Como evitar atentados de extrema direita nas escolas brasileiras

Documento elaborado por equipe de transição de Lula sugere integração de escolas à comunidade, educação crítica para uso da internet e extinção de escolas militares mirins; adolescente matou 4 pessoas em ataque no ES em novembro

Homenagens prestadas a vítimas em frente à escola Raul Brasil após ataque que deixou 10 mortos em março de 2019 | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

A ascensão da extrema-direita no governo federal e em todas as outras esferas da política institucional brasileira veio acompanhada de um aumento cada vez mais perceptível de episódios envolvendo violência política (física ou simbólica) em escolas e espaços de ensino país afora.

Em 2022, o que era tendência começou a tomar ares de início de epidemia — apenas no segundo semestre deste ano, foram quatro atentados em escolas no país, sem contar as pichações com conteúdos nazifascistas, ameaças e agressões verbais registradas cada vez mais regularmente, inclusive em universidades, como denunciado por alunos do Centro Residencial da Universidade de São Paulo (USP) no início de dezembro. O auge parece ter chegado no dia 25 de novembro, quando um adolescente de 16 anos atacou duas escolas em Aracruz (ES), matando quatro pessoas e ferindo outras 12 ao invadir duas escolas — em uma delas a mãe dele, uma professora aposentada, já deu aula. 

O atirador estava armado com um revólver e uma pistola semiautomática , ambas de propriedade do pai, tenente da Polícia Militar (a pistola pertencia à corporação). Segundo a polícia, um emblema vermelho que estava grudado à roupa que o jovem usou no ataque seria um símbolo nazista, e a motivação do atentado teria sido o bullying que sofreu de colegas. 

O atentado, repudiado publicamente pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) (e ignorado pelo futuro ex-presidente Jair Bolsonaro [PL]), incentivou a equipe de transição da nova administração federal a procurar recursos para tentar frear essa onda de violência.

Daniel Cara, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e um dos 22 coordenadores do Grupo Temático de Educação do Gabinete de Transição convocou 11 pesquisadoras e ativistas para elaborar o  relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, publicado nesta terça-feira (13/12).

Com base em reportagens publicadas na imprensa, o grupo listou 16 ataques do tipo ocorridos no país desde 2000. De lá para cá, foram 35 pessoas mortas e 72 feridas. “Não é fácil escrever sobre esse tema, as pessoas acham que a extrema direita no Brasil não está extremada, não mobiliza os jovens e que esse impulso neonazista é passageiro”, explicou Cara em entrevista. “Não há nenhum indicador de que isso é passageiro, pelo contrário, é um processo que veio para ficar e que me preocupa assustadoramente.”

Inspiração de extrema-direita

Segundo as pesquisadoras, a extrema direita coopta adolescentes que praticam esses ataques ao se fundamentar “em perspectivas políticas que incluem a defesa de um pensamento deturpado de ‘lei e ordem’, da justificação do abuso da força policial como solução estrutural para ‘o problema de violência’, do antiparlamentarismo, do antipluralismo, do anticomunismo, da perseguição ao pensamento de esquerda, do racismo, da misoginia e da xenofobia”.

E existe um perfil predominante nesses atentados: a maioria dos autores são meninos brancos, heterossexuais e cisgênero (que se identificam com o gênero de nascimento), indica Luka Franca, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Direito, Desenvolvimento e Descolonização da Universidade São Judas Tadeu (USJT/CNPQ), integrante da coordenação estadual do Movimento Negro Unificado (MNU-SP) e mãe de uma adolescente de 13 anos.

“Esses tipos de ataques estão diretamente ligados à misoginia [ódio por mulheres]”, enfatiza Franca, que participou da elaboração do relatório. “É o fato de que a maioria das vítimas de escola que a gente tem no Brasil são de meninas e mulheres. Não foi um caso apenas de Aracruz, não foi um caso apenas de Suzano, não foi um caso apenas da Bahia, não foi um caso apenas em Realengo.”

O primeiro ataque em uma escola brasileira foi em 2002, em Salvador (BA). Um estudante de 17 anos usou a arma de seu pai, um policial civil, para atirar nas vítimas. Já o segundo, um dos mais mortais até hoje, ocorreu em 2011 em Realengo (RJ). O atirador era um ex-aluno e matou 12 alunos adolescentes, com idades entre 13 e 15 anos (10 meninas e dois meninos). Testemunhas disseram na época que ele atirava nos meninos para ferir e nas meninas para matar. 

Nos Estados Unidos, país que concentra o maior número de atentados do gênero, segundo o jornal Washington Post até 2022 foram contabilizados 331 escolas atacadas, com um total de 554 vítimas — 185 mortos e 369 feridos.

O documento rejeita a noção comum de que os responsáveis seriam exclusiva ou indiretamente motivados por bullying, ou por uma suposta negligência parental. Na realidade, os atiradores se tornaram violentos a partir de um processo de cooptação da extrema direita e com um desejo condicionado para se associarem a ela através da exposição midiática. 

Além disso, o grupo coloca a escola como mais uma vítima, não um espaço que produz violência. “É importante a gente pensar os processos de acolhimento na escola não apenas do ponto de vista dos professores, da gestão, mas de fortalecimento da comunidade escolar, de trazer isso mais para dentro, inclusive acabar os tabus e atuar de uma forma preventiva”, aponta Luka.

A rede mundial de computadores

A extrema direita, segundo as pesquisadoras, usa a internet como ferramenta de cooptação, como no massacre de Realengo, onde o atirador foi estimulado a cometer o atentado por grupos organizados em fóruns e blogs que incentivam o ódio contra mulheres. Além da misoginia, outro método de cooptação apontado no estudo é o uso de memes nazifascistas ou com discurso de ódio, visando “relativizar e normalizar as violências”  contra minorias. 

Há também a navegação do próprio ecossistema da extrema direita na internet, em destaque nas redes sociais, onde jovens são influenciados a buscar conteúdo online nesses fóruns e em canais no YouTube. Para as especialistas, o algoritmo da rede social é um fator importante na cooptação ao recomendar canais e vídeos com conteúdo cada vez mais extremo a partir das interações do usuário. 

Nos aplicativos de mensagens, o compartilhamento de imagens de ataques e manifestos de extrema direita é frequente e visa inspirar outros jovens e adolescentes a repetirem esses atos. Em novembro, um monitoramento de 46 canais neonazistas brasileiros no Telegram do Núcleo Jornalismo identificou o compartilhamento do manifesto de Brenton Tarrant, terrorista que matou 51 pessoas em Christchurch, Nova Zelândia. Segundo a reportagem, um dos canais também publicou um tutorial de como fazer uma bomba caseira.

É necessário que os alunos aprendam desde cedo a busca por fontes de informações seguras, o combate à desinformação, que segundo as pesquisadoras se dá com educação crítica de mídia, além de ensinar a compreender os espaços virtuais seguros para pesquisa, como é desenvolvido na Finlândia, em que estudantes aprendem desde cedo o que são fake news e como pode ser combatidas. 

Paola Costa, coautora do estudo e professora da rede pública estadual do Rio Grande do Sul, diz: “não falar para os estudantes sobre a existência desses espaços anônimos (como os chans) ou de grupos em mensageiros onde há cooptação não fará com que não sejam acessados. Pelo contrário, deixá-los sem informação fará com que sejam alvos fáceis. Eles precisam saber não haver nada inocente em chats de jogos onde meninas são tratadas de forma agressiva, que comunidades que trocam informações sobre armas e massacres são nocivas. Não falar do assunto não faz com que ele desapareça.”

Além disso, Paola conta que a cooptação de estudantes pelo ultraconservadorismo e extremismo de direita na internet resulta em alterações de comportamentos que nem sempre é correlacionada pelos pais à nocividade dos conteúdos que seus filhos consomem desde muito cedo.

“Alunos passam a ser agressivos com as professoras, se recusar a falar com colegas meninas e tratá-las de forma pejorativa”, explica. Costa revela que no dia-a-dia escolar em mais de 12 anos em sala de aula já viu pichações nazistas, além de ameaças, entretanto ressalta o auxílio das famílias durante as ocorrências nas escolas:  “Aí entra envolvimento do trabalho pedagógico e toda associação que persistimos tanto no relatório: as famílias precisam ser envolvidas, a comunidade local precisa ser aproximada das escolas.”

Sinais e alertas

As pesquisadoras reiteram que é importante não tratar todos os casos de cooptação como “terrorismo”. Compreender o comportamento dos jovens e adolescentes é necessário para solucionar o problema. Para isso, é preciso não só entender o ambiente virtual, mas sinais comportamentais, como o interesse incomum por assuntos violentos; comportamento e atitudes violentas; recusa de falar com professoras e gestoras mulheres; agressividade contra minorias e exaltação a ataques em ambientes educacionais e religiosos. 

Na perspectiva socioeducativa, o documento ressalta a importância de que a escola seja um ambiente acolhedor, possibilitando uma formação que combate o ultrarreacionarismo. Alinhado a isso, estaria a “necessidade de um trabalho pedagógico em educação crítica da mídia e de combate à desinformação”. Essa proposta, caso ganhe tração em meio as propostas da pasta de Educação do governo Lula, não estaria limitada ao Brasil. Desde 2019, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sugere a introdução da alfabetização midiática em escolas ao redor do mundo. 

As especialistas são contra o uso de medidas de restrição em ambientes escolares, como catracas ou detectores de metal, propostas atualmente defendidas pelo bolsonarismo como uma possível solução, mas que já falharam nos Estados Unidos. Segundo o documento, isso “tende a aumentar as ameaças” dado que afeta o ambiente escolar e torna a escola “um espaço ainda mais relevante em termos de propaganda extremista, ocasionando riscos de novos atentados”.

“O detector de metais facilita o reconhecimento de metais, mas nada indica que os alunos não vão conseguir entrar de algum jeito, ou seja, a escola não é uma prisão e não pode ser um espaço de segurança máxima, porque cercear a liberdade prejudica o aprendizado”, explica Daniel Cara. 

Além disso, o grupo recomenda o fechamento de academias e institutos mirins militares e criação de leis que não permitam a criação desse tipo de instituição, em que são ofertados cursos de treinamento militar (as academias são diferentes dos colégios cívico-militares — a parte pedagógica é de responsabilidade da escola e a disciplina da polícia). “É uma estrutura que facilita o acesso a determinadas ferramentas que não deveriam ser de acesso a crianças e adolescentes”, explica Luka, já que nesses institutos, crianças a partir de 5 anos podem ser matriculadas e muitas vezes têm acesso ao manuseio de armas, sejam reais ou réplicas.

Levantamento do Instituto Sou da Paz, que é citado no documento, apontou que de oito atentados em escolas que aconteceram no Brasil metade dos casos as armas utilizadas estavam armazenadas na casa dos atiradores. Por isso, nessa esteira, o GT reivindica revogação dos decretos do governo Bolsonaro, que facilitaram o acesso às armas, e maior controle e fiscalização.

“Você tem a chance de aumentar atentados e tem um fator que quem não acompanha de perto o fenômeno não percebe: antes de tudo, os atentados são propaganda. Os meninos, na verdade, estão buscando uma posição dentro do grupo e, caso eles sejam assassinados, percam a vida ou tirem a própria vida, são alçados à condição de sanctos, ou seja, eles têm dentro da cosmologia desses grupos uma posição próxima à sacralização”, pondera Daniel Cara, citando a ideologia de um dos mais infames canais da extrema-direita online nacional. 

Letícia Oliveira, pesquisadora em extrema direita e editora do site El Coyote, acredita na possibilidade de uma escalada em ações extremistas durante o governo Lula caso políticas socioeducativas não sejam implementadas.  “Acho muito possível um aumento da cooptação como uma forma de reação ao governo Lula. O monitoramento conduzido pelo relatório parte desse pressuposto”, afirma. 

“Nesses grupos, existem muitos ataques às instituições e ataques contra o sistema que eles acreditam que os prejudica. Há um nome em inglês para isso: backlash, uma reação da extrema direita ao avanço de pautas progressistas.” 

No relatório, o grupo aponta a reforma do Ensino Médio como um mecanismo que facilitou essa escalada supremacista nas escolas, já que as disciplinas de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (Geografia, História, Filosofia e Sociologia) perderam espaço no currículo, sendo substituídas pelos “Percursos Formativos (ou Trilhas de Aprendizagem)”, o que, para as pesquisadoras, “são insuficientes para avançar na construção de ideias de justiça, solidariedade, respeito aos direitos humanos e combate aos preconceitos de qualquer natureza”.  Um exemplo é a disseminação de revisionismo histórico, como a negação do Holocausto durante o regime nazista.

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Daniel Cara, contudo, aponta que a Reforma do Ensino Médio não é uma unanimidade no GT de Educação, o que explica o documento não expor claramente como proposta a revogação da medida. “Dentro do grupo tem gente que defende sim, não tem como fugir, parte de quem construiu a Reforma do Ensino Médio está no grupo de trabalho ou tem tem relações muito profundas com quem está no grupo de trabalho”, pondera.

Ele, particularmente, é a favor da revogação porque entende que a mudança piorou o “que já era ruim”. “A reforma do Ensino Médio é uma catástrofe, para mim, é um dos temas a serem revogados, mas a dificuldade em revogar é que quem constrói a reforma é quem tem predomínio econômico na área de educação”, pontua. “Infelizmente, existe esse fator e hoje quem consegue mobilizar o debate público são as associações empresariais, desde o [governo] Temer, porque elas têm dinheiro.”

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