‘Quem manda matar não passa recibo’: assassino de jornalista em GO é finalmente condenado

Valério Luiz de Oliveira Filho conta como foram os dez anos de demora para o julgamento de Maurício Sampaio e os outros assassinos do seu pai: “a memória dele e do meu avô foi honrada e resgatada”

Valério Luiz de Oliveira e Valério Filho | Foto: Arquivo pessoal

O suspiro de alívio e da sensação de dever cumprido demorou dez anos para sair do peito do advogado Valério Luiz de Oliveira Filho. Após uma década ele finalmente viu os autores da assassinato do seu pai serem condenados após decisão do juri popular, na última quarta-feira (9/11).

O jornalista Valério Luiz foi morto a tiros em 5 de julho de 2012, em frente a rádio onde trabalhava como comentarista esportivo. Maurício Sampaio, ex-dirigente do Atlético Goianiense e apontado como mandante do crime, foi  condenado a 16 anos de reclusão. O auxiliar de Maurício, Urbano de Carvalho Malta, recebeu a pena de 14 anos de prisão, acusado de contratar o policial militar Ademá Figueredo para cometer o homicídio. O PM foi condenado a cumprir 16 anos em regime fechado. Marcus Vinícius Pereira Xavier, que teria ajudado os demais a planejar o homicídio terminou condenado a 14 anos de reclusão.

O grupo decidiu matar o jornalista pelas críticas que Valério vinha fazendo ao trabalho de Sampaio no clube de futebol da capital de Goiás. As ações do cartola extrapolaram os campos de futebol e tinham ramificações dentro do poder da sociedade goiana.

Em entrevista à Ponte, Valério Filho, que atuou no julgamento como auxiliar de acusação, fala como foram os dez anos à espera de uma punição para os assassinos do seu pai, da morosidade da Justiça, do papel do avô para mobilizar as autoridades para que o caso não caísse no esquecimento e do sentimento da família após a decisão do júri.

Ponte — Como foi para você estes últimos dias até a condenação das pessoas envolvidas na morte do seu pai?

Valério Luiz de Oliveira Filho — Foram três dias muito tensos, porque envolvia muita coisa ali. O sistema não é montado para responsabilizar pessoas como o [Maurício] Sampaio por esse tipo de crime. Isso com certeza motivou eles a terem feito o que fizeram, uma forma de passar o recado. O crime foi feito para saberem que era ele, mas ele não imaginava que seria formalmente responsabilizado. Fez na mais absoluta confiança de que detinha o poder financeiro e de relacionamento suficiente para se colocar acima da lei e sair impune de tudo isso. Mesmo assim, é ruim verificar que ele por pouco não estava certo, porque a quantidade de trabalho de mobilização e a quantidade de tempo necessário para levar o caso a julgamento foi algo muito acima do comum. 

Ponte — Como foi manter uma mobilização permanente nestes dez anos para que o caso não fosse esquecido?

Valério Luiz de Oliveira Filho — Nesse ponto eu gostaria de registrar um agradecimento aos meus conterrâneos aqui, a população goiana como um todo. A gente sempre contou com amplo apoio popular, por muitas razões, pela brutalidade do que aconteceu, pela ignorância que as pessoas viram imediatamente, de que não havia nenhuma razão para eles terem feito aquilo que fizeram e pela história do meu avô. Ele e meu pai tinham uma história longa no jornalismo goiano, estavam dentro da casa das pessoas através do rádio.

A gente deve sim se compadecer por qualquer pessoa que sofre uma injustiça, mas é natural do ser humano também que você se envolva mais emocionalmente com aqueles que sofrem que você conhece. As pessoas aqui conheciam meu pai, o meu avô. Quando teve aquela cena do meu pai baleado daquele jeito na porta da rádio, meu avô gritando, foi algo que comoveu a sociedade goiana como um todo.

A gente teve um apoio muito grande da imprensa, que também tenho certeza que é o agradecimento que gostaria de registrar. Vivemos num país muito violento, as tragédias vão se acumulando uma na outra e isso contribui para o esquecimento das coisas. Os autores do crime achavam que seria uma repercussão localizada, que dentro de alguns meses seria esquecido, mas, surpreendentemente, não foi o que aconteceu. Esse caso específico foi até o fim porque a cobrança dos meios de comunicação, a cobertura do caso, teve uma longevidade muito grande. 

Ponte — Você acredita que essa mobilização influenciou o poder judiciário?

Valério Luiz de Oliveira Filho — Isso foi algo muito importante, mas não serve para tirar isenção dos jurados, porque no júri o placar foi inclusive apertado. Quatro a três. Serviu para forçar as instituições a cumprir o seu dever, a se movimentarem. É um caso em que geralmente elas se omitem. Quando pessoas com pessoas poderosas estão ali, sendo investigadas ou no banco dos réus, muitos obstáculos precisaram ser ultrapassados.

Isso representava um duplo risco, principalmente o que a gente via no começo. Um risco pessoal, porque a gente teve que se insurgir contra uma pessoa que naquela época recebia uma renda de R$ 2 milhões por mês no cartório. Era uma pessoa com esse nível de poder financeiro e que tinha a disposição de mandar matar os outros e ameaçar. Ele tinha os meios para isso porque tinha uma relação íntima com a parte mais letal da Polícia Militar do Estado de Goiás.

Ponte — Qual foi a parte mais difícil durante as investigações?

Valério Luiz de Oliveira Filho — Foi usado o braço militar para a execução do crime. Quem atirou foi um policial do Comando de Missões. A gente se colocou contra um poderio financeiro e militar grande e ao mesmo tempo tinha que dar a cara a tapa o máximo possível para cobrar, porque senão as investigações não andariam. Não era o medo disso que a gente estava enfrentando,havia um medo maior que era de não dar em nada, porque a gente tem algumas limitações técnicas também, crime de mando é uma prova difícil de você fazer. Quem manda matar não passa recibo, não vai ter um ofício. Então foi preciso montar todo o quebra cabeça para, a partir dele, conseguir enxergar o autor intelectual do crime. É algo difícil conseguir prova, de mostrar para os jurados. 

Ponte — Nesses dez anos, teve algum momento que você achou que o caso ficaria impune?

Valério Luiz de Oliveira Filho — Todo esse processo foi assim. Foram vitórias judiciais não tão grandes assim, mesmo porque eu entrei com uma ação popular também para que ele fosse removido do cartório que ele ocupava. Algo que eu nem imaginava que fosse dar certo. E deu certo de uma forma muito boa. Mas existiram dois momentos em que eu fiquei abalado.

O primeiro momento das investigações do crime, porque é o momento mais frágil mesmo. Se não se consegue provas suficientes, a investigação é arquivada e acabou. Ficamos num momento de muito temor, principalmente quanto a isso, se iriam conseguir as provas ou não. E no fim de 2017, quando o processo subiu para o Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Ricardo Lewandowski chegou a anular o processo quase por inteiro. O que, na prática, significaria a impunidade do crime. 

Eu estava em casa e um jornalista me ligou. querendo que comentasse a decisão que anulou o caso do meu pai. E eu nem sabia o que era, fui saber assim. Nesse momento foi preciso uma articulação muito grande. Outra coisa difícil nesses dez anos, porque sempre aconteceu alguma coisa e era necessária uma mobilização enorme para combater. Isso me consumiu durante todo esse tempo. E a gente acionou a Abraji [Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo] pra soltar notas, mobilizar a imprensa nacional também. Fomos a Brasília pedir para a Procuradoria Regional da República recorrer dessa decisão do Levandowski, o que de fato aconteceu. 

Ponte — Como você vê a morosidade para concluir um caso como este do teu pai e a possibilidade de tantos recursos durante o processo?

Valério Luiz de Oliveira Filho — Nosso sistema tem algumas algumas incoerências. Eu não sou uma pessoa punitivista, no sentido de não tenha que ter garantia nenhuma para acusado. Mas a gente vive num sistema garantista, porém de um garantismo seletivo. As pessoas que não têm dinheiro não têm condições financeiras para entrarem com recursos. Os condenados conseguiram protelar tanto porque tiveram um escritório de advocacia à disposição deles o tempo inteiro. Uma pessoa pobre que comete um homicídio vai para júri em questão de um ano. Nesse tempo nós vimos vários crimes que foram submetidos a júri antes do nosso. O sistema de recurso é realmente muito grande, tem muito recurso. Você tem advogado que não gosta que isso seja falado, pois estaríamos adotando uma postura punitivista. Mas não, a gente tem que ter bom senso com as coisas.

Uma pessoa como Maurício Sampaio consegue enrolar o processo por dez anos. E outra coisa, se você pega a população carcerária do Brasil, a maior parte está presa por furto, roubo e tráfico, mas no que diz respeito a homicídio, o Brasil é um país que tem um problema grave de impunidade. Apenas 10% dos homicídios são elucidados, e menos que isso chega a julgamento. O processo do Tribunal do Júri de crime de homicídio é muito longo, tem muita possibilidade de ser atrasado de todas as formas possíveis e é o procedimento que cuida do bem jurídico mais alto, a vida.

Ponte — A morte do teu pai mostrou um submundo muito perigoso que envolve o futebol. Para muita gente, ele morreu apenas por comentários esportivos, mas foi além. Como foi saber dos motivos que levaram ao crime?

Valério Luiz de Oliveira Filho — Existe uma interseção que muitas vezes as pessoas não sabem, mas o futebol no Brasil tem muito envolvimento com os grupos de poder. Não só no Brasil, você pega, por exemplo, os cartéis lá da Colômbia, eles tinham o time de futebol. No Rio de Janeiro existem times de futebol que são financiados com o jogo do bicho. E aqui em Goiás não é diferente. Quem estava na frente do Atlético lá era o Maurício Sampaio, que na época era dono de cartório, e o Jovair Arantes, que era deputado federal [pelo PTB].

Eles tinham planos de pegar a presidência do Atlético, como de fato fizeram depois, e tinha uns planos de pegar a presidência da Federação Goiana de Futebol. Meu pai denunciou o Atlético por tentativa de compra de resultado, como em um jogo em 2007 lá no Piauí. Há anos havia esse plano de dominar todo o futebol goiano e as críticas não ficavam no meio disso, mas a própria personalidade do Maurício não aceitava muitas críticas. Ele tinha um histórico de agressão a jornalista quando era criticado.

Ponte — Como está a tua família depois desse resultado?

Valério Luiz de Oliveira Filho — Nossa família está toda bem aliviada. Todos sofreram muito e eu tomei a frente nisso por causa da minha formação profissional, porque sou advogado. Eu tinha condições de entrar no processo e efetivamente fazer alguma coisa. Mas a família sofreu de uma ansiedade enorme. Meu avô se foi no ano passado, vítima de um câncer, sem poder ver isso acontecer, mas a participação dele foi fundamental, principalmente no começo. Sem a figura do meu avô, sem a mobilização que ele fez ali, principalmente na época das investigações, dificilmente ele teria ido para a frente. E foi tomando uma coragem excepcional, sem medo de cobrar e de gritar.

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Eu me lembro no julgamento do pedido de habeas corpus do Maurício, dentro do Tribunal de Justiça, o meu avô gritando lá dentro do tribunal. Os policiais militares fizeram um cordão em volta dele, mas não tinham coragem de pegar ele. Uma força moral que eu nunca vi uma coisa dessas na minha vida. Mas eu gosto de pensar que, onde ele estiver junto com meu pai, estão vendo isso acontecer. A memória deles foi honrada e resgatada com esse resultado.

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