhares de seres humanos que sofreram envenenamento por conta de mercúrio. Os médicos da Amazônia estão notando esses mesmos sintomas na população ribeirinha.”
Utopia Distopia
Direção: Jorge Bodanzky
Distrito Federal, Brasil, 2020
Duração: 72 minutos
Onde assistir: Now