‘Com Tarcísio, polícia vai matar mais, especialmente jovens negros’

Para pesquisadores, ativistas e policiais, uma vitória do candidato bolsonarista representaria um retrocesso para São Paulo, onde a violência vem caindo, após atingir o auge em 2020

Presidente Jair Bolsonaro (PL) ao lado do ex-ministro da Infraestrutura e candidato ao governo de SP Tarcísio de Freitas (Republicanos) | Foto: Reprodução/Facebook

O protagonismo de membros das Forças Armadas no campo da segurança pública em São Paulo tem se destacado desde as eleições de 2018. Assim que foi eleito, o ex-governador João Doria (PSDB) rompeu uma linhagem de integrantes do Ministério Público e do Judiciário ocupando o cargo de secretário e nomeou um general do Exército — algo que só existia na época da ditadura militar. No pleito de 2022, além do presidente da República vinculado à categoria buscando a reeleição, São Paulo tem um candidato a governador que é militar da reserva: Tarcísio de Freitas (Republicanos).

O ex-ministro da Infraestrutura da gestão Jair Bolsonaro (PL) também marca uma ruptura: em quase 30 anos, São Paulo não terá um governador do PSDB. Em época de campanha eleitoral, e por atribuição da esfera estadual, a segurança pública é uma das principais pautas exploradas pelos postulantes ao Palácio dos Bandeirantes.

A letalidade policial no estado teve uma queda expressiva neste ano, com os números mais baixos desde 2013. João Doria se elegeu em 2018 com um discurso de incentivo às mortes, mas mudou o tom e investiu em iniciativas para diminuir os números, como a implementação do projeto de câmeras nas fardas da PM, o que também reduziu os homicídios de policiais. Pesquisadores e integrantes de movimentos sociais são taxativos em dizer que a eleição de Tarcísio será um “retrocesso” no estado. E mais: se eleito, a violência tende a piorar contra a população negra e periférica.

Além disso, a poucos dias da definição do segundo turno, um tiroteio na comunidade de Paraisópolis, a segunda maior da capital paulista, gerou questionamentos sobre a atuação da equipe de Tarcísio. No dia 17 de outubro, o candidato, que estava participando da inauguração de um pólo universitário na favela, chegou a declarar de início que havia sofrido um “ataque de criminosos”, embora a própria Polícia Civil e moradores do local apontassem que os tiros não tinham o ex-ministro como alvo. Uma pessoa desarmada foi morta ao ser baleada por policiais à paisana. A Ponte mostrou que houve uma criminalização da favela após o episódio.

Depois, uma reportagem da Folha de S. Paulo revelou que a equipe pediu a um cinegrafista da Jovem Pan que apagasse imagens que fez no momento do tiroteio. O site Intercept Brasil apontou se tratar de um agente licenciado da Abin e que testemunhas do crime afirmam que Felipe da Silva Lima foi morto desarmado. O UOL também revelou que um PM disse ter adulterado a cena e o Grupo Tortura Nunca Mais pediu investigação do caso por entender que existem “indícios de execução”. No debate da TV Globo, nesta quinta-feira (27), Tarcísio disse que o pedido de apagar imagens do cinegrafista foi “de boa-fé” para “preservar pessoas”, embora seja um elemento de prova do que aconteceu.

“É importante destacar que nunca tivemos uma política de segurança pública cidadã e humanizada em São Paulo”, pondera a advogada Sheila de Carvalho, diretora do Instituto de Referência Negra Peregum e membra da Coalizão Negra por Direitos.

“Mas a gente tem uma política que tem alguns mecanismos de controle que poderiam ser mais efetivos para denúncias de abusos cometidos pela polícia, temos uma Secretaria de Segurança Pública, e algumas políticas novas como o projeto das câmeras, que se mostrou efetiva. Com a eleição do Tarcísio temos o risco de um retrocesso porque ele representa um projeto político que envolve uma política de segurança pública abertamente bélica, de guerra, violenta, de enfrentamento às pessoas e, no país que a gente vive que tem uma lógica racista, existem corpos para quem essa violência é direcionada”, aponta.

Para o tenente-coronel da reserva da PM paulista e doutor em Psicologia pela USP Adilson Paes de Souza, “Bolsonaro e Tarcísio são a mesma coisa”. Ele argumenta que o candidato tenta se mostrar como uma pessoa moderada em comparação com o presidente, mas isso não se concretiza na prática. “Em termos de segurança pública, com a eleição do Tarcísio, vai-se cristalizar uma política da morte e do confronto”, critica.

Paulo Cesar Ramos, pesquisador do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), concorda. “O Tarcísio não vai governar São Paulo sozinho, ele vai governar com os grupos que governam o Rio de Janeiro hoje, ele vai governar com junto com o Bolsonaro”, aponta.

Um dos pontos de alinhamento entre os especialistas é a defesa de Tarcísio a pautas que são de competência do Legislativo e do Executivo federais em sua campanha, como a redução da maioridade penal e o fim das saídas temporárias para presos.

“Ainda que ele não consiga impactar de uma forma efetiva a redução da maioridade penal ou penas mais graves a crimes, isso impacta no que ele há de criar no âmbito de sua competência dentro de uma lógica de superencarceramento, da truculência, da restrição de direitos”, sugere a diretora do Instituto Peregum.

Para Adilson, é uma posição populista para tentar atingir o eleitor apavorado. “Ele opera pelo medo das pessoas, o fascismo opera pelo medo das pessoas”, critica. “É óbvio que uma pessoa que não tem segurança no seu bairro, já foi assaltada com violência e está desesperada, essa pessoa vai apoiar qualquer um que vai exterminar quem está fazendo mal, a gente pode não concordar, mas dá para entender, porque é um meio de angariar votos pelo medo, é um método populista, como se isso fosse política de segurança pública estadual.”

Em seu programa de governo entregue ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP), o candidato já apontou rever o projeto das câmeras. Em entrevistas e lives com Bolsonaro, declarou explicitamente ser contra o equipamento e que encerraria o projeto em um eventual governo. Depois, com a repercussão negativa, recuou, dizendo que consultaria especialistas. Em nenhum momento disse que ampliaria o uso na corporação, que já conta com mais de 10 mil câmeras num universo de 80 mil policiais militares. Outros estados brasileiros, após a divulgação dos primeiros resultados de queda na letalidade em São Paulo, em 2021, passaram a anunciar que a adotariam a medida.

“As câmeras representaram um represamento da letalidade, caiu drasticamente o número de pessoas mortas em ações policiais, mas estamos falando do efeito porque as causas da existência de uma polícia letal persistem”, enfatiza Adilson Paes de Souza. “Retirar a câmera e/ou qualquer iniciativa que estimule o controle da letalidade policial, nós teremos um incremento considerável de pessoas mortas”, prossegue. “Eu temo que situação tende a piorar inclusive para os policiais e para as famílias dos policiais que estão envolvidos nessa violência e sofrem os efeitos dessa violência.”

A fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, Debora Maria da Silva, concorda. “Retirar as câmeras é um murro na boca do estômago de cada mãe que tem medo de perder seu filho, a câmera é uma prevenção, não funciona 100% porque os policiais também podem violar as câmeras e se não tiver controle direto da sociedade e do Ministério Público”, afirma.

Sheila de Carvalho destaca que o fato de Tarcísio ser apoiador e apoiado por Bolsonaro, mesmo não fazendo declarações explicitamente violentas, reflete conivência. “Estamos falando de uma pessoa que defende o armamento da população, que é conivente com a ideia de uma licença para matar [ampliação do excludente de ilicitude, que está no plano de Bolsonaro] e que não se colocou, em nenhum momento, na posição de enfrentamento ao racismo”, critica. “Com tranquilidade, podemos afirmar que vai ter um aumento de letalidade policial no estado de São Paulo, especialmente dos jovens negros.”

Além disso, no plano de governo do candidato do Republicanos não existe menção a propostas voltadas para a população negra. “Esse apagamento é uma técnica histórica de dominação e essa ausência de reconhecimento de públicos historicamente vulneráveis é ampliar as violações que podem ser cometidas contra eles”, critica o advogado e colaborador da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio André Alcântara.

“É um total descolamento da realidade da população brasileira porque a gente vive num momento em que enfrentar o racismo e a desigualdade estão ganhando cada mais importância”, complementa o pesquisador da FGV.

Outro ponto de “vai-e-vem” foi sobre a Secretaria da Segurança Pública. Primeiro, Tarcísio disse que extinguiria a pasta e reproduziria o modelo do Rio do Janeiro, adotado durante o governo Wilson Witzel, em 2019, de criar duas secretarias: uma para a PM e outra para a Polícia Civil. Depois, disse que manteria a secretaria, mas com “um ambiente de integração” entre as polícias.

Para especialistas, separar as pastas aumenta a autonomia das corporações que já têm dificuldade de integração atualmente. “A Polícia Civil e a Polícia Militar já têm uma história de muitos conflitos e separar as secretarias cria ainda mais atrito entre os interesses corporativistas e vai gerar uma competitividade que vai afetar as atribuições das corporações”, indica Jaime Fregel, advogado, policial civil aposentado e membro do Movimento Policiais Antifascismo.

“Essa é uma proposta que vingou onde os setores de milícias são fortes, no Rio de Janeiro, justamente por ter fortalecido grupos paramilitares e ter dado uma autonomia da polícia que, na verdade, foi dar autonomia ao comando do governador”, destaca Paulo Cesar Ramos, da FGV-SP. “O que parece que fortaleceria a corporação vira quase um governo paralelo que acaba legitimando os sujeitos que estão engajados nessas atividades milicianas.”

O sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, estudioso de milícias e autor do livro Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense, aponta que isso aconteceu no estado.

“Essa separação e essas autonomias, de fato, favorecem, como favoreceram no Rio, uma atuação muito mais violenta por parte desses grupos, principalmente por parte da Polícia Civil, como o Allan Turnowski [ex-secretário], que foi preso e que conduziu diversas operações com chacinas em cima do pessoal do Comando Vermelho”, pondera. “Com isso, fortaleceu a entrada do Terceiro Comando Puro e das milícias nessas áreas que eles operavam.”

Contudo, José Cláudio pondera que a atuação de grupos milicianos não é igual em todo o lugar, pois há vários fatores envolvidos: a dinâmica territorial, quais são as facções daquele local e como se organizam, se existe interferência do sistema prisional, como as forças policiais estão organizadas, quais interesses estão envolvidos.

“Geralmente, a gente tem uma ideia fixa de milícia nos moldes do Rio de Janeiro, mas não é bem assim. Como eu trabalho com a ideia de que grupos de extermínio funcionam a partir da estrutura policial e estão disseminados no Brasil inteiro, eles é que dão a origem e que vão dar a genealogia da milícia em cada região”, explica.

Ele cita como exemplo um local no Ceará em que tem um projeto de energia eólica de um lado, criação de camarões de outro e, no meio, existe uma comunidade quilombola. “Lá você tem atuação policial para a proteção desses dois grandes projetos que têm um impacto ambiental e estão degradando aquela região como um todo e eles fazem a proteção contra a comunidade quilombola. Isso, para mim, é milícia”, afirma. “É uma área disputada, é uma área litorânea, é uma área de valor e tudo isso vai incidir.”

Para ele, as propostas deveriam ser no sentido oposto, com unificação dessas forças, maior controle social sobre elas e diálogo com a população na elaboração das políticas públicas de segurança. “A população não pode ser apenas objeto e alvo das ações, passivamente falando, a população tem que estar na base da construção da política de segurança, desse controle, porque ela é quem está na base, é ela quem vai morrer”, alerta.

Para Adilson, os recuos de Tarcísio denotam inconsistência de proposta de política de segurança pública. “É o jeito Bolsonaro de ser. No caso do Jefferson [Roberto Jefferson, ex-deputado], ele muda o discurso de acordo com o público que quer atingir. Então quando o Tarcísio diz que vai retirar a câmera, os bolsonaristas raiz aprovam, mas quando ele vê que repercute mal fora da bolha bolsonarista, é um ‘veja bem’. Ele muda o discurso de acordo com o público para tentar agradar e ter mais voto, mas, para mim, a decisão já está dada, ele vai retirar a câmera assim, até pelos nomes que estão sendo veiculados para a secretário da Segurança Pública”, critica.

Os nomes que vêm sendo levantados como supostas opções para um eventual governo vão de parlamentares da Bancada da Bala a ex-integrantes do governo Bolsonaro. De acordo com reportagem do UOL, as alternativas caminham diante de três diretrizes: uma ala ideológica e bolsonarista mais próxima do candidato, como o ex-desembargador Ivan Sartori, o ex-ministro do Meio Ambiente e deputado eleito Ricardo Salles (PL-SP), o deputado estadual Coronel Telhada (PP) ou o deputado federal reeleito Capitão Derrite (PL-SP).

Outra seria um modelo voltado ao combate ao crime organizado e mantendo uma tradição de membros do Ministério Público no comando da pasta, em que o promotor Lincoln Gakiya e o ex-secretário Antônio Ferreira Pinto são cogitados. Já a terceira possibilidade seria a de continuidade da gestão anterior, mantendo o general João Camilo Pires de Campos à frente da SSP, nomeando outro integrante do Exército ou uma escolha que tenha influência do ex-prefeito de São Paulo e presidente do PSD Gilberto Kassab, que apoia a candidatura de Tarcísio.

“Todos os nomes ventilados na imprensa são nomes que promovem uma atuação mais repressiva da polícia, até porque nos últimos anos não se mudou muita coisa”, afirma Adilson. Para ele, não surpreende o apoio de policiais a Tarcísio. “Eu acredito que apoiam porque está introjetado neles de que o papel deles é combater uma guerra e eliminar pessoas. Só que quanto mais violência eles experimentam e em mais violência eles se envolvem, mais afetados psiquicamente eles ficam. Ninguém passa incólume por situações estressantes”, pontua.

Para André Alcântara, da Rede, o receio também paira sobre os mecanismos de controle da sociedade civil. “Alguns recursos que foram apresentados contra o processo de eleição da Ouvidoria das Polícias foram de parlamentares apoiadores do Tarcísio, deputados da bancada da bala favoráveis ao enfraquecimento da Ouvidoria”, lembra.

Coronel Telhada, um dos cotados para a pasta da Segurança, é um dos autores de um projeto de lei que extingue a Ouvidoria das Polícias. “O que pode acontecer: o ouvidor até pode ser nomeado, mas podem propor projetos de lei ou passar propostas que vão enfraquecer e tirar o caráter independente da Ouvidoria”, prossegue André, ao mencionar sobre o imbróglio das eleições do órgão cuja lista tríplice definida em agosto está há dois meses na mão do governador Rodrigo Garcia (PSDB) que ainda não nomeou um novo ocupante do cargo.

Os entrevistados sinalizam que o plano de governo do candidato Fernando Haddad (PT) se compromete com pautas importantes ao reconhecer o racismo estrutural como componente da letalidade policial, mas poderia avançar melhor em alguns pontos.

Sheila de Carvalho, da Coalizão Negra por Direitos, cita, por exemplo, a falta de menção a atendimento à familiares de vítimas da violência estatal. “Esse é um dos pontos de reivindicação que a gente faz não só para os candidatos do governo estadual, mas também para que seja uma política nacional, de conseguir ter mecanismos mais efetivos de controle combinados com políticas de reparação para as vítimas de violência institucional: quem cuida dos órgãos dessa violência? quem cuida das mães vitimadas por essa violência? É importante saber que quando a gente tira uma pessoa da sociedade da forma como é tirada hoje, de uma forma violenta, você gera um dano no seio familiar e o Estado não olha para essas situações”, sugere.

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Já o pesquisador da USP aponta que Haddad, ao citar a criação e reformulação de protocolos sobre a atuação policial, não explica como fazer com que a tropa de fato siga as normas. “O que não faltam são protocolos”, enfatiza Adilson.

O tenente-coronel também entende que Haddad foi muito genérico nas propostas voltadas aos policiais e às famílias dos policiais. “Ele poderia ampliar a efetividade dessa rede de proteção à saúde psíquica do policial, que existe, mas é muito criticada pelos próprios policiais, e falta também avançar em termos de transparência nos negócios da segurança pública, nos dados das apurações e nos currículos das escolas de formação das polícias”, analisa.

O que diz o candidato

A Ponte procurou a assessoria da campanha de Tarcísio de Freitas sobre as análises dos entrevistados, que encaminhou a seguinte nota:

Tarcísio jamais cogitou extinguir a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, bem como não fez qualquer referência ao modelo adotado no Rio de Janeiro. Portanto, não houve mudança de postura. O candidato sempre reforçou, caso eleito, o objetivo de trabalhar com os chefes das polícias mais próximos do governador, reduzindo o número de cargos intermediários e possibilitando um contato mais ágil.

Quanto às câmeras, Tarcísio sempre defendeu a revisão da política pública a fim de conhecer detalhes sobre a real efetividade do uso do aparato diante da sensação de insegurança da população, que não melhorou em nada por conta das câmeras.

Sobre temas de competência federal, o candidato sempre deixou claro que, se eleito, a força política do estado de São Paulo será importante para liderar um movimento de mudança em temas importantes para a população.

Além disso, por mais de uma vez, Tarcísio tratou sobre a necessidade de valorização da força policial, destacando um plano de carreira que envolva aspectos como apoio jurídico, plano de saúde e regime de trabalho.

Reportagem atualizada às 17h21, de 28/10/2022, para incluir resposta do candidato.

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