Artigo | A ‘Cracolândia’ e os limites da justiça terapêutica

Sem um plano claro, nova proposta dos governos municipal e estadual de São Paulo para a questão mantém olhar conservador e negacionista de iniciativas anteriores

Pessoas em situação de rua esperam o desfecho de nova fase da Operação Caronte, em 14/6/2022 | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

A Constituição Federal, em seus artigos 3, 4 e 5, consagra os princípios e objetivos da República e a tutela dos direitos e garantias fundamentais. O direito à vida e à saúde são direitos fundamentais, exigindo que o Estado conceda ao jurisdicionado um processo adaptado às suas necessidades ou condições mínimas de exercer seu direito de defesa. Daí a intenção do legislador em criar um procedimento específico para o julgamento da pessoa com transtornos mentais, incluindo dependentes de substâncias psicoativas, como álcool e outras drogas, requerendo uma abordagem de saúde baseada na diminuição do sofrimento psíquico decorrente dos múltiplos fatores biopsicossociais. 

Ao contrário do que se propaga na grande mídia, a “Cracolândia” não é apenas um espaço de uso abusivo de álcool e drogas em pleno centro da cidade de São Paulo. Na verdade, é um grande equívoco reduzir um território de tamanha complexidade a concepções meramente moralistas. A “Cracolândia”, ou “Boca do Lixo”, como é conhecida historicamente, consiste em uma comunidade que resiste há mais de 30 anos na região central da cidade. Essa comunidade é composta por artistas, músicos, trabalhadores do sexo, professores, advogados, engenheiros, médicos, garis, vendedores ambulantes e coletores de material reciclável. Em resumo, trabalhadores de todos os níveis, incluindo também os desempregados em situação de vulnerabilidade social. 

Estão ali pessoas de diversas ocupações, vertentes, origens e tribos, que buscam viver harmoniosamente com as residências, comércios, entidades privadas e do terceiro setor (especialmente as que atuam com direitos humanos e política de redução de danos e agravos à saúde). Importante destacar desde o início que, se a “Boca do Lixo” fosse formada apenas por traficantes e usuários, o poder público teria ainda menos legitimidade para o uso da força, bastando lançar mão de expedientes investigativos puros. 

Vemos que esta já se tornou uma localidade de criminalização generalizada, perseguição e discriminação estatal constante, estruturando um ambiente urbano fortemente militarizado (uma espécie zona de guerra) para coibir e resultar na dispersão indiscriminada de pessoas, estejam elas em busca do anestesiamento e prazer do uso de substâncias, ou na posição de sobreviventes de diversas atenuantes sociodemográficas da população da cidade de São Paulo.

Por consequência das atenções midiáticas no território, figuras políticas enxergam a oportunidade de angariar apoiadores, especialmente no campo conservador, medicalocêntrico e negacionista dos avanços da ciência baseada em evidência. Um dos objetivos centrais e finais é influenciar na construção do estereótipo marginalizado do usuário. Ações novas com motivações antigas são as principais estratégias do proibicionismo oriundo da década de 40 nos países da América Latina, que se nega discutir a ineficácia da criminalização do uso fixado nos argumentos morais e religiosos que inflamam o pensamento estereotipado e odioso por parte da comunidade de moradores e comerciantes e também pelo próprio poder público. 

O resultado é que, passados poucos dias do início do mandato do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), a prefeitura e o governo de São Paulo anunciam uma série de medidas com a intenção de diminuir a quantidade de pessoas no “fluxo” da “Cracolândia”, inclusive publicando o decreto 62.149/2023, que literalmente ignora a política municipal destinada a pessoas em situação de rua, o SUAS (Sistema Único da Assistência Social) e o SUS (Sistema Único de Saúde), além de desconsiderar pontos relevantes da lei antimanicomial.

Leitura rasa basta para perceber que o decreto busca criar um campo aberto para a contratação de comunidades terapêuticas, como uma espécie de “prisão hospitalar” cristã e evangélica. O referido decreto ainda afronta a Lei nº 17.252, de 26 de dezembro de 2019, de autoria do vereador Eduardo Suplicy (PT), que consolida a política Municipal para a População em Situação de Rua e institui o Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua. Tal legislação, caso fosse estudada e implementada pela atual gestão municipal e estadual, possibilitaria que o poder público atendesse às especificações da legislação federal no que tange à saúde e assistência social, além de dar executividade à Lei nº 12.316 de 16 de abril de 1997, que obriga o município a prestar atendimento à população em situação de rua. 

Ocorre que a cena de uso abusivo de álcool e drogas no centro da cidade vive hoje seu pior momento desde 2017, tendo um aumento anual de frequentadores e residentes, principalmente depois que a prefeitura desarticulou o programa De Braços Abertos (instituído em 2014 na gestão Fernando Haddad) e enfraqueceu a rede de atenção aos usuários em diversas estratégias e possibilidades de intervenção clínica e comunitária. O que até então consagrava uma política de atendimento focada na comunidade, considerando a política de redução de danos como estratégia respeitosa e acolhedora, tendo em vista, em certa medida, que a responsabilidade do poder público e a autonomia dos cidadãos na cena de uso são salutares. 

Notícias recentes em diversos meios de comunicação demonstram que as investidas estatais recentes em nada melhoram a condição do território, muito pelo contrário, temos pesquisas e levantamentos que demonstram o aumento do número de pessoas na cracolândia, conforme divulgado pela Guarda Civil Metropolitana ao G1. O trabalho continuado que quer oferecer o governo na verdade é uma imposição de enquadramento de usuários em comunidades terapêuticas sem vínculo com a rede SUS, com caráter ideológico religioso, punitivista e culpabilizador, com a prática de diversos métodos que violam o princípio da integralidade e de liberdade religiosa. 

O ex-prefeito João Dória, quando assumiu a prefeitura, encontrou em pleno vapor um projeto de cuidado e redução de danos que, àquela altura, era responsável pela melhora de vida de ao menos 500 pessoas no período de 2 a 3 anos, aproximadamente. Isso foi reflexo de um programa com 2/3 de eficácia sobre seus participantes, conforme pesquisas divulgadas por diversos meios de comunicação, como a Folha de S. Paulo, em reportagem de agosto de 2016

Com o início da gestão Dória, o programa foi desfeito, os equipamentos da rede foram desmontados ou sucateados sem oferecer uma rede de retaguarda, além de diversas pessoas experimentarem uma regressão de seu estado socioeconômico. Atualmente, o poder público procura sustentar suas ações com coberturas midiáticas no território sob o argumento de que a quantidade de pessoas no “fluxo” foi reduzida, porém a experiência mostra o contrário. Não houve uma redução do “fluxo” e sim uma espécie de “espalhamento” onde a cena de uso passou a funcionar fragmentada em 16 pontos diferentes espalhados pelo centro da cidade, conforme levantamento do LabCidade divulgado pela Folha de S. Paulo.  

O que está em disputa é a narrativa sobre as ações devidas pelo poder público na questão do uso considerado abusivo de álcool e outras drogas. E é nessa disputa que se estabelecem os maiores problemas de ordem estrutural na sociedade, tais como o racismo, o machismo e a xenofobia que, dentro de determinadas circunstâncias, se articulam pelo conservadorismo. É muito comum se deparar com perfis nas redes sociais de associações de amigos do bairro, conselhos de segurança e da comunidade que destilam ódio, preconceito, apologia ou incitação ao crime, com diversas informações falsas ou alteradas, no intuito de impor seus valores políticos e morais, além de sustentar ou contribuir para a manutenção da supremacia racial no território.

Dentre as medidas anunciadas pelos poderes municipal e estadual está a implementação do que o governo chama de Programa de Justiça Terapêutica, como forma de garantir direitos e tratamento ao usuário detido em pequenos delitos, relacionando uso de drogas e criminalidade. O governo desperta manifestação e preocupação dos setores envolvidos que destacam a ausência de informações sobre o programa e questionam seu método face à situação peculiar do território paulistano.

Temos pouca experiência nesse tipo de processo, sendo pouquíssimas varas da Justiça Federal que se encarregaram de formar audiências com a presença, além dos membros do Judiciário, Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União, da administração pública estadual, por meio da Secretaria da Saúde e do Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas). No programa implementado pela Justiça Federal, quando o juiz perceber que o acusado de crime não grave está em dependência química, poderá requisitar escolta policial para apresentá-lo no Cratod para avaliação médica sobre a necessidade de internação, com prazo de 24 horas para o envio do laudo médico. 

Em caso de internação, o Cratod tem o dever de solicitar vaga na Central de Regulação de Oferta de Serviços de Saúde (Cross), onde a pessoa terá que aguardar vaga para a internação. Em não sendo o caso de internação hospitalar, o laudo médico deverá informar os serviços de saúde mais adequados para o tratamento dos custodiados, bem como o serviço social de referência adequado ao caso, com indicação do nome e endereço da unidade. Porém, no programa anunciado pelo governo de São Paulo, não está sistematizado em como se dará o projeto de justiça terapêutica, razão pela qual a sociedade civil está no escuro em relação ao que pretende o poder público, com pessoas em situação de rua, por exemplo. Todavia, no programa implementado na esfera federal, são identificadas diversas falhas que fatalmente serão reproduzidas no plano estadual. 

Uma das maiores problemáticas do Programa de Justiça Terapêutica é sua forma de execução. Considerando as condições socioeconômicas, as desigualdades históricas de raça e gênero, e a complexidade dos casos, a equipe a ser formada precisa estar dotada de preparo teórico-prático para ofertar tratamento humanizado de forma não moralista e meramente legalista, sobre a condição da dependência química e sofrimento psíquico. Flagelo de muitas pessoas negras sujeitas ao processo de estratificação social, onde são colocados, pelos próprios agentes públicos encarregados de motivá-las, em uma posição de pessoas socialmente débeis, “loucos”, ou incapazes de exercer cidadania, o racismo e a pobreza continuam sendo o principal “problema” da “Cracolândia”. 

Assim, um programa que tinha como pressuposto o tratamento “humanizado”, se transforma em mais uma forma eugenista de constranger usuários a se submeterem a tratamento médico compulsório em lugar da prisão, prática utilizada pela Polícia Civil e Guarda Civil Metropolitana durante a famigerada Operação Caronte, onde a Polícia Civil de São Paulo efetivava prisões na região da “Cracolândia” sob o pretexto de combater o tráfico de drogas. Os usuários presos eram compelidos ao “tratamento”, sob pena de assinarem o termo circunstanciado, registro criminal para crimes de menor potencial ofensivo, como uma forma da gestão apresentar números crescentes de prisões e internações, como único e exclusivo métodos de medição e validade da melhora dos indivíduos e da cidade de São Paulo, como um todo.

Porém, a experiência dos profissionais de saúde durante a Operação Caronte é que as pessoas presas e posteriormente internadas, caso encontrassem vagas dentro da rede para dar continuidade ao suposto tratamento, que, se resumia em permanecer internada em um dos hospitais na rede municipal com suposta estrutura para ter uma enfermaria psiquiátrica, depois de alguns dias receberiam alta e seriam liberadas no próprio “fluxo”.  

Deste ponto de vista não seria útil para o território a aplicação do Programa de Justiça Terapêutica sem antes delimitar o campo de incidência, o método, forma de execução e pessoal a ser destinado para o serviço. Além disso, a Justiça precisa definir quais os delitos que poderão se sujeitar ao programa. A afirmação de que será para crimes de menor potencial ofensivo não pode se limitar ao porte de drogas para uso pessoal, por exemplo. 

Aliás, guardo o entendimento de que, dadas as especificidades do público atendido pelo poder público na “Cracolândia”, a justiça terapêutica teria pouca efetividade em casos de porte de droga para uso pessoal, sendo mais indicado para crimes contra o patrimônio, integridade física e moral, quando constatado que a situação socioeconômica relacionada à dependência química tem relação com o crime imputado, pelas condições do autor, vítima, tempo, local e circunstância do crime. Não quero dizer que a situação do usuário deva se agravar e sim que ele não seja preso por esse motivo. 

A pessoa identificada como comerciante da droga no “fluxo” é ferozmente associada à pessoa do traficante, um engano moralista fajuto. A Justiça Terapêutica pode incidir nesse momento, se as amarras da hipocrisia prendem nossa ideia de tráfico de drogas a relações sociais marcadas pela pobreza e marginalização, o mesmo não ocorre com pessoas brancas da região da Avenida Paulista, Jardins, Higienópolis e outros lugares frequentados por gente branca, rica e jovem. 

É muito fácil para o governo afirmar que vai implementar um Programa de Justiça Terapêutica em um território onde, sabemos que por questões de saúde e de assistência social, possui centenas de pessoas em situação de uso abusivo de álcool e drogas e com registros criminais, podendo arrebatar a qualquer momento e enviá-las à delegacia, sob o pretexto de estar sendo oferecido um tratamento, quando na verdade está sendo imposta uma condição de adoecimento, sem médicos. Agora, com a nova proposta, a fraude ainda ostenta, sem evidência, o apoio do Ministério Público e da Defensoria Pública, o que traz ainda maior preocupação. 

Quando o governador do Estado afirma que será implementado um projeto de justiça terapêutica para a comunidade da “Cracolândia”, são ignorados anos de trabalho e experiência empírica de agentes públicos, privados e do terceiro setor que articulam pesquisas, laboratórios, escutas e vínculo com as pessoas do território e já puderam por diversas vezes constatar, como os estudos mais recentes apontam, que métodos de “desintoxicação da droga” que consideram a abstinência total como ponto de partida do tratamento são “ineficazes” para uma parcela considerável das pessoas que se “desenvolveram” de forma “mais produtiva”, à medida em que avançavam no programa de redução de danos. 

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A justiça terapêutica está prevista na Lei 11.343/06, famigerada lei de drogas que devemos, todos nós, por um compromisso cívico e com os direitos humanos nesse país, dizer: a pior lei que esse país já teve desde a redemocratização, responsável pela criminalização, prisão e assassinato de milhões de homens e mulheres negras e pessoas pobres residentes nos grandes centros, periferias e favelas do Brasil. O projeto de justiça terapêutica proposto será mais um pacto em contramão das exigências da OMS (Organização Mundial da Saúde), promovendo, na prática, a institucionalização da prática de laborterapia e internação de caráter asilar, sem respeito às condições de trabalho ou cuidado, sem observar os princípios da individualidade e da integralidade. Muito trabalho ainda espera o campo antiproibicionista.

* Flavio Campos é advogado criminalista e ativista de movimentos negros

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